Luanda - Em 2021, há sensivelmente dois anos, numa análise intitulada "Reconciliar em exclusão", a jornalista e socióloga angolana Luzia Moniz já alertava para a fraude que representaria o processo que culminou no cruel escândalo da entrega de falsas ossadas à familiares de vítimas do 27 de Maio. Reconciliar em exclusão

Fonte: Club-k.net

Segue na integra do artigo de Luzia Moniz no coluna Tunda mu Njila, do Novo Jornal de 4 de Junho de 2021.

"Reconciliar em exclusão"

O Presidente João Lourenço escolheu o momento mais crítico da sua governação para exprimir um gesto de apaziguamento com uma parte da sociedade, pedindo desculpas e perdão aos familiares e vítimas dos sangrentos acontecimentos de 27 de Maio de 1977.

 

A política é vista como a actividade humana que mais se assemelha ao teatro, incluindo na sua estruturação com vários actos (do latim actu), palco, actores principais e secundários, figurantes, plateia, bastidores, cenários e mise en scène como destaque.

 

Desta forma, tal como no teatro, também na política, a encenação é determinante para que o trabalho do grupo (partido/governo) tenha um bom resultado e alcance o impacto ou sucesso desejados.

 

Se, no teatro, a má encenação, mesmo com actores excepcionais e um texto dramático de excelência, resulta sempre numa má peça, em política, uma boa ideia ou bom projecto mal encenado, facilmente terá o efeito contrário ao pretendido.

 

A peça teatral só chega ao palco depois de passar por várias fases, entre as quais os ensaios e o estudo do seu enquadramento, nomeadamente a identificação do ineditismo do texto, se já foi ou não encenado e a perspectiva a adoptar, sobretudo, no caso de texto já encenado.

 

Na peça angolana “perdão político”, ressalta a percepção de que terão faltado ensaios e enquadramento que passaria por procurar saber dos resultados obtidos com a exibição de peças idênticas em outros palcos, sobretudo nos mais próximos e, também, nos mais mediáticos.

 

Se tivesse sido genuinamente preparado nos bastidores, o pedido de perdão angolano teria suscitado a criação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação Nacional e, acto II, a abertura e libertação dos arquivos sobre o 27 de Maio, em posse do MPLA.

 

A realização de tais actos tem justificação no facto de o 27 de Maio ser uma questão nacional, do País inteiro, com vítimas para lá do círculo do MPLA e, também, como diz o sociólogo angolano Manuel Dias dos Santos porque o “MPLA não é o dono de Angola”.

 

Para a procura da verdade e o esclarecimento cabal de um dos mais trágicos episódios da História angolana pós-independência, é imprescindível a nacionalização do referido dossier, retirando-o da esfera privada do MPLA.

 

Por outro lado, para evitar a comparação com meros actos oportunistas, assentes em cosmética e com o objectivo de alavancar a baixíssima popularidade do Presidente, em pleno período de pré-campanha eleitoral, era necessário que o público olhasse para a iniciativa como corolário do avanço negocial que estava em curso.

 

Quando parecia haver uma ruptura dentro da Comissão de Reconciliação Nacional com ameaças de abandono das negociações por alguns dos intervenientes, esperava-se que a decisão do Presidente fosse mais abrangente e que correspondesse à expectativa de esclarecimento da verdade e encerramento do caso.

 

No entanto, o Presidente, que no auge da sua popularidade, em 2018, recusou dar “tratamento especial” ao 27 de Maio, por ser “um dia normal como outro qualquer”, optou, agora, por tirar um coelho da cartola e transformar o (ainda) seu ministro da Justiça e representante na Comissão, num mero figurante da peça.

 

Com esse gesto, encenado como magnânimo, tirou um trunfo do seu baralho de cartas recheado de Duques, mas onde não abundam Reis, Damas e Valetes, numa altura em que a espiral de intolerância política, coloca o País à beira de um grave e indesejado conflito político de repercussões inimagináveis.

 

Para corresponder a expectativa de acalmar os familiares das vítimas e a sociedade, em geral, como o próprio discurso sugere, seria necessário que o diálogo sobre a reconciliação criasse, pelo menos, a esperança de se chegar à verdade.

 

Com a peça em referência, João Lourenço também transmite a ideia de que a Comissão não passa de um instrumento que utiliza(rá) sempre que precisar de recuperar terreno perdido, matando assim a lisura na tomada de decisões.

 

Que tipo de reconciliação, que sinais transmite à sociedade o pedido de perdão? Que características tem este pedido? Quais os intervenientes? Reconciliar apenas com os mortos e seus familiares, em plena crise política, no interior do MPLA e nacional?

 

Essa reconciliação com o passado, ao mesmo tempo que no presente atira lenha para o incêndio da fogueira da crise política nacional, vem destapar as incongruências de uma política assente na navegação à vista.

 

Com o seu gesto, o PR dá razão à Palmira Africano de Carvalho (Mirita), sobrevivente do 27 de Maio, que num texto emotivo, qualifica o discurso do perdão, de “infeliz”, visando desencadear uma “operação de charme politicamente incorrecta e mais em jeito de pré-campanha e de branqueamento do MPLA do que de real e efectivo arrependimento”.

 

Ouvir falar apenas de reconciliação com o passado, numa altura em que os dois principais actores políticos do momento (João Lourenço e Adalberto Costa Júnior), estão de costas viradas, significa ignorar o presente e soa à fuga para a frente.

 

Espera-se que um pedido de perdão seja também um acto preventivo contra todas as formas de intolerância e extremismo políticos e vise ainda terminar com a perseguição política praticada por instituições que deviam estar ao serviço do Estado e não de facções políticas.

 

Pedir perdão e desculpas pelas vítimas de outros reinados, ignorando as vítimas do seu próprio consulado, como as de Cafunfo, parece um comportamento político bipolar.

 

Com a farpa lançada ao seu mais directo adversário político-partidário para que siga o seu exemplo e o destaque dado à presença de membros do secretariado do seu partido na cerimónia, o PR partidarizou e tornou irrelevante um dos actos de uma peça teatral com muitos figurantes.

 

Pedir politicamente perdão significa ser tolerante, estar imbuído de genuíno, amplo e imparcial espírito reconciliador, despartidarizado, capaz de reunir sob o mesmo chapéu a diversidade do pensamento angolano.

 

Ser reconciliador é ser política e socialmente tolerante, impedindo que as direcções dos órgãos de comunicação social por si nomeadas e as brigadas digitais trabalhem na disseminação de assassínios de caracter contra actores de diversas áreas da sociedade.

 

Pedir perdão por um passado de intolerância que desembocou numa “reação desproporcional” e “execução sumária” e incitar ou permitir que os media de capitais públicos semeiem o discurso do ódio e a diabolização dos adversários políticos, assemelha-se a propaganda eleitoral ou bipolaridade política.

 

Ser reconciliador é abraçar o respeito pelos direitos fundamentais, centrado no respeito pela dignidade humana, como pressuposto básico para o combate às desigualdades sociais, à fome e à miséria.

 

Ser reconciliador é também defender o pluralismo como regra de uma sociedade onde a mordaça institucional ainda amedronta os fazedores de política, quer sejam actores ou figurantes.

 

Quem quer ser reconciliador precisa de eliminar todos os obstáculos visíveis ou sub-reptícios, colocados no caminho dos cidadãos com o objectivo de os tornar reféns do medo e forçando-os a aplaudir o clientelismo partidário como o único e valioso elevador de ascensão social.

 

Quem quer ainda ser reconciliador deve priorizar a adopção de medidas de apaziguamento com toda a sociedade, de ética republicana, de responsabilização dos seus auxiliares directos, envolvidos em escândalos de corrupção que põem em causa a coesão e moral sociais, perigando a preservação da estabilidade política e social.

 

Quem quer ser reconciliador não pactua, nem silencia actos ignóbeis de corrupção política da juventude do seu partido, visando caluniar o líder da oposição, para, desta forma, convencer a sociedade da instabilidade no seio dos adversários.

 

O reconciliador não persegue nem ostraciza barões do seu próprio partido, como antigos secretários-gerais que, em vão, tentam alertar que o Rei vai nu.

 

Para pedir perdão às vítimas, João Lourenço desapossa Agostinho Neto quando afirma: “a reação das Autoridades de então foi desproporcional e levada ao extremo, tendo sido realizadas execuções sumárias de um número indeterminado de cidadãos angolanos, muitos deles inocentes.”

 

Deste modo, o novo inquilino do “Kremilin” altera a versão oficial do MPLA que nunca tinha admitido ter havido “execuções sumárias” e, mais uma vez, reescreve a história de um partido, centrado na opacidade e inverdades e cuja historiografia muda em função da liderança.

 

Neste capítulo, o discurso de João Lourenço traz à memória o golpe de Estado post-mortem contra Sékou Touré da Guiné Konacry, a 3 de Abril de 1984, uma semana após a sua morte.

 

Na ocasião, Lansana Conté, num golpe militar, derrubou as autoridades de transição, denunciou a “repressão política” do pai fundador do País, libertou 250 presos políticos, e encorajou o regresso de 200 mil guineenses do exílio, liquidando, desta forma, o regime do panafricanista Sékou Touré.