Luanda - O mano António Tavares partiu de repente. No plano pessoal, há tanto que não cabe aqui para dizer sobre o meu mano, Tavares. No plano político, estávamos em campos absolutamente antagónicos, mas o respeito, a amizade e a fraternidade estiveram sempre presentes.

Fonte: Club-k.net

António Tavares foi dirigente associativo do movimento social imigrante nos momentos mais marcantes da mobilização política pelos direitos das pessoas migrantes em geral, e das comunidades africanas, em particular. Teve um papel ativo e preponderante no Programa Especial de Realojamento (PER) e nas regularizações extraordinárias de imigrantes de 1992 e de 1996. Desempenhou funções públicas por nomeação e representativas pelo sufrágio eleitoral.

Na década de 90, entre a plêiade de protagonistas maiores, enquanto fundador e dirigente da ADA (Associação SOS Defesa dos Angolanos), Tavares acabaria por se destacar ao lado de figuras do movimento como Adriano Malalane, Afonso Gomes, Alcestina Tolentino, Amina Lawal, António Loja Neves, Carla Marie Jeane, Carlos Viana, Celeste Coreia, Celina Pereira, Domingos Centeio, Enoque João, Fernando Ka, Flora Silva, João Silva, Joaquim Pipa, Heliana Bibas, Januário Domingos, José Falcão, Malang Gomes, Manuel Correia, Maria João Marques, Mário Andrade, Mohamed Seck, Olga Santos, Padre Rui Pedro, Padre Vítor Melícias, Pedro Portugal, Soares Parente, Timóteo Macedo, Yolanda Fortes e de tantas outras de que não me lembro agora.

Há, efetivamente, alguns momentos do seu envolvimento que ficarão para sempre na história da luta pelos direitos das pessoas migrantes e contra o racismo. Quero destacar apenas alguns entre muitos:

O primeiro momento foi no primeiro processo extraordinário de regularização de imigrantes de 1992, em que várias associações de imigrantes decidem criar o Secretariado Coordenador das Associações para a Legalização (SCAL) que se prolongaria para o segundo processo de regularização, iniciado em 1996, com a criação da Comissão de Acompanhamento. António Tavares acabaria por ser eleito à frente da nova estrutura contra Heliana Bibas da Casa do Brasil. Esta estrutura adhoc, alojada no SEF, acabaria por contribuir para a regularização de dezenas de milhares de imigrantes que tinham sido deixados de fora nos processos de 92 e de 96.


O segundo momento foi em 2005 quando, com coragem, se ergueu contra o seu partido na altura (PSD) na Assembleia Municipal de Lisboa para denunciar o famoso arrastão que nunca existiu. Ele pronuncia um discurso muito mais contundente do que a maioria das bancadas da AML. Esta intervenção está no documentário “Era uma vez um arrastão que nunca existiu” da Diana Andringa.

 

O que lhe valeria vários dissabores internos e uma colocação na prateleira do esquecimento no seu partido.

 

O terceiro momento foi quando ele resolveu organizar uma homenagem ao Fernando Ka, em 2010. Fernando Ka, que tinha sido militante e deputado do PS, foi fundador e dirigente da associação Aguineenso que, na década 90, teve um papel central no PER e nos processos de regularização das pessoas imigrantes. Mas, apesar do seu papel histórico, Fernando Ka viu-se remetido ao esquecimento tanto pelo espectro partidário como pelo movimento associativo. O mano Tavares queixava-se deste apagamento do Ka e dizia-me: “mano, a nós cabe-nos homenageá-lo enquanto ele está vivo e dar-lhe a conhecer às novas gerações.” Coube-lhe então, enquanto anfitrião do evento no Café Império, de fazer o discurso inaugural. Num longo discurso que ele partilhará previamente comigo, entre outras coisas, ele dirá: “A luta do Fernando Ka foi sempre a de garantir que a democracia seja efetiva para todos, porque a democracia nunca será completa e efetiva enquanto uma parte da sociedade (nós negros) não fizer parte integrante da sua expressão.” Quanta generosidade!


O quarto momento foi em junho de 2011. Aqui vou finalmente trair um segredo: António Tavares, enquanto membro da bancada do PSD na AML e um dos assessores da vereação do PSD, teve acesso a uma circular interna racista do Comandante da Polícia Municipal de Lisboa, o subintendente José Almeida Rodrigues, que se manifestara contra a realização Festa da Diversidade no Martim Moniz. Escreveu o comandante na sua circular interna para o executivo camarário que os "habituais frequentadores destas zonas são, atualmente, na sua grande maioria, de tez negra, toxicodependentes e pessoas que se prostituem […] Tais indivíduos trazem consigo e põem em prática os seus usos e costumes de origem, o que, julgo, terá trazido ainda mais promiscuidade àquela zona da cidade". Chocado com teor manifestamente racista, sem nenhuma hipótese de influenciar a mudança de posição da polícia municipal e do executivo camarário, ele resolveu denunciá-la ao SOS Racismo. O comandante acabaria por ser demitido pelo então presidente da CML, Santana Lopes. Portanto, repondo a justiça da coisa, podemos dizer que se não tivesse sido a denúncia anónima de António Tavares, nunca teríamos tido conhecimento desta posição racista do comandante da polícia municipal, nem nunca lhe teria acontecido nada.


Quatro momentos marcantes de alguém que, apesar da sua filiação política, nunca hesitou em posicionar-se contra o racismo, apesar do preço que pagou por isso. Já na quarta-feira, após falarmos sobre a bolsa do nosso miúdo, Wilson, para a Universidade de Maryland, ainda falámos sobre a situação política no Senegal e a ameaça da extrema-direita em Portugal. Vou ter saudades das nossas divergências, dos nossos repastos interminavelmente longos com conversas sempre por terminar, das nossas conspirações pan-africanistas, onde o nosso antagonismo ideológico deixava lugar a interrogações distópicas e difíceis, mas com muita vontade de futuro. Até sempre, Comandante, como nos chamávamos afetuosamente...