Luanda - A vitória do candidato da extrema-direita, proclamado libertário, nas últimas eleições presidenciais argentinas, não é um episódio isolado: integra-se na tendência histórica, já verificada em outros tempos, de transformação do capitalismo em fascismo; mas, ao contrário do que sucedeu no passado, em que essa forma se limitava aos espaços nacionais dos países onde imperava, agora pode transformar-se numa verdadeira ordem global fascista.

Fonte: JA

Que tudo isso esteja a acontecer em nome da liberdade e da democracia, ou seja, que a extrema direita seja capaz de manipular esses conceitos para, uma vez no poder, os cercear e abolir ferozmente, é um paradoxo doloroso.


Tenho dito, várias vezes, que o liberalismo capitalista, sempre que se vê em perigo, com ou sem motivo, não hesita em transformar-se em fascismo. Acontece que o modelo capitalista, que viveu a sua idade de ouro entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o início dos anos 80, quando o Estado Social imperou na Europa e nos EUA, sendo capaz de combinar, pelo menos nessas duas grandes regiões, crescimento económico e bem estar das populações, com uma classe média alargada, começou a entrar em crise com o advento do neoliberalismo, implantado em todo o mundo em paralelo com a globalização. Movido pela ambição do lucro infinito, o neoliberalismo introduziu práticas que foram (vão) desde a deslocalização das indústrias até à transformação do capitalismo produtivo (fordista) em mero capitalismo financeiro ("capitalismo de casino”, chama-lhe Harvey), assente cada vez mais nos grandes bancos e nas big techs, com consequências sociais que estão a criar o caldo de cultura onde o fascismo medra.

 

Uma das regras básicas para aumentar exponencialmente os lucros é a redução dos custos com o trabalho. Da mudança das empresas para países de mão de obra barata ou onde os impostos são menores até à virtual uberização da economia, de que um dos traços mais significativos é a descaracterização e atomização do trabalho assalariado, impulsionada pelas novas tecnologias, o neoliberalismo global constitui um verdadeiro ataque organizado à imprescindível dimensão social da democracia. Os resultados desse ataque ao Estado Social estão aí: concentração excessiva e verdadeiramente criminosa da riqueza; aumento da pobreza interna e do fosso entre as nações; generalização da corrupção; e crise migratória, apenas para mencionar esses.

 

As consequências do ataque do capitalismo, na sua atual forma tecno-financeira (sem esquecer o papel de suporte das indústrias energéticas, velhas ou novas, e, claro, do complexo industrial-militar, assim como dos grandes conglomerados de comunicação), à componente social da democracia geram um caldo de cultura propício ao florescimento do fascismo. Dos discursos anti-política (como se esses discursos não fossem eles próprios "políticos”), à ideia de que todo o "sistema” é corrupto, ao justicialismo (como se viu na Lavajato brasileira e acaba de ver-se em Portugal, de forma mais mitigada, mas igualmente eficaz), aos ataques aos imigrantes, ao aumento do racismo e às diversas fobias religiosas, trata-se, todas elas, de acções que visam desconstruir a democracia, tal como a concebemos, implantando em seu lugar uma ordem fascista.

 

Não se trata, note-se, de um ataque ao modelo capitalista. Por essa razão, e em todo o mundo, os setores neoliberais não hesitam em aliar-se às forças fascistas (que, candidamente, apelidam de "populismo”) quando as políticas enquadradas na actual forma tecno-financeira do capitalismo correm perigo. Qualquer tentativa de preservar a dimensão social que o sistema democrático precisa de conter para sobreviver é considerada por essa aliança esdrúxula, mas não tão incomum assim, uma perigosa ameaça "socialista” ou "comunista”. Alguns dos signatários das mensagens de felicitações ao "anarco-libertário” argentino (como gostam de alcunha-lo alguns jornais da chamada grande imprensa ocidental, evitando chamá-lo por aquilo que ele realmente é) pela sua eleição para presidente (uma das mais entusiásticas foi a do presidente Zelensky, da Ucrânia) estão aí, para demonstrar como essa "santa aliança” é uma realidade.

 

Quanto às forças consideradas de esquerda, também têm a sua quota-parte de responsabilidade nesse cenário, caracterizado pela ameaça global do fascismo. Abordarei isso em próximos artigos.


*Jornalista e escritor