Luanda - ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS DA SOCIEDADE ANGOLANA VIVEM AMBIENTE DE REPRESÁLIAS, AMEAÇAS E RESTRIÇÕES NO EXERCÍCIO DOS SEUS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS FUNDAMENTAIS RECONHECIDOS PELA CONSTITUIÇÃO ANGOLANA E TRATADOS INTERNACIONAIS RALTIVOS À MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS.


A) FACTOS

A Associação KUTAKESA, Movimento de Defensores dos Direitos Humanos em Angola é uma Organização da Sociedade Civil angolana, fundada há três anos, legalmente constituída e registada sob o no. 040/2022, com sede em Luanda.


A Kutakesa e a sociedade civil Angolana em geral tomaram conhecimento, com preocupação que, no passado dia 25 de Maio de 2023, foi à votação, na 7.a Reunião Plenária Ordinário da Assembleia Nacional, a PROPOSTA DE LEI QUE APROVA O ESTATUTO DAS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS.


A referida proposta de lei sinal claro da intenção do governo de Angola fechar ainda mais o espaço cívico angolano, comprometer seriamente a autonomia privada das organizações não Governamentais, a sua liberdade de associação bem como a continuidade do trabalho desenvolvido nos últimos anos pelas Organizações da sociedade civil angolana e dos defensores e defensoras de direitos humanos (DDH). Trabalho este que tem sido fundamental no que concerne as contribuições das associações privadas para a consolidação da Democracia e respeito pelos princípios estruturantes previstos na Constituição da República de Angola (CRA), através de denuncias e recomendações sobre os actos de corrupção, as suas consequências e impacto negativo na vida das populações, na realização dos direitos económicos,
sociais e culturais e na independência e funcionamento eficaz do sistema de justiça em Angola.

Vale aqui recordar que o trabalho desenvolvido pelas Organizações não Governamentais (ONG), insere-se no quadro de um Estado de Direito e Democrático (art.o 2.o e 21.o al. l. da CRA) que permite os cidadãos, de forma singular ou colectiva, possam exercer o seu direito/ dever de cidadania através da participação na vida pública e nas questões sociais ou políticas que as afectam.


Ora, com uma participação condicionada das pessoas nos assuntos sociais, económicos, civis e políticos que as afecta, não pode haver uma governação responsável. Sem uma governação responsável, há maior permissividade de actos de impunidade e de abuso de poder, corrupção trafico de influência e desde modo a sociedade não pode prosperar.


As Organizações não Governamentais (ONG), os activistas pró-democracia, os defensores dos direitos humanos, os defensores da terra, do ambiente e dos povos indígenas necessitam de um espaço cívico aberto para poderem realizar o seu trabalho sem constrangimentos de qualquer natureza.


A proposta de Lei acima mencionado promove um ambiente de fechamento ou restrições da Liberdade das Associações, não só aumenta as ameaças contra os defensores dos direitos humanos, contra a sociedade civil, mas também reduz a eficácia do seu trabalho comprometendo desde modo o desenvolvimento social e da democracia em Angola.


A Kutakesa e os demais atores da sociedade civil vêm acompanhando nos últimos meses, e de forma cada vez mais evidente o fechamento do espaço democrático. Recordemos aqui que no mês de Março do ano em curso, o Líder Sindical dos Professores do Ensino Superior Eduardo Alberto Peres tinha sido alvo de ameaças de morte, no mês de Abril membros do Movimento dos Estudantes de Angola (MEA) viram a sua manifestação ser reprimida pelas forças policiais, tendo culminado com a detenção arbitrária de 5 estudantes, isto só para citar alguns exemplo.


Como bem define Bossuyt, J. e Ronceray, M. (2020) o espaço cívico é uma arena pública na qual os cidadãos podem intervir livremente e organizar-se com o objectivo de defender os seus interesses, valores e identidades; reivindicar os seus direitos; influenciar a elaboração de políticas públicas eficazes ou pedir contas aos detentores do poder, sem interferência de qualquer poder.


A referida proposta da lei, em muitas das suas disposições violam gravemente a Constituição por serem de carácter impeditivo, inibidor, restritivo e ameaça a existência das ONG e dos defensores dos direitos humanos.


A proposta de lei, tal como está redigida e foi aprovada na generalidade pelos seus principais interessados o partido no poder visa ser utilizada de forma abusiva contra os direitos humanos e exercício das liberdades fundamentais em Angola, esta atribui competências inconstitucionais ao Titular do Poder Executivo para interferir na liberdade das associações prosseguirem, livremente os seus fins.

Senão vejamos:


B) BREVE ANÁLISE DA PROPOSTA DE LEI QUE APROVA O ESTATUTO DAS ONG
A proposta de Lei que foi discutida e aprovada na Generalidade no dia 25 de maio de 23 com 105 votos a favor, 69 votos contra e 2 abstenções é de iniciativa do Titular do Poder Executivo, PRESIDENTE DA REPÚBLICA JOÃO

MANUEL GONÇALVES LOURENÇO:


Da análise efectuada pela KUTAKESA, observou-se o seguinte:


i) Objectivo e Contexto da Proposta de Lei


Lê-se no relatório de fundamentação da referida proposta de lei que o Titular do Poder Executivo angolano, considera que tem encontrado constrangimentos e dificuldades de assegurar o cumprimento de obrigações internacionalmente assumidas pelo Governo angolano em matéria de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo (art.o 14.o n.o 2 al. a), b) d) da Proposta de Lei), daí a necessidade de se controlar as fontes, meios de financiamentos das ONG e destino dado aos recursos financeiros titulado por estas organizações.


Esta narrativa do governo angolano não corresponde a verdade e demonstra claramente a sua aversão contra as organizações da Sociedade civil que monitoram e denunciam as más praticas governativas. Os apoios financeiros para os projectos das ONG ́s e dos defensores de Direitos Humanos são de organizações bem identificados, passam por instituições bancarias com rígidas regras de compliance; e alguns desses financiadores, são os mesmos que apoiam alguns projectos do governo.

ii) Conceitos Indeterminadas


A Kutakesa entende que a proposta de Lei que aprova o Estatuto das ONG apresenta algumas disposições que carecem de melhor concretização em abono da boa interpretação das leis. A título de exemplo, é difícil encontrar o sentido e o alcance normativo do art.o 19.o n.o 1 al. d) que impõe o “dever de as ONG absterem-se de práticas e acções subversivas ou susceptíveis de serem confundidas com estas”. Nesta disposição a questão que se levanta e que não foi explicada é a de saber qual é o entendimento da entidade proponente da Lei sobre o que são acções subversivas das ONG ́s.


Os conceitos indeterminados constantes na proposta de lei ferem o princípio da legalidade que exige que a lei seja claramente articulada e conhecida antecipadamente e não seja aplicada retroativamente. E o art.o n.o 2.o da Lei que aprova o Estatuto das ONG impõe a conformação das ONG já existentes com as disposições da referida lei, sob pena verem os seus estatutos e registos revogados.

iii) Interferência do Poder Executivo nas actividades das ONG


A KUTAKESA entende que a proposta de Lei das ONG interfere nas actividades e na autonomia privada das ONG, na medida em que, no seu art.o 6.o prevê a institucionalizar um órgão governamental com prorrogativas de acompanhar as actividades desenvolvidas pelas ONG para garantir que estejam conformadas com os interesses do Governo.


O art.o 7.o al. c) da proposta de Lei das ONG atribui competência ao órgão dependente do titular do poder executivo para promover e propor as ONG a execução de programas e projectos complementares às acções do governo e das comunidades. Esta mesma competência é reforçada no art.o 19.o com epígrafe “deveres” que, nas suas al. c) e e) impõem às Organizações não Governamentais deveres de participar na implementação de programas económicos e sociais aprovados pelo governo e implementar os projectos aprovados na província e na região do território nacional quando tal decorra de acordo, com contrato ou convenção.


Ora essas disposições ferem o conteúdo essencial do Direito, Liberdade e Garantia das Associações prevista no art.o 48.o n.o 2 da Constituição que diz expressamente que “as associações prosseguem livremente os seus fins, sem interferência das autoridades públicas (...)”.

iv) Restrições, Excessivo Controlo e desarmonia aos Direitos Humanos na Proposta de Lei


A proposta de lei prevê no art.o 32.o n.o 1 que o órgão administrativo responsável a ser criado pelo Titular do Poder executivo, para acompanhar o exercício das actividades das ONG pode suspender as actividades das ONG.

Essa disposição é contrária à ao espírito da Constituição da República (art.o 48.o n.o 1 in fine) e ao artigo 182.o do Código Civil angolano que se aplica por força do art.o 37.o da Lei n.o 06/12 de 18 de janeiro – Lei das associações privadas, nos termos do qual prevê a extinção ou suspensão das

Associações (lê-se ONG) apenas nas seguintes situações:

• Por Deliberação da Assembleia Geral da Associação;
• Pelo decurso do prazo, se a ONG tiver sido constituída temporariamente;
• Pela verificação de qualquer outra causa extintiva prevista no acto de constituição ou nos estatutos;
• Pelo falecimento ou desaparecimento de todos os associados;
• Por decisão judicial.


A proposta de lei que ora constitui objecto do presente apelo, no seu art.o 19.o al. h) contem conteúdos restritivo aos Direitos das ONG, na medida em que, impões a elas o dever de aquisição os bens e de equipamento de apoio aos projectos no mercado nacional. Tal disposição contraria o direito do consumidor a qualidade dos bens e serviços de livremente escolher o fornecedor dos bens e serviços (Cfr. Art.o 78 da CRA).


A proposta de Lei que aprova o estatuto das ONG atribui excessivos poderes ao Poder Executivo de controlar as ONG quando esta, na al. f) do artigo 19.o lhes impõe o dever de prestar informações e enviar relatórios de actividades mensais, trimestres, semestrais e anuais, no decurso e no final dos projectos.


Consideramos serem ainda controladora a interferência na gestão financeira e administrativa das ONGS, alias, que deve ser autónoma, nos termos do art.o 48.o n.o 1 da CRA, os apoios financeiros de doadores nacionais e internacionais é o que melhor garante o exercício das actividades da ONG sem que haja alguma interferência de quaisquer poderes.


A excessiva preocupação que a proposta de lei revela com os crimes de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo revela-se desnecessária, porquanto, já existe no sistema jurídico angolano legislação suficientemente quanto as actos proibitivos a aqueles tipos legais de crimes, prevendo, as pessoas colectivas de direito privado (ONG) que vierem a praticar tais actos ficam sujeitos ao processo crime conforme o código penal angolano no seu Capítulo VI prevê nos artigos 90.o a 100.o, responsabilização criminal das pessoas colectivas.


A Proposta de Lei que aprova o estatuto das ONG não está em harmonia com às convenções internacionais de Direitos Humanos e de vários compromissos assumidos pelo Estado angolano que o obrigam a respeitar, por força do princípio da cláusula geral aberta, previsto no artigo 26.o n.o 1 da CRA.
E ainda, a Proposta de Lei do estatuto das ONG não está de harmonia a resolução 319 (LVII) 2015, emitida pela Comissão Africana, nos termos do art.o 45.o n.o 1 al. b) da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, nos termos do qual considera que, quaisquer órgãos de supervisão das associações devem ser tratados se necessário, por um único órgão que exerça as suas funções de forma imparcial e justa. Ora, para a Kutakesa a proposta de Lei interfere na vida das ONG e na prossecução livre dos seus fins.


Cria perigos reais de expropriação dos fundos e activos das ONG sem um processo judicial justo e sem reparações de danos causados aos defensores de Direitos Humanos. Pode também ser um meio de inviabilizar o trabalho de apoio à democracia, de escrutínio das más práticas da governação.


Para a Kutakesa, a proposta de lei aumenta a vigilância e o controlo das ONG e dos defensores dos direitos humanos; é restritiva e contraria o regime jurídico sobre as situações especificas de restrições dos Direitos Liberdades e Garantias fundamentais previsto no art.o 57.o da CRA que estabelece que os direitos fundamentais e liberdades consagradas na Constituição Angolana só podem ser limitadas, restringidos apenas nos termos de uma lei de aplicação geral e abstrata, devendo limitar-se ao necessário, proporcional e razoável, numa sociedade democrática para salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

C) CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES


Face ao que foi dito, instamos ao RELATOR ESPECIAL SOBRE A SITUAÇAO DOS DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS EM ÁFRICA, HON. COMISSÁRIO REMY NGOY LUMBU e a RELATORA ESPEICAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A SITUAÇAO DOS DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS, SENHORA MARY LAWLOR, o seguinte:

▪ Instar o Governo angolano, encorajando-o a retirar a Proposta de Lei que Aprova o Estatuto das Organizações não Governamentais e iniciar um processo de consulta alargado com a sociedade civil;


▪ Encoraja a não aprovar qualquer nova lei que regule o quadro jurídico através do qual as ONG passam a existir em Angola e a aplicá-la retroactivamente para afectar os direitos dos grupos da sociedade civil e das ONG que já existem legal e validamente nos termos das actuais leis do país;


▪ Qualquer proposta de nova legislação que regule o registo e funcionamento das ONG deve isentar as organizações que já registadas em homenagem ao princípio da segurança e certeza jurídica aplicável à Ordem Jurídica Angolana;


▪ Solicita ao Poder Executivo e ao Parlamento angolano que tenha especialmente em conta que a Constituição da República de Angola é a lei suprema e qualquer proposta de lei, prática, costume ou conduta devem estar de acordo à Constituição e Convenções Internacionais Relativo a matéria de Direitos Humanos;


▪ Lembre ao Estado angolano que os Direitos Humanos reconhecido na ordem jurídica angolana são vinculativos e aplicam-se erga omnes e vinculam a todas as pessoas, singulares ou colectivas, incluindo o Estado e todas as instituições do Executivo, legislativas e judiciais e agências do governo a todos os níveis;

 

▪ Qualquer proposta de lei relativa às ONG não deve, por conseguinte, restringir o espaço cívico ou impedir o gozo dos Direitos, Liberdades e Garantias fundamentais consagrados na Constituição;


▪ Qualquer proposta de lei sobre as ONG não deve ter por objectivo criminalizar o trabalho das ONG ou dos defensores dos direitos humanos e desencorajar o Assembleia Nacional permitir que o Governo possa praticar actos administrativos que visam suspender as ONG.


KUTAKESA | MOVIMENTO DE DEFENSORES DOS DIREITOS HUMANOS EM ANGOLA