Caros compatriotas,
Quarenta e seis anos passaram, desde àquele trágico, mas célebre e histórico dia 27 de Maio de 1977, em que um grupo de corajosos militantes do MPLA ousou, legítima e justamente manifestar-se, por não concordar com a estratégia que um grupo de dirigentes perfeitamente identificável, escudado na figura do Presidente Neto tentava, a todo custo, traçar um rumo que claramente se desviava dos objetivos pelos quais os verdadeiros patriotas de todos os matizes políticos sacrificaram suas vidas, para resgatar a honra e a dignidade dos angolanos negadas durante séculos de domínio e humilhação colonial na sua própria terra, objectivos consagrados nos estatutos e Programa do MPLA, que Nito Alves e demais militantes defendiam ferreamente.

Fonte: Club-k.net

A resposta à manifestação foi a violenta repressão levada a cabo pelo referido grupo, que qualificou a manifestação de tentativa de golpe de estado, pior: “INTENTONA FRACCIONISTA”, rótulo que um dos mentores e activo dirigente do massacre – Costa Andrade, “Ndunduma”, dolosamente concebeu e atribuiu à alegada tentativa de golpe de estado, a seguir amplamente difundida na imprensa pública, cujo editorial, tinha como epígrafe, “É PRECISO BATER NO FERRO QUENTE”, tudo com o vil propósito de instigar os carrascos sedentos de sangue, para que acelerassem e intensificassem a matança selectiva de milhares de militantes no seio do MPLA. Por incrível que pareça, apesar da evidência dos factos que hoje abundam, os mentores da barbárie ainda insistem na narrativa do “fraccionismo” e da alegada tentativa de golpe de estado, enquanto o sensato seria sugerirem à Direcção do MPLA e do seu Governo a criação de uma Comissão da Verdade, para definitivamente se esclarecerem as enormes dúvidas sobre o que realmente se passou e o que esteve na base da sangrenta repressão. Percebe-se. Não tendo outro argumento para justificar a barbárie que levaram a cabo, não lhes resta uma alternativa que não seja a de socorrer-se deste expediente torpe da narrativa da “intentona fraccionista”. No entanto não dizem por que razão se realizavam àquelas reuniões no Alvalade, na casa do Júlio de Almeida “Comandante Jújú”, reuniões que se prolongavam até altas horas. O que é que o grupo discutia naquelas reuniões? Isso para os mentores da barbárie como o Hermínio Escórcio, não é fraccionismo. Tudo no fundo, não passou de pretexto para concretizar um plano que há muito o referido grupo vinha preparando.


Passados estes anos todos, por mais que as pessoas não concordem comigo, e têm toda a legitimidade em discordar, cada vez mais me convenço do que venho defendendo há décadas: O problema do 27 de Maio nada tem a ver com questões meramente ideológicas. Estas apenas serviram de instrumento de luta política naquela conjuntura. A questão é muito mais profunda do que muitos superficialmente pensam. Entendo que a questão é de foro estritamente política. Tem a ver, isso sim, com a questão de se determinar a quem, realmente, naquela conjuntura política, assistia legitimidade para traçar as grandes linhas sob as quais se devia definir o rumo que o País devia seguir, exatamente para que fosse possível resgatar a honra e a dignidade da maioria dos angolanos negadas durante séculos de domínio colonial. Entendo que era uma questão de legitimidade política, e essa afere-se pelo critério da maioria. Julgo ser esse o critério adotado na maioria dos países em todo o mundo, independentemente do regime político que nele vigore. E isso nada tem a ver com racismo, como falsamente os mentores do massacre acusaram Nito Alves. O inverso é que é verdadeiro. É só ver quem foram os mentores da chacina, os que verdadeiramente detinham as rédeas do poder de decisão; os que planearam e dirigiram o massacre, eliminando física e seletivamente a inteligência negra que, sem sombra de dúvidas, hoje estaria a dar o seu contributo valioso ao desenvolvimento do País. Se dúvidas ainda existiam, estas hoje estão dissipadas. É só ver a forma desastrosa como o País vem sendo governado, exatamente por ausência quase que absoluta, de quadros competentes e, acima de tudo, honestos, com espírito de Pátria no seio do próprio MPLA, fundamentalmente ao nível da sua estrutura diretiva. Salvo raras excepções, na sua maioria é gente desonesta e sem carácter, mais interessada em acumular riqueza.


Hoje, com a quantidade de informação que se obtém de várias fontes, convenço-me cada vez mais da justeza das minhas ideias. Há muito venho defendendo que nem todos os dirigentes do MPLA entraram para o processo de Libertação Nacional de boa fé. Alguns entraram com a lição muito bem estudada para concretizar uma agenda que não era a que Viriato da Cruz concebeu e com os seus próprios punhos insuflou nos Estatutos e Programa do MPLA, mas uma outra agenda não confessada. Hoje sabe-se que certos indivíduos que planearam, dirigiram e executaram a repressão sangrenta, durante a luta de libertação comprovadamente colaboraram com o regime colonial que diziam combater. Infelizmente, são indivíduos daquela estirpe a quem o Presidente Agostinho Neto depositava inteira confiança, confiando-lhes cargos de elevada responsabilidade na direção do Movimento e posteriormente no Estado. Perante este posicionamento do Presidente Neto nessa maka do 27 de Maio, confesso, que até hoje ainda não consegui compreender qual era a sua estratégia política para o País depois de libertado do colonialismo. Por essa razão, reitero: por mais que se queira branquear a imagem do Presidente Neto, a História julgá-lo-á um dia, por ter optado por uma estratégia política que se revelou extremamente prejudicial ao País, fundamentalmente à maioria do povo que ele dizia defender. Porque ao ter confundido racismo com realismo político, sem levar em linha de conta a conjuntura política de um País que fora vítima de discriminação racial durante séculos pelo colonialismo, o Presidente Neto colocou em causa a sua própria credibilidade política. É que, ao ter publicamente ditado em hasta pública a sentença de morte com trânsito em julgado, com a célebre frase que agora deliberadamente se omite – “Não Haverá perdão nem tolerância..., não vamos perder tempo com julgamentos...,”o Presidente passou um cheque em branco aos mentores do massacre, aqueles que sempre defendeu e protegeu, defendendo-os publicamente no célebre Comício do dia 21 de Maio, na Cidadela Desportiva. Porque com a sentença em mãos, o grupo nada mais fez do que executar o plano macabro que há muito vinha urdindo, iniciando a matança selectiva de milhares de militantes, que se entregaram de corpo e alma, desinteressadamente, ajudando o MPLA a conquistar o poder.
Face a gravidade e magnitude do problema do 27 de Maio, urge a necessidade da questão ser tratada muito especificamente, num foro apropriado, para que se esclareçam os contornos que estiveram na base de tamanha barbaridade em que foram assassinados milhares de jovens na flor da idade. Confesso que inicialmente acreditei piamente nas palavras do Presidente da República, quando veio a público pedir perdão em nome do Estado pelos crimes cometidos em 27 de Maio de 1977.

 

Como não acreditar em alguém que sendo o mais alto mandatário do País, jurou defender a Constituição e a lei em defesa dos cidadãos? Por isso, elogiei publicamente a sua coragem, convencido de que o pedido de perdão era genuíno. Porém, ao constatar a forma como a CIVICOP conduziu o alegado processo de homenagem às vítimas do 27 de Maio com a entrega das ossadas aos familiares das mesmas, sem ter observado os procedimentos recomendados pela antropologia forense, o que veio depois confirmar-se que, afinal, as ossadas que foram entregues aos familiares das vítimas como sendo dos seus ente queridos não passou de um monumental logro, assim como a forma como o Presidente da República condecorou as vítimas e os algozes, sem se perceber bem que critério utilizou para juntar vítimas e algozes numa mesma cerimônia, confesso que estou profundamente desiludido.


O senhor Presidente da República ainda vai a tempo para corrigir os gravíssimos erros cometidos pela CIVICOP, que certamente manchou a imagem do Estado interna e externamente e a sua própria. Daí que sugiro ao senhor Presidente que ordene a criação de uma Comissão da Verdade, para que os responsáveis pela chacina de 27 de Maio, muitos ainda em vida e perfeitamente identificáveis, confessem nesse órgão os crimes que cometeram e indiquem o lugar onde sepultaram as vítimas, para posteriormente então levar-se a cabo o processo de certificação rigorosa das ossadas por peritos em antropologia forense. Só assim será possível a reconciliação entre as vítimas e os algozes, observando rigorosamente as recomendações quer das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, assim como da União Africana sobre Justiça Transicional, que o Estado de Angola aderiu e presumo que tenha ratificado.


Sempre me bati e bater-me-ei até ao último dia da minha existência, individual ou coletivamente, para a descoberta da verdade do que realmente esteve na base da barbárie que vestiu de vergonha o Estado de Angola, interna e externamente.

Miguel Francisco “Michel”
(Sobrevivente)