Luanda - EXCLUSIVO. Impossibilidade de alteração da Constituição, conjugada com norma estatutária que impõe o presidente do partido como o candidato a Presidente da República, coloca João Lourenço em situação de inelegibilidade na reunião magna dos camaradas que antecede a disputa eleitoral de 2027. Constitucionalistas, politólogos e sociólogos validam interpretação do Valor Económico sobre o artigo 120º dos estatutos vigentes do MPLA.

*Evaristo Mulaza
Fonte: Valor Economico

Os estatutos saídos do VIII congresso do MPLA, realizado entre 9 e 11 de Dezembro de 2021, incluem alterações que afastam João Lourenço da corrida à liderança do partido, no próximo congresso ordinário previsto para 2026.


Anotados através do despacho nº 5/23, de 6 de Junho do Tribunal Constitucional, e publicados em Diário da República nesse mesmo dia, os novos estatutos do MPLA determinam, no número 1 do seu artigo 120º, que “o Presidente do Partido encabeça a lista de candidatos, pelo círculo nacional, sendo candidato a Presidente da República”.


A nova norma introduzida num conclave realizado sob as ordens directas de João Lourenço coloca assim o próprio numa situação de inelegibilidade para presidente do partido em 2026, uma vez que o líder a ser eleito será necessariamente o candidato à chefia do Estado, cargo limitado a apenas dois mandatos que, entretanto, já estarão cumpridos pelo actual ‘inquilino’ da Cidade Alta.


As conclusões do Valor Económico são apoiadas por pelo menos quatro respeitados constitucionalistas angolanos, dois dos quais ligados a órgãos centrais do MPLA e que optaram pelo anonimato. “A leitura do jornal está correcta. O próximo congresso ordinário será realizado de acordo com os estatutos vigentes e estes têm uma norma determinante em como o presidente do partido é automaticamente o candidato a Presidente da República. Neste caso, por limitações constitucionais e estando afastada a hipótese de uma revisão constitucional particularmente que incida sobre o alargamento de mandatos, o actual presidente do partido não poderá concorrer à sua própria sucessão em 2026, ou seja, será inelegível”, explica um dos constitucionalistas, em alinhamento com os demais consultados. “O que vai acontecer é uma bicefalia transitória, tal como a que vivemos em 2017 mas, neste caso, com os termos trocados. No passado, José Eduardo dos Santos largou a Presidência da República e manteve-se como líder do MPLA até sair sob pressão, porque não havia nenhum impedimento estatutário. Em 2026, João Lourenço vai deixar a liderança do partido, por imperativo estatutário, ou seja, sem pressão, e vai continuar na chefia do Estado até à eleição do novo Presidente da República no ano seguinte”, compara outro constitucionalista que acredita não existirem condições “políticas, económicas, sociais nem psicológicas” para uma alteração constitucional na legislatura corrente que implique outra leitura dos factos.


“A norma amarra, o estatuto é determinante, não poderá concorrer. Mas podemos também reforçar com o próprio costume do MPLA em como o presidente do partido sempre foi o Presidente da República, excluindo a situação de transição de 2017. Aliás, em parte, foi também o costume o argumento usado para se afastar José Eduardo dos Santos da liderança do MPLA e forçar-se o sexto congresso extraordinário que elegeu João Lourenço em Setembro de 2018”, precisa outro constitucionalista, para quem a interpretação dos estatutos implica “uma leitura sistemática, o que exige levar-se em conta incontornavelmente a limitação de mandatos”.


Questionado sobre o facto de o tema não ter sido, até ao momento, objecto de debate público, face ao seu inquestionável interesse nacional, um dos juristas do MPLA explica com uma possível “distracção dos jornalistas”, mas também com a possibilidade de o assunto ter passado ao lado até de figuras relevantes do partido, hipótese curiosamente confirmada com algumas consultas. O Valor Económico abordou integrantes do Comité Central e do Bureau Político do MPLA que se mostraram, em certa medida, surpreendidos ou desprevenidos. “Não me lembro que este tema em particular tenha passado”, respondeu, por exemplo, um dos dirigentes do MPLA. Pelo menos até ao fecho desta edição, o site oficial do partido (mpla.ao) também não tinha actualizados os estatutos anotados pelo Tribunal Constitucional em Junho deste ano, mantendo-se ainda publicado o anterior documento, aprovado no VII congresso ordinário, realizado entre 17 e 20 de Agosto de 2016.

Os estatutos por dentro

Com um total de 14 capítulos e 141 artigos, mais 10 do que os de 2016, os estatutos saídos do Congresso de 2021, e que, à parida, servirão de base para a eleição do presidente do partido e de outros órgãos em 2026, introduzem ajustes em outras matérias como a filiação, a convocação de congressos extraordinários e o número de suporte às candidaturas.


A alteração que produz efeitos mais significativos é, entretanto, o já mencionado artigo 120º, inserido no capítulo XI sobre ‘o Partido e os Órgãos do Poder Público’. Contrariamente aos estatutos anteriores que incluíam três artigos sobre a ‘designação de candidatos a deputados’, ‘os grupos de autarcas do MPLA’ e os ‘cargos de responsabilidade’, o novo documento adiciona um quarto artigo sobre a ‘designação de candidatos a Presidente e a vice-Presidente da República’. E é justamente neste ponto em que é colocada a norma que impede João Lourenço de apresentar-se como candidato à liderança do partido no próximo congresso. “Em rigor, caso esta norma não venha a ser alterada, o presidente do MPLA também só poderá fazer dois mandatos, considerando que o limite dos dois mandatos a Presidente da República também se consolide na Constituição”, explica um dos especialistas.


Os estatutos de 2021 conservam, entretanto, alguns pontos que, aparentemente conflituam com a norma estabelecida no artigo 120º. A alínea q) do artigo 81º sobre as competências do comité central determina, por exemplo, que este órgão delibere “sobre o candidato a Presidente da República”, quando esta figura é, na verdade, o candidato eleito no congresso, dispensando, por conseguinte, qualquer deliberação de qualquer outro órgão do partido. “Esta alínea deve ser resquício do antigo estatuto”, mas que “não afecta” a disposição do 120º, explica um dos especialistas, que transporta a mesma interpretação para a alínea c) do número 3 do artigo 91 sobre as competências do Bureau Político. Estabelece esta alínea que compete ao Bureau Político “propor candidatos ao cargo de Presidente da República, para a eleição pelo comité central”, o que, aparentemente, contrapõe as disposições conjugadas do número 2 do artigo 84º e da alínea d) do artigo 75º que fixam expressamente que o presidente do partido é eleito em congresso. “Não será o caso de uma confusão intencional. Parece-me mais o caso de normas meramente procedimentais e que, segundo entendo, ao invés de propor, deviam ter a redacção ratificar. Contudo, independentemente do que estiver em causa, nada disto põe em causa a norma do 120º. É preciso fazermos uma leitura sistemática dos estatutos”, insiste outro especialista que lembra que o conjunto do artigo 81º que fixa as competências do comité central em momento algum dispõe que este órgão elege o presidente do partido.

As motivações de João Lourenço

Um sociólogo e um politólogo foram consultados para analisarem as possíveis motivações do presidente do MPLA em ‘carimbar’ estatutos que lhe retiram a hipótese de continuar à frente do partido, antes mesmo de sair da Presidência da República em 2027. Afirmando-se “céptico” quanto a uma eventual “boa intenção de João Lourenço”, o sociólogo não exclui a hipótese de o presidente do MPLA ter sido “enganado”, embora acredite mais na explicação do “excesso de confiança e de cálculos errados” do líder dos camaradas. “O presidente João Loureço emitiu sinais muito claros de que não estava preparado para sair do poder em 2027, muito menos ainda para largar a liderança do partido. Terá analisado erradamente o xadrez”, afirma o analista.


Sem descurar a possibilidade de “algum erro de cálculo” do presidente do MPLA, o politólogo analisa que João Lourenço deve ter pretendido, acima de tudo, formalizar o costume nos estatutos, situação que, de resto, se verifica “na generalidade dos estatutos dos partidos políticos com destaque para a Unita que tem também fixado o seu presidente como o cabeça de lista pelo círculo nacional e, logo, candidato a Presidente da República”.


Esta leitura é corroborada por um dos constitucionalistas que exclui qualquer “arranjo” que permita o regresso à forma anterior. “Não vejo condições para se criarem expedientes que alterem o espírito da letra e da lei, no caso dos estatutos. A ideia é que o presidente do partido seja simultaneamente o Presidente da República, ou pelo menos, o candidato a este cargo, até para se evitar a repetição da experiência do passado. Como se viu, a bicefalia não funcionou no curto espaço de convivência entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos.

Portanto, pelo que me parece, qualquer tentativa de se criar um caminho para a alteração ou expurgação da norma do 120º será travada pelo próprio MPLA. Não vejo condições de o actual líder promover um recuo para uma potencial situação de bicefalia. Vão recordar-lhe certamente que, se não foi aceite com ex-Presidente, não poderá ser com ele também”, sentencia.

 
Jurisprudência do Tribunal Constitucional

O maior partido na oposição está na origem da criação da jurisprudência mais conhecida em matéria de resolução de conflitos internos e de interpretações de normas estatutárias. Em Outubro de 2021, o Tribunal Constitucional anulou o XIII congresso que, dois anos antes, havia eleito Adalberto Costa Júnior presidente da Unita.


Com fundamento na violação das normas do partido, da Constituição e da Lei, o Tribunal Constitucional argumentou, no acórdão nº 700/2021, que o Comité Permanente da Comissão Política da Unita não tinha legitimidade estatutária para alargar os prazos de aprovação e validação das candidaturas, tendo usurpado as competências da Comissão de Mandatos, violando os princípios da competência e da legalidade.


A questão de fundo residia no facto de Adalberto Costa Júnior, então presidente eleito, não ter apresentando em tempo útil o comprovativo da perda da nacionalidade portuguesa, situação que o tornava inelegível a presidente do partido, por força dos estatutos internos que determinam o líder como o candidato a Presidente da República, cargo para o qual são inelegíveis cidadãos com nacionalidade adquirida.


A decisão do TC acabaria assim por dar provimento à contestação de um grupo de membros do ‘galo negro’ que exigiu, na altura, a anulação do congresso. No conjunto da argumentação, apesar das referências à Constituição e à Lei dos Partidos Políticos, o Tribunal Constitucional fundamentou com recurso significativo à violação dos estatutos da Unita, saídos do congresso ordinário anterior, no caso o de 2015, e do regulamento eleitoral do XIII congresso. A Unita seria assim obrigada a repetir congresso, o que acabou por acontecer em 2022, ano das eleições gerais, com Adalberto Costa a Júnior a ser reconfirmado praticamente por aclamação.


Transportado o paralelo para a situação dos estatutos actuais do MPLA, uma eventual candidatura de João Lourenço teria de ser necessariamente inviabilizada, ‘ab initio’, pelos órgãos competentes internos do congresso. A disposição de que, à partida, são os actuais estatutos que regerão o congresso do MPLA de 2026 encontra-se, entre outros casos, fixada no número 4 do artigo 108º. Dita a norma que “os órgãos individuais e os membros dos órgãos colegiais representativos mantêm-se em funções até à eleição dos seus substitutos pelas estruturas competentes, nos termos dos presentes Estatutos e de regulamentos em vigor”.