Luanda - O Ministério Público (MP) indeferiu, na semana passada, três pedidos da defesa de Isabel dos Santos e co-arguidos, que pretendiam obter a confiança do processo, para poderem consultá-lo em seus escritórios. Porém, um especialista em Direito Penal, consultado pelo !STO É NOTÍCIA, considerou que o MP angolano, enquanto parte do processo, não tem legitimidade para tomar decisões sobre uma matéria em que é parte interessada na qualidade de acusador.

Fonte: ISTO É NOTÍCIA

“Do ponto de vista formal, a partir do momento em que o Ministério Público acusa, ele é parte do processo. Significa que nem devia ser o MP, primeiro, a notificar a acusação, e, segundo, nem sequer se devia pronunciar sobre a confiança de consulta do processo, porque isso é contraditório”, começou por abordar o especialista, que preferiu que a sua identidade não fosse revelada.

Para o penalista, em circunstância alguma devia o MP angolano pronunciar-se ou autorizar ou não a confiança do processo por ser ele parte do mesmo, sendo, por isso, suspeito que o tenha feito nas condições em que o fez enquanto acusador.

“Eu acuso-te e depois digo se consultas ou não o processo? É mais ou menos isso. Isto viola o princípio da ampla defesa e uma série de princípios do direito ficam beliscados com isso, porque ele é parte e está a pronunciar-se sobre aquilo que ele acusou. Devia ser um ente diferente a pronunciar-se se há consulta ou não. Se dá ou não o processo à confiança”, exemplificou.

O tema em questão é, segundo o especialista, um dos vazios que o novo Código de Processo Penal angolano acabou por não resolver, uma vez que “quem continua a notificar sobre as acusações é o Ministério Público, quando, na verdade, já não devia ser” e, sim, um juiz.

“A lei também não diz quem é que devia e quem seria o juiz [de garantia ou outro]. Mas, devia ser o juiz da secção em que o processo seria distribuído. O processo está na secção X, lá tem o MP e tem um juiz. É esse juiz que devia notificar sobre a notificação ao arguido. Se o arguido requerer a confiança do processo ou a consulta do processo também é o juiz que se pronuncia e não MP, porque ele é parte. Sendo parte, não pode decidir em causa própria. Neste caso, se houve um indeferimento, recorre-se a um juiz de garantia”, acrescentou.


O especialista entende que, para este caso em concreto da empresária Isabel dos Santos e co-arguidos, houve uma “violação do princípio do processo justo e equitativo”, que significa que o MP violou os critérios da objectividade, o princípio da imparcialidade, tendo agido como “juiz em causa própria”.

No despacho de recusa, o magistrado do Ministério Público evocou a “natureza secreta da Instrução Preparatória e o princípio do segredo de justiça” do processo, para argumentar que “o acesso ao processo via confiança solicitado implica a sua detenção material, impossibilitando que o mesmo esteja disponível na secretaria para os demais sujeitos processuais que também reivindicam a sua consulta”.

Na opinião do magistrado do MP, confiar o processo aos mandatários dos arguidos haveria de interferir “com o normal processamento e com os direitos dos demais intervenientes processuais”. Aliás, reforça o mesmo documento, “nos termos do disposto no Artigo 102.° n.° 1 alínea a) e n.° 3 do CPP, a consulta é feita na secretaria”.

Especialista desconstrói argumento do segredo de justiça

O especialista em Direito Penal não partilha da mesma opinião e lamentou, por um lado, que o Ministério Público angolano demonstre “ter pressa” de levar o caso a julgamento, e, por outro, rebateu a ideia do segredo de justiça evocado pelo MP, alertando para as duas vertentes do segredo de justiça: uma interna e outra externa.

“Ora, tendo havido a acusação e porque as partes depois da acusação podem requerer a abertura de instrução contraditória, não faz sentido que lhes seja coarctado o direito de ter a confiança do processo, que é ir a tribunal, buscar o processo e levar ao escritório e tirar cópias, para melhor preparar uma instrução contraditória. Portanto, não faz sentido coarctar esse direito”, frisou.


Segundo o penalista, o que levanta o Ministério Público é o ‘segredo externo’ e não o ‘interno’. No caso, o segredo interno aplica-se àqueles que não são sujeitos processuais, uma vez que, a partir do momento em que o arguido é acusado, ganha o estatuto de sujeito processual.

“Sendo sujeito processual, o arguido tem o direito de consultar o processo, de ter a confiança do processo. Portanto, não lhe pode ser coarctado esse direito, sob pena de violação, por exemplo, do princípio da igualmente e da ampla defesa”, salientou, acrescentando:

“Neste caso em concreto, o princípio da ampla defesa fica beliscado, porque se o advogado requerer instrução contraditória, apesar de ele consultar o processo na Secretaria, não é a mesma coisa que ter o processo e tirar cópia do mesmo. E ter as provas que o MP apresenta, os documentos que o processo tem. Não é a mesma coisa”.

O especialista defende, por outro lado, que o argumento do MP só faria sentido se em causa estivesse o segredo externo e não o segredo interno, partindo do princípio que os segredos externos não se aplicam aos sujeitos processuais, portanto, ao arguido. “Só quem não é sujeito processual é que não tem de ter acesso ao processo, porque é a parte externa”, referiu.

Penalista sugere recurso a juiz de garantia para contrapor indeferimento

O especialista defendeu igualmente que “o arguido não pode ser impedido de consultar o processo, nem de ter acesso à confiança do processo, já que se ele quiser requerer a instrução contraditória, tem de ter o mesmo tempo, oportunidade, o mesmo à-vontade que o Ministério Público teve e tem para preparar a sua acusação”.

É também da opinião daquele especialista que os mandatários dos arguidos forem impedidos de aceder ao processo, sempre podem recorrer do despacho do magistrado do MP a um juiz de garantia.

“Imaginemos que não haja despacho de pronúncia. Se não houver despacho de pronúncia, eles podem ter o processo à confiança, porque já sabem que o julgamento está marcado para o dia X. Por exemplo, o julgamento está marcado para o dia 30 de Janeiro, quer dizer que hoje, dia 22, podem ter confiança ao processo. Porém, oito dias não é tempo suficiente para preparar um julgamento daquela envergadura. Mas, se não houver pronúncia, só podem ter a confiança do processo. Isto pode pôr em causa questões estratégicas, os próprios prazos para ter acesso ao processo, às provas, e etc. Em termos concretos, o que é que acontece? Os arguidos ficam com menos tempo para se preparar!”, contextualizou.