Luanda - Entende-se, aqui, por territórios protegidos pelo domínio útil consuetudinário os sobados e reinos cuja organização política é anterior ao Estando angolano, com um povo que se revê nas mesmas tradições, língua, hábitos e costumes, um poder político, um território sob a autoridade de um rei ou soba e que prosseguem interesses próprios segundo as normas jurídicas costumeiras. Esses territórios são, historicamente, ocupados e aproveitados segundo os princípios da auto-administração e gestão sendo, nos termos da legislação fundiária vigente, indivisíveis e inconcedíveis.
Fonte: Club-k.net
Uma história de silenciamentos e crimes por omissão
O Estado angolano através do governo (governos) tem o dever de garantir a protecção dos interesses próprios das colectividades (direitos difusos), mas também, assegurar as liberdades de opções de escolhas dos seus cidadãos sobre o destino das suas vidas com particular atenção das famílias que integram os terras rurais comunitárias em territórios protegidos pelo domínio útil consuetudinário. A todos e em todos os lugares o Estado deve garantir uma qualidade de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. Contudo, desde a administração colonial aqueles territórios foram tratados sob vários silêncios e hipocrisia e simulacros. Esses silenciamentos são políticos, ideológicos, culturais, económicos e jurídicos, etc. Estamos a falar dos territórios que custaram desterros, torturas, prisões e sangue durante a ocupação colonial e as guerras de libertação nacional.
Infelizmente, depois da independência nacional alguns destroços da colonialidade prevalecem, ou seja, não foram removidas algumas práticas. As famílias naqueles territórios continuam sem o direito de propriedade sobre das suas terras num contexto em que a terra é acolhida como um activo económico para que o cidadão se devolva e ao mesmo tempo critério de cidadania nos termos do Decreto presidencial nº 216/11 de 8 de Agosto. O Estado chamou a si a propriedade originária da terra e dos recursos naturais inscritos em territórios das comunidades que integram os territórios do domínio útil consuetudinário. As famílias e os seus territórios transformaram-se em espaços, marcadamente, empobrecidos. A insegurança de posse da terra e dos seus meios de vida é extrema gerando um clima permanente de incerteza e medo.
Estará o Estado angolano, (in)advertidamente, a cair no crime por omissão ao silenciar, fazer pouco ou nada no quadro das suas obrigações e garantias em relação aos direitos das colectividades naqueles territórios?
1. O Estado angolano através do seu governo faz pouco ou nada para proteger o direito a memórias colectivas, à verdade histórica e identidades locais. O Estado angolano não reconhece os sobados e reinados como territórios, ou seja, como espaços com impressões humanas seculares e significados culturais e políticos, historicamente, construídos antes do Estado angolano. Tanto na Constituição de 2010 quanto na legislação fundiária vigente os territórios pré-estaduais são comparados ou reduzidos ao conceito de terras rurais comunitárias o que não é verdade. Não há sequer analogia possível entre os construtos terra e território. É este viés que faz ponte com a colonialidade e margens daqueles territórios. Aliás, continuam a ser designados como espaços rurais, o mesmo que, por civilizar ou urbanizar!! Aqui, vemos a racionalidade segundo o dualismo antagónico (não é o marco da diferença pela diversidade, mas da discriminação pela diferença).
O Estado faz pouco ou nada para proteger e promover os diferentes significados inscritos naqueles territórios enquanto lugar de pertença e memórias colectivas, mesmos hábitos, mesmas relações identitárias comunais, mesmas tradições e costume. O pacote legislativo autárquico aprovado nada dispõe sobre os links que poderão articular os três entes de base territorial: poder estadual, poder autárquico e poder segundo as normas do direito costumeiro. É importante que haja articulação de interesses das diversas colectividades e diálogos harmoniosos entre todos os poderes de base territorial, mas o que se pretende, oxalá, não ocorra, é apagar do mapa os territórios das comunidades protegidas pelo direito costumeiro. Isso já está a acontecer: primeiro, porque aqueles territórios não foram reconhecidos por titulação como se esperava aquando do lançamento do “Programa Minha Terra” estando sujeitos, piamente, ao esbulho; segundo, porque as autoridades do poder segundo o costume, que continuam sem uma norma que as regule, são, em rigor, um instrumento de quem governa.
2. O Estado faz pouco ou nada para proteger os sistemas de conhecimentos que, aqui, adjectivamos, como pré-coloniais ou comunais associados à conservação e protecção dos recursos genéticos o que está a dar azo ao fenómeno da biopirataria no país. O governo não está, de todo, alinhado com a Convenção sobre a Diversidade Biológica quanto à protecção dos conhecimentos pré-coloniais ou comunais.
3. O Estado angolano faz pouco ou nada para a realizar do direito ao desenvolvimento em territórios das famílias protegidas pelas normas do direito costumeiro. O direito ao desenvolvimento é, inicialmente, reconhecido às comunidades vítimas da colonização (territórios que são objecto dessa reflexão). O direito ao desenvolvimento sugere que se removam, como dizia Ishikawa (2022) as principais fontes de privação da liberdade: pobreza, carência de oportunidades económicas, no caso, em territórios protegidos pelo domínio útil consuetudinário e destruição social sistemática. Em todos os lugares e todo o cidadão ou grupos de pessoas, enfim, comunidades têm direito ao seu desenvolvimento económico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberade e da sua identidade. Contudo, cá, entre nós, as famílias naqueles territórios não podem aceder ao crédito bancário não só por falta de títulos, mas sobretudo, porque a terra não é sua propriedade. Aliás, o direito à terra naqueles territórios é colectivo, ou seja, serve para indicar que o cidadão A ou B vive nalguma comunidade). Não existem títulos individuais. Como se pode desenvolver sem direito à propriedade e num clima de permanente insegurança de posse da terra? Não existem programas de desenvolvimento sustentável naqueles territórios. Lá a fome é recorrente e crescente o êxodo rural, sobretudo, da juventude.
4. O Estado angolano através do seu governo faz pouco ou nada para evitar ou proteger as famílias à exposição vulnerável ao risco de desastre climático. As vulnerabilidades das comunidades não são naturais. Elas são criadas por inação, políticas porosas ou sem lente climática, injustiça climática (desenvolvimento que não faz ponte com os Direitos Humanos), etc. O registo dos fluxos das pessoas, internamente, deslocadas (PID) nos últimos anos no Centro e Sul de Angola são preocupantes, mas o Estado faz pouco ou nada para evitar ou proteger as PID à luz da Convenção da Unição Africana para Protecção e Assistência às PID em Angola. A fome associada à deplecção dos meios de vida em razão do impacto das alterações climáticas é, cada vez mais, recorrente. Ela é um crime. A seca no Centro e Sul de Angola decorrente das alterações climáticas é secular, mas o governo não consegue produzir Guias de Adaptação Climática para os diferentes sectores produtivos em Angola. O Estado angolano faz pouco ou nada para evitar o abando de boas práticas milenares de produção de resiliência e robustez comunitária. A excessiva monetarização da economia agravou, ainda mais, as economias comunitárias. As formas de produção e conservação de alimentos e, nalgumas comunidades, os celeiros comunitários deixaram de existir. Pouco ou nada se faz para dar resposta à injustiça climática. A ciência não tem sabido dialogar com os conhecimentos comunais ou ciência pré-colonial. Pode ser o governo sentar no banco de réus por crimes de omissão?
*Bernardo Castro, Activista para Justiça Fundiária e Climática