Luanda - Conheci o cda Kacyke em 1976 quando regressamos da República do Zaïre, para onde eu e os cdas Samuel Chivukuvuku e Jeremias Constantino Paulo, tínhamos sido transferidos como "Adidos militares", junto das autoridades daquele país e dos americanos.
Fonte: Club-k.net
Depois de uma longa e difícil marcha do Mungo, na Zâmbia, atravessamos a província do Moxico até que chegamos ao K. Kuvangu, nas margens do Rio Kuelehi.
Foi naquela base de Kuelehi, sob o comando do falecido Tenente Coronel Katali e comando táctico-operacional do Major Chinongue. Black Power era um dos comandantes mais brilhantes da região.
Foi naquela base que alguém me viria informar da detenção de "um jovem que era irmão de Ben Ben" que tinha tido uma altercação com um outro jovem, por uma razão qualquer de que já não me recordo. Fiz uma intervenção junto das respectivas autoridades e o cda Kacyke foi imediatamente posto em liberdade.
Mais tarde juntámo-nos à coluna da Direcção do Partido e seguimos para o Planalto Central com vista à realização do IV Congresso na província do Huambo.
Foi durante aquela marcha que a um dado momento, o cda Kacyke teve um problema nos dois joelhos, o que lhe impedia de continuar a marcha. Encontrei o cda Kacyke sentado à beira do trilho, sem possibilidade de pôr-se de pé. Parei, conversei com ele e decidi, a pesar da minha mochila e arma, carregar o jovem aos ombros, à condição que encontrássemos alguém que pudesse levar a sua mochila.
A minha decisão desencadeou um movimento de solidariedade, o que fez com que depois de mim tivesse aparecido outros candidatos a "carregar" o camarada até que acampámos para o descanso geral. No dia seguinte ele tinha conseguido andar.
Em 1979 seguiu com outros jovens para o Sénégal onde o velho Jonas havia conseguido cerca de 30 bolsas de estudo, junto do seu amigo e admirador Léopold Sédar Senghor.
Voltamos a interagir na segunda metade da década 80, em Paris, na companhia de outros estudantes bolseiros da UNITA. Desta vez passou a ser um directo colaborador, juntando-se à nossa equipa de trabalho que já contava com os mais velhos Armando Pilartes e Mateus Chiako, e Domingos Miranda, Kacyke teve em França um papel fundamental na mobilização da massa estudantil angolana e mesmo francesa para a causa da Democracia em Angola.
Quando nasceram as suas filhas gêmeas, Beatriz e Lucy em 1987, o cda Kacyke passou a ser o pai mais presente, devido às minhas diversas e constantes deslocações tanto para o interior como pelo mundo fora.
Para falar do Kacyke eu precisava de muitas páginas.
Faltou falar do seu papel na grande campanha de mobilização da comunidade angolana em França.
Faltou falar do problema que ele teve com a polícia francesa, quando conduzia o meu carro, desencartado, depois do meu embarque para Kinshasa, quando ele recebeu instruções para esperar pelo cda Armando Pilartes da Silva que viria a dada altura do dia, para levar o carro para a casa.
Faltou falar do seu papel na grande manifestação anti armas químicas organizada pelo PKK (Partido Comunista Kurdo), que terminou numa verdadeira batalha campal nas ruas de Paris, entre kurdos e angolanos. (Fomos para a manifestação sem sabermos que se tratava de uma manifestação contra as armas químicas ocidentais, quando para nós a manifestação era contra as armas químicas dos países do Pacto de Varsóvia).
Faltou falar das circunstâncias em que me apresentou jovens franceses que depois foram muito úteis à luta, como Vincent Cruzet, Didier Monin.
Faltou falar da maior decisão que ele tomou, como próximo colaborador do mais velho Jonas Savimbi.
Faltou ainda falar dos "gatos", jargão criado por ele e usado pelos bolseiros para falarem de dinheiro.
Enfim, faltou falar de tanta coisa...
No seu dia à dia, o Kacyke usava ferramentas poderosas para as relações humanas como o seu sorriso permanente, a elegância na maneira de se vestir, a cortesia e tudo isso conjugado com uma simplicidade fora do vulgar, se tivermos em conta o seu estatuto natural.
Ele era um bon vivant mas quando tocasse ao sacrifício, ele estava na linha da frente.
Descanse em paz, meu caro amigo, mon petit-frère, o outro pai das crianças
Obs: agradeço o cda Pilartes e à Lucy Lukamba que gentilmente me enviaram fotos e à Beatriz Lukamba, que teve como responsabilidade, editar e revisar o texto