Luanda - Numa altura em que não há clarificação nem transparência no processo de identificação dos restos mortais das vítimas do 27 de maio, fica a dúvida: será a CIVICOP um verdadeiro processo de reconciliação, eventualmente bem intencionado mas pejado de falta de rigor e profissionalismo? Ou será o CIVICOP uma encenação com objetivos políticos mais imediatos?

Fonte: Expresso


No passado dia 13 de unho de 2022, a Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) promoveu um ato público em Luanda onde se sepultaram os restos mortais de Nito Alves, Sianuk, Jacob Caetano e Ilídio Ramalhete, algumas das figuras centrais do malfadado processo “27 de maio” de 1977 em que, após uma alegada tentativa de golpe de Estado, um número indeterminado de protagonistas e apoiantes de Alves ou críticos de Agostinho Neto foram presos, torturados e assassinados. Neste ato, no entanto, foram prestadas honras militares aos falecidos, e entregues certidões de óbito aos seus familiares.

 

Este ato inseria-se numa série de atividades promovidas nos últimos 3 anos pela CIVICOP – uma comissão criada em abril de 2019 por iniciativa presidencial e sob a alçada do Ministério de Justiça e Direitos Humanos e o então ministro Francisco Queiroz, com o objetivo de elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 (dia da independência) e 4 de abril de 2002, data do fim da guerra civil.

 

No decreto aprovado incluíam-se entre os conflitos a “intentona golpista” do 27 de maio ou eventuais crimes cometidos por movimentos ou partidos políticos no quadro do conflito armado. Sob o lema “Abraçar e Perdoar”, o plano teve como momento marcante um pedido de desculpas público por parte do Presidente João Lourenço em maio de 2021. Mas o plano também incluía, para além da construção em Luanda de um “memorial” em homenagem a todas as vítimas de conflitos políticos registados no país (apresentado em julho de 2022, na véspera das eleições), a procura e identificação dos restos mortais das vítimas e a subsequente emissão de certidões de óbito aos familiares das vítimas.

 

Estas iniciativas respondiam diretamente aos anseios e exigências tanto dos familiares como de várias associações que nos últimos anos se foram constituindo e organizando em Angola e na diáspora, em particular em torno dos acontecimentos do 27 de maio de 1977. Em dezembro de 2021 entrou em ação uma Comissão de Averiguação e Certificação de Óbito das Vítimas dos Conflitos Políticos, com o objetivo de proceder ao trabalho específico de levantamento e identificação dos restos mortais localizados.

A partir do exposto acima, poder-se-ia depreender que, após décadas de silêncio, sofrimento e em muitos casos exílio por parte de sobreviventes e vítimas de violência política em Angola, estes gestos constituiriam uma mudança positiva na postura do regime perante a memória desses episódios, tradicionalmente marcada pelo medo, pela autocensura e pela imposição de uma “lei da rolha” geral. Desde este ponto de vista, o pedido de desculpas público feito por João Lourenço na qualidade de Presidente da República foi um marco inédito na história política e social de Angola.

No entanto, desde o início que a atividade da CIVICOP tem sido pejada de atos procedimentais marcados por um obscurantismo persistente e que apenas levantaram mais suspeitas em relação ao seu rigor e intencionalidade no processo, ao ponto de pôr em causa o próprio objetivo de reconciliação efetiva.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à constituição da comissão, não foi seguido um processo de construção de transparência, nomeadamente no que diz respeito à constituição de uma comissão independente (isto é, excluindo atores governamentais e policiais do país em causa) e ao mesmo tempo inclusiva de atores internacionais reconhecidos como independentes, tais como a Cruz Vermelha Internacional ou a própria ONU, que não fazem parte deste processo (para não falar de organizações tais como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional).

No caso da CIVICOP, o próprio Governo envolveu-se como promotor e coordenador no processo que investiga ações decorridas no seu próprio seio. Embora seja verdade que desde a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos as comissões de reconciliação e verdade assumiram composições e procedimentos muito diversificados, um aspeto transversal e consensual é que o sucesso das mesmas depende de três fatores: informação, transparência e a construção da confiança. Para que tal aconteça, é fundamental a participação ativa das famílias das vítimas e dos sobreviventes dos eventos em causa. Neste caso, as famílias das vítimas do 27 de maio não foram incluídas nos trabalhos da comissão, apenas contactadas para fornecer dados genéticos para a investigação. E a composição atual da CIVICOP nunca foi publicamente anunciada.

Em qualquer caso, os defeitos deste processo não se resumem à composição da comissão de investigação. A situação piora quando se chega ao procedimento de investigação e apuramento. Aqui, verifica-se que, apesar da abundância de histórico, com a CIVICOP não se seguiu qualquer recomendação ou boa prática anterior – sobretudo tendo em conta a aprendizagem de experiências “vizinhas” na África do Sul e no Ruanda.

Falamos por exemplo no Protocolo de Minnesota, elaborado em 1991, e que estabelece um modelo para a investigação legal de execuções extralegais, arbitrárias e sumárias; e do Protocolo de Istambul, adotado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 2001, que oferece um manual de investigação e documentação efetiva sobre tortura, castigos e tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes. Como se veio a verificar no que relatamos em baixo, apesar da abundância de pontos de referência, na CIVICOP não foi seguida nenhuma boa prática.

Esta questão começou a ficar evidente no final de 2021, quando se procedeu à fase de trabalho forense – entendida como uma parte fundamental no processo de reconciliação, na medida em que a identificação e devolução dos restos mortais das vítimas permitiria finalmente um momento físico e simbólico de closure por parte dos familiares das vítimas, após décadas sem conhecer o destino final dos seus entes queridos.

Em primeiro lugar, o processo de identificação dos locais de escavação não foi de todo transparente ou linear. Quem identificou os locais de escavação? Com que conhecimento e metodologia? A 16 de novembro de 2021, a TPA emitiu um “Especial Informação” onde se apresentavam os passos tomados nos trabalhos de identificação. Nele, referia-se o recurso a “testemunhos orais” e principalmente a intervenção de um pesquisador brasileiro – o geógrafo Ary Resende Filho, professor da Universidade Federal do Mato Grosso –, na identificação de campas e valas comuns através de um aparelho de medição de solos (ver também informação na Folha de São Paulo). No entanto, esta metodologia não é reconhecida nas práticas forenses internacionais.

Depois - quem é que procedeu à escavação? As imagens difundidas pelos meios de comunicação angolanos no Especial acima referido mostram preocupantes resultados da intervenção de retroescavadoras em ação e a manipulação manual de ossadas “para a fotografia”. Em março de 2022, o próprio ministro Francisco Queiroz anunciou à comunicação social a localização de 10 corpos, entre os quais “possivelmente” os de Nito Alves, Pedro Fortunato, Bakalov, Monstro Imortal, Sita Valles, José Van Dúnem, David Zé, Urbano de Castro, Domingos Barros “Sabata” e Artur Nunes e ainda Júlio e Ilídio Ramalhete.

Essa convicção teria de ser posteriormente verificada através do cruzamento de dados genéticos. Destes, apesar das “fortes possibilidades” de identificação referidas pelo coordenador da CIVICOP, apenas quatro seriam posteriormente confirmados e devolvidos às respetivas famílias. No entanto, ninguém respondeu à pergunta: como é que se chegou a essa convicção de “forte possibilidade”? Que fontes e indicadores é que permitiram chegar a essa conclusão provisória?

A falta de rigor atingiu o seu cúmulo nos primeiros meses de 2023 quando, graças a um acordo intergovernamental, o Governo de Portugal facultou uma equipa de investigação para participar no processo forense, que chegou a Luanda para uma primeira missão a finais de 2021 e uma segunda a 18 de julho de 2022, tendo em vista a desejada identificação dos restos mortais de Sita Valles, José Van Dúnem e 36 outros falecidos, tal como referido em declarações de Francisco Queiroz veiculadas no Jornal de Angola. Desconhece-se o cálculo que deu origem ao número de falecidos nessa intervenção.

Em qualquer caso, a equipa foi constituída por especialistas de topo nas áreas da antropologia forense (Duarte Nuno Vieira, Eugénia Cunha), genética e criminalística, entre os quais um especialista da Polícia Judiciária portuguesa (Carlos Farinha). No entanto, tal como se explicou na conferência pública de apresentação de resultados da missão a 21 de março de 2023, no seu relatório, o trabalho da equipa em Luanda foi limitado à análise de ossadas previamente selecionadas por outros, nenhuma das quais, após análise, correspondentes a vítimas relacionadas com o processo 27 de maio.

Não tiveram qualquer informação relativamente aos processos de identificação e escavação a nível local, e foram confrontados com a manipulação prévia das ossadas sujeitas a análise. Além do mais, a terra do local apresentado à equipa como sendo a origem das ossadas analisadas (a zona das Palmeirinhas em Luanda Sul) não correspondia com os restos de terra observados nas mesmas.

Perante esta conclusão, e perante a falta de informação relativamente a quem liderou os trabalhos de identificação, escavação, forenses e laboratoriais fora da equipa portuguesa, levanta-se a legítima dúvida: quem identificou e como é que se autenticaram as ossadas entretanto já entregues às famílias das vítimas – por exemplo de Nito Alves, Sianouk, Jacob Caetano e Ilídio Ramalhete, tal como referido acima? Se o processo seguiu efetivamente as melhores práticas forenses e laboratoriais, e se em junho de 2022 Queiroz anunciou publicamente a acessibilidade dos resultados da investigação, porque é que o procedimento não foi tornado público, ou partilhado com a equipa internacional?

Comparando com outros casos de violência, reconciliação, verdade e justiça em África, tais como África do Sul, Ruanda ou Moçambique, é notório que em Angola o governo adotou uma política mais próxima do modelo ruandês, onde o governo se encarregou unilateralmente de liderar o processo (cf. Ferreira 2005).

Neste sentido, como dizíamos acima, no caso angolano onde o partido no Governo é parte interessada e protagonista na maior parte dos eventos de violência política incluídos na CIVICOP, teria sido fundamental para a instauração de uma noção de “verdade” a instauração de uma comissão especializada independente e não sujeita aos critérios do governo angolano, sob a alçada do seu Ministério de Justiça e Direitos Humanos, cujo ministro até às eleições de agosto de 2022 (Francisco Queiroz) era ao mesmo tempo líder da CIVICOP.

Mas não foi isso o que aconteceu. Toda a informação publicada até agora é produzida e veiculada de forma parcial e manipulada pelo próprio Governo angolano. A falta de transparência na tomada de decisões, assim como a falta de rigor na metodologia, não permitem qualquer tipo de certeza no processo.

Portanto, numa altura em que não há clarificação nem transparência no processo, fica a dúvida: será a CIVICOP um verdadeiro processo de reconciliação, eventualmente bem-intencionado mas pejado de falta de rigor e profissionalismo? Ou será o CIVICOP uma encenação com objetivos políticos mais imediatos – nomeadamente a mise-en-scène duma política de transparência e diálogo, tendo em vista os compromissos diplomáticos internacionais do governo angolano, ou a eleição de agosto de 2022? Ou será ainda uma mera tentativa de controlo de resultados, de gestão da impunidade do MPLA e os seus integrantes? A resposta estará algures entre estas três perspetivas.

Referências
Ferreira, Patrícia Magalhães. “Justiça e Reconciliação Pós-Conflito em África.” Cadernos de Estudos Africanos, no. 7/8 (2005): 9–29. https://doi.org/10.4000/cea.1370.

Van Munster, Maarten, and Joris Van Wijk. “Public Apologies in Angola, but for Whom?” JusticeInfo.Net (blog), 2021. https://www.justiceinfo.net/en/78191-public-apologies-in-angola-but-for-whom.html.