Luanda - [O grande perigo que todos deveriam ver]

‘‘Os momentos mais felizes da minha vida foram aqueles, poucos, que pude passar em minha casa, com a minha família.’’ ~ Thomas Jefferson (1743-1826)
O que é família?

Partindo do pressuposto de que ‘‘definição’’ difere de ‘‘conceito’’, não existe uma definição de família (devido a complexidade do assunto). Apesar dos pesares, a família pode ser compreendida basicamente como uma agregação de pessoas de diferentes sexos (ou gêneros), idades, e, normalmente, diferentes classes sociais, cores, ‘‘raças’’, etc., ligadas entre si por laços afetivo e sanguíneo (no caso de geração) e/ou legal (no caso de adoção).

Qual é a importância da família?

Ela é extremante importante, uma vez que é a base da sociedade, o núcleo fundamental da organização da sociedade, conforme consta no Código da Família de Angola (Lei n.o 1 /88, de 20 de Fevereiro). Ela é basicamente a primeira escola do homem, a quem cabe a responsabilidade pela sua preparação à inserção na sociedade (concede-lhe identidade pessoal básica, ajudando-o a definir quem é e de onde vem) e pela continuidade da espécie humana (trazendo ao mundo novos seres humanos), além dos benefícios económicos.


A família desempenha papéis fundamentais no que diz respeito ao provimento de serviços e de proteção social ao homem, face aos riscos e vulnerabilidades em que está exposto (especialmente quando criança). É um espaço de distribuição de recursos materiais, de afetividade, cuidados, construção de valores, transmissão de conhecimentos (sobre a vida, a natureza, etc.) e, consequentemente, da criação, desenvolvimento e perpetuidade da cultura.


Devido a essa extrema importância a família tem a proteção do Estado (ou Governo), que a regulamenta através de políticas relacionadas ao casamento, ao divórcio, a adoção, ao aborto, ao parto, a herança, etc., e intervém quando algo periga a mesma. O Estado (ou Governo) colabora com essas responsabilidades da família, estabelecendo padrões básicos de direitos e deveres, e ela (a família) tem o papel de mediar as relações dos seus membros com as Instituições sociais, com a comunidade e com o Estado (ou Governo).


É claro que na família, assim como em qualquer esfera humana, nem tudo é ‘‘leite e mel’’; pelo contrário, ela é também um espaço permeado de conflitos. Tal como se tem dito; ‘‘não existe família perfeita’’. Problema(s)? Até onde se sabe, sempre houve e, provavelmente, sempre haverá em todos os lugares onde haver mais de um homem. Afinal, ‘‘o inferno são os outros’’, como disse o filósofo francês Jean-Paul Sartre (do século XX). Esse é um dilema humano abordado por mui intelectuais como, por exemplo; o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (do século XIX), Jean-Paul Sartre e o historiador brasileiro Leandro Karnal. Somos como porcos-espinhos, cuja a dor na aproximação aos nossos semelhantes (a busca do calor necessário na vida) é inevitável! Solução? Parece ser mais sensato ‘‘achar uma distância segura, que trouxesse o calor necessário e evitasse o ataque’’, conforme consta no livro ‘‘O dilema do porco- espinho’’ (de Karnal), e não nos afastarmos totalmente e nem ficarmos mui próximos, uma vez que ambas as situações chegam a ser fatais.


A família e a história

Segundo o marxismo, a família é um produto do processo histórico correspondente a um sistema de solidariedade e de divisão social do trabalho. Um fato nessa tese é que a família, assim como o homem que a constitui, é uma coisa histórica. Tal como Elizabeth Souza e Maria Rodrigues disseram num artigo intitulado ‘‘Família e paternidade: o papel do pai na criação dos filhos’’; ‘‘A família é uma instituição historicamente constituída que ao longo do tempo sofre modificações em função das transformações econômicas, culturais e sociais [...]’’. Transformações essas que fazem parte do campo de estudo da Sociologia da Família.


Por exemplo, a família no século XVI era fundamentada apenas na conservação e preservação dos bens, segundo Áries. Segundo Guimarães, na Idade Modernidade, com o surgimento da escola, da privacidade, da preocupação de igualdade entre os filhos, do sentimento de família valorizado pelas Instituições, principalmente a Igreja, houve uma transformação (que continua até hoje) da família, de alargada à nuclear (burguesa).


Portanto, que a organização e a estrutura da família são afetadas significativamente pelas questões políticas, económicas e sociais vigentes, é um facto indubitável para qualquer pessoa que conhece (ainda que um pouco) a história da humanidade. Assim sendo, o impacto do contexto político, econômico e social sobre a família não deve ser ignorado.


“Os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda rapidamente.” ~ Zygmunt Bauman (1925-2017)


Desde o final do século XX a princípio do século XXI há uma mudança de paradigma de forma impercetível para a maioria. Porém, mui dos intelectuais contemporâneos notaram e descreveram essa mudança, onde dentre os mais destacados temos o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (séculos XX e XXI) e o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Han relatou a mudança por ele detetada na sua obra intitulada ‘‘Sociedade do cansaço’’, onde disse que ‘‘imperceptivelmente, já desde há algum tempo, vai se delineando uma mudança de paradigma [...] a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho’’.


Já Bauman aborda a mudança de paradigma por ele observada no seu clássico livro ‘‘Modernidade líquida’’, descrevendo-a como mudança de uma ‘‘modernidade sólida’’ para uma ‘‘modernidade líquida’’, resultado de um ato (praticamente a principal característica da modernidade) que Karl Marx e Friedrich Engels (ambos de século XIX) chamaram de “derreter os sólidos”. Tal como ele disse na sua obra acima citada; ‘‘se o ‘espírito’ era ‘moderno’, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da ‘mão morta’ de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo)’’. É tendo em vista esse facto que mui setores de estudos afirmam (e com razão) ter sido a modernidade a desagregadora das bases sólidas da família no passado (coisas como valores, tradição, amor, etc.).

Ele, nessa mesma obra, explica o porquê de ter classificado esta nova era como ‘‘uma era líquida’’; ‘‘(...) Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo [...], os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la [...]’’.


Com as modificações no tecido social, onde tivemos (e temos); a elevação do homem à posição de Deus (a falsa autossuficiência); o relativismo absoluto (herdado da era pré- socrática e do iluminismo); o desprezo ao velho (principalmente as tradições); a obsessão pelo progresso ou aperfeiçoamento (principalmente do corpo); a liberdade (ou libertinagem); perda da autoridade dos pais; a fragmentação e atomização do social e, consequentemente, ‘‘liquefação’’, volatilidade e/ou efemeridade das relações humanas; o consumismo; o excesso de informações e de desempenho (excesso de positividade e afazeres) e, como consequência, esgotamento e falta de tempo, etc. (resultantes das modificações política, económica e social ocorridas principalmente nos finais dos séculos XIV e XX ), a família vem sofrendo modificações na sua organização e estrutura, sendo atualmente caraterizada principalmente por; (a) ausência do papel de preparação do homem à inserção na sociedade nos seus papéis; (b) ‘‘endeusamento’’ ou ‘‘divinização’’ dos filhos; (c) fragmentação e atomização; (d) indiferença (entre os membros, obviamente); e (e) divórcio (ou separação).


1. Eliminação do papel de preparação do homem à inserção na sociedade dos papéis da família ‘‘A geração de hoje sofre não pela falta de opções, mas por incapacidade de escolha.’’

~ Zygmunt Bauman (1925-2017)


As experiências adquiridas pelas gerações precedentes (pelos ancestrais) são cruciais para a sobrevivência das gerações sucessoras, e cabe a família (como vimos acima), através da coesão e tradição oral, transmitir estas experiências (conhecimentos acumulados pela humanidade) às novas gerações; processo que, associado a transmissão de novas experiências e/ou novos valores adquiridos pela nova geração à geração antecedente, cria uma cooperação entre as duas gerações (a antiga e a nova), tornando possível a vida na sociedade.


Eurídice Freitas abordou sobre a importância da comunicação na família num artigo intitulado ‘‘O estudo da situação familiar através da entrevista’’, onde disse o seguinte; ‘‘A comunicação é o processo essencial porque sem ela seriam impossíveis a formação do grupo familiar, a transmissão da cultura e a formação psicológica de seus membros; na cooperação, há articulação de esforços para a obtenção de objetivos comuns, sejam materiais ou simbólicos. Comunicação e cooperação tendem a unir o grupo, integrando-o em relações harmoniosas, enquanto a competição e o conflito agem como forças desagregadoras.’’

Daí a importância da interação entre os membros da família e da tradição. Importância da, digamos, ‘‘educação de casa’’ ou educação não escolar, da instrução e acompanhamento por parte dos mais velhos (sejam avós, pais, irmãos, etc.) para com os menores (netos, filhos, irmãos, etc.). O que, segundo Duval, junto do desenvolvimento dos membros da família, são elementos organizadores da vida familiar.


Porém, atualmente praticamente isso já não acontece por diversas razões, tais como; dissolução da família alargada e surgimento da família nuclear (no seu lugar); ausência constante dos pais; carpe diem; excesso de padrões; avanço das tecnologias (TV’s, Computadores, Smartphones, Jogos, etc.); antagonização ao velho e, consequentemente, a exclusão dos avós (entre outros fatores). Os avós deixaram de narrar a vida, isto é, de ajudar a nova geração a compreender a vida deles a partir da experiência acumulada das gerações, como disse o filósofo alemão Walter Benjamin (do século XX), citado por Luiz Pondé.


O homem contemporâneo é imbuído de um espírito refletido na frase de Henry Ford (séculos XIX e XXI), que diz o seguinte; ‘‘Nós não queremos tradição. Queremos viver no presente, e a única história digna de interesse é a história que fazemos hoje’’. Esta humidade atual que, em nome da liberdade (ou libertinagem), progresso e felicidade, quer esquecer o passado e focar-se apenas no presente, não vê que a memória do passado e a preocupação com o futuro são os pilares em que se apoiam a cultura, a moralidade, e as grandes realizações humanas.


Atualmente os padrões e configurações não são mais dados, como disse-nos Bauman. Cabe a família a responsabilidade por estimular e sinalizar a individualidade dos seus membros, colaborando para a preparação de futuros adultos conscientes de seus papéis enquanto partes da sociedade em que se encontram, porém hoje esta tarefa foi delegada ao próprio indivíduo e, como consequência, somos pessoas com caráteres voláteis e desesperadas, uma vez que a vida é cheia de incertezas e inseguranças. Como bem disse Karnal numa palestra sobre ‘‘velhos e novos pecados’’, o homem moderno deixou de ser o ‘‘𝘩𝘰𝘮𝘦𝘮 𝘷𝘪𝘵𝘳𝘶𝘷𝘪𝘢𝘯𝘰’’ (no centro do universo, pintado pelo italiano Leonardo da Vinci), que sabia quem era, de onde via, aonde ia e como deveria viver, para se tornar no homem pintado no ‘‘Grito’’ (pelo norueguês Edvard Munch), a saber, um homem desesperado. Pois, conforme dito no livro (acima citado) de Bauman, ser abandonado a seus próprios recursos chega a originar tormentos mentais. A agonia da indecisão origina um medo paralisante do risco e do fracasso.


Citando A.-D. Sertillanges (séculos XIX e XX); ‘‘Estamos num trem propelido a toda velocidade, sem nenhuma sinalização à vista, nenhum agulheiro’’. É a ausência desses padrões, códigos e regras que poderiam nos servir de sinalização, de pontos estáveis de orientação (pelos quais podíamos nos guiar nesta vida cheia de incertezas), em grande parte a causa da colossal angústia/insegurança, depressão e suicídio que assolam a população atual. Penso que foi tendo isso em consideração que Eder Lu disse que; ‘‘um homem sem família é uma estrada sem rumo, navio sem comando e uma árvore sem raiz’’.
Segundo Engels, na modernidade o pai era professor, patrão e detentor do poder econômico na família nuclear e, portanto, a (principal) autoridade. À esposa (mãe), cabia a responsabilidade pela organização do lar e pelo cuidado com os filhos. De modo geral, o acompanhamento das atividades, cuidados com a alimentação, a higiene e com a educação não escolar cabiam à mãe.

Com a transformação da família, de alargada a nuclear, e, consequentemente, a exclusão dos avós, tios, etc., a única esperança que resta (isto é, o último meio pelo qual as experiências de vida obtidas pela humanidade poderiam ser passadas às novas gerações) é mãe; porém, como consequência do ato de semear o descontentamento em relação a vida da mulher (mãe) antigamente, através da demonização do trabalho doméstico e da idealização do trabalho fora de casa (demonstrada pelo dr. Benjamim Wiker, no seu livro intitulado ‘‘10 livros que estragam o mundo’’), e, consequentemente, a emancipação feminina, junto da transformação da família de ‘‘unidades de produção’’ para ‘‘unidades de consumo’’ e das dificuldades financeiras-económicas que mui famílias enfrentaram/enfrentam, grande parte das mulheres abandonou os papéis cruciais que lhe cabia para ter também uma inserção (maior ou mais ativa) na cadeia produtiva de bens. Como sabemos, hoje na maior parte das famílias as despesas estão sendo divididas entre o homem e a mulher (pai e mãe). Betty Friedan (séculos XX e XXI), assim como mui feministas, acreditava que as mulheres podem ter uma inserção (maior ou mais ativa) na cadeia produtiva de bens e ainda assim criar devidamente os seus filhos, o que a Michelle Obama, mulher do ex-presidente dos Estados Unidos (Barack Obama), classificou como uma mentira. Ela disse; ‘‘Alguns me disseram: ‘você consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Apenas aguente firme, termine sua educação e você poderá ter seus filhos, continuar magra, estar em forma, amar seu marido, arrumar-se bem e criar crianças saudáveis’. Isso era uma mentira”.


Friedan considerava a possibilidade do amor materno poder explicar o motivo dos filhos das pessoas da classe média sofrerem sintomas neuróticos comum em sua época. Ela disse que seria melhor para as crianças se suas mães dessem-lhes um beijo pela manhã e outro à noite e, nesse meio tempo, as deixassem aos cuidados das escolas, das creches e dos programas de televisão, o que a maior parte das pesquisas psicológicas demonstrou ser falso, como ela mesma chegou a reconhecer.


Com a emancipação feminina e, consequentemente, a distribuição das tarefas no lar às duas partes (ao pai e a mãe) e a transformação da família de alargada a nuclear, os últimos meios pelos quais essas experiências de vida podem ser passadas às novas gerações são os pais; porém, hoje há uma redução dos papéis paterno e materno à cuidados como; formação para o mercado de trabalho, saúde, habitação, vestuário, lazer e transporte. A semelhança de Jean-Jacques Rousseau (que abandonou os seus 5 filhos no Hôpital des Enfants-Trouvés para desfrutar da vida sem o embaraço dos mesmos) nós, principalmente os das ‘‘classes mais privilegiadas’’, abandonamos os nossos filhos (mesmo que não para todo sempre) em escolas, centros infantis, centros de formação de inglês, escolas de natação, de música, de dança, de artes marciais e plásticas, etc., para termos uma inserção maior na cadeia produtiva de bens. Instituições essas que estão mais voltadas ao lucro e autoajuda, do que outra coisa.


Por essas razões a percepção da família como um espaço de afetividade, cuidados, construção de valores, transmissão de conhecimentos (sobre a vida) é questionável.


2. ‘‘Endeusamento’’ ou ‘‘divinização’’ dos filhos

Hoje somos uma sociedade do ‘‘sola beatitude’’, isto é, de seres hedonistas ou utilitaristas, que abraçaram a ideia utilitarista de John Stuart Mill (do século XIX), segundo a qual; “o fim último, em referência ao qual e para o bem do qual todas as outras coisas são desejáveis, é uma existência isenta ao máximo possível de toda dor, e tão rica em prazeres quanto for possível”.


Procuramos afastar o máximo possível de nós mesmos e dos nossos filhos a dor (começando com a eliminação da punição, em casa e na escola), sujeitar-lhes o mundo (fazer e/ou dar-lhes tudo que eles quiserem) e tratá-los como os seres ‘‘mais especiais do universo’’.


Como consequência desse ‘‘endeusamento’’ ou ‘‘divinização’’ (que também se deve a uma tentativa de compensarmos o abandono, isto é, a nossa constante ausência), junto da eliminação dos papéis da família a preparação dos mesmos à vida, da carência de vínculos e da sujeição (bajulação) do mercado (em especial a autoajuda) à estes ‘‘deuses’’ (que os veneram para lucrar), acabamos assim originando seres mui narcisistas/egoístas, mimadinhos e frouxos (tomando emprestado as palavras de Pondé).

a) Seres narcisistas/egoístas


Mui lamentavelmente o homem atual (homo eletronicus) é mui narcisista/egoísta. Para citar Han; ‘‘provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se’’. Os homens atualmente sentem-se no centro do universo e, consequentemente, autossuficientes, isto é, que não precisam de ninguém (inclusive esposas, esposos, amigos, irmãos, etc.), levando-os assim se chocarem com a realidade (já que a natureza, além de mais forte que nós, não se sujeita à todas as nossas vontades) e a terminar facilmente um relacionamento quando há algum problema, mesmo que passível de ser solucionado. Sabemos por experiência que quem tem a convicção de que não precisa de algo ou alguém nada ou pouco fará para mantê-lo, inclusive diante da possibilidade de perde-lo.


Lembro-me de uma vez ter ouvido uma psicóloga na rádio abordando sobre a pouca durabilidade dos relacionamentos atuais (o ano, o nome da rádio ou do programa e o da senhora não gravei, lamentavelmente). Ela disse que uma das causas do fim dos relacionamentos atualmente é o hábito (fruto do consumismo) de se livrar de algo quando há algum problema, mesmo quando se pode concertar. Esse é uma das principais características do homem moderno, principalmente das classes média e alta. E é um fato inegável que as constantes práticas tendem a se tornar hábitos; portanto, normalmente quem cresce a livrar-se de algo quando há algum problema acaba por adquirir tal prática como hábito e, consequentemente, a probabilidade de não se livrar do seu relacionamento quando haver algum problema (o que é normal nos relacionamentos) é simplesmente escassa! E a relação humana é uma coisa a ser trabalhada com grande esforço e sacrifício. É tarefa de ambos os parceiros envolvidos numa relação fazer com que a relação funcione. Eis algumas das razões pelas quais mui relacionamentos (inclusive familiares), ‘‘felizes e eternos’’, são frios e efêmeros.


Também é verdade que o narcisismo está na base da queda dos índices de fertilidade, particularmente nas sociedades mais desenvolvidas, sob a suposição de que não ter filhos é crucial para usufruir uma vida melhor, uma vez que filhos são muito profundos em afetos e afetos profundos são mui difíceis de lidar. Pondé falou disso resumidamente no seu livro supracitado. O que, como ele bem observou, junto de outros fatores, como o número elevado de abordo e a homossexualidade (nada de preconceito, por favor!), faz com que a humanidade caminhe paulatinamente para o estouro da previdência e envelhecimento mórbido.
b) Seres mimadinhos e frouxos


‘‘O sofrimento precisa ser superado, e o único modo de superá-lo é suportando-o.’’ ~ Carl Jung (1875-1961)


Hoje, mui lamentavelmente, as pessoas são mui mimadinhas e frouxas, incapazes de enfrentar os problemas da vida e, consequentemente, solitárias (mesmo quando rodeadas de pessoas ou no enxame digital), depressivas e suicidas. E isso pode ser observado, especialmente em países europeus, onde aparentemente as crianças são mais mimadas e, como consequência, os índices de insegurança e de suicídio são os mais elevados do mundo.


Pondé chamou atenção sobre as abundantes mentiras sobre mulher, alimentadas pela justa necessidade de se combater a violência doméstica contra as mulheres e a recusa da inserção (maior) das mesmas no mercado de trabalho por puro e simples preconceito. A semelhança disso, penso eu, há mentira concernente a criança, alimentada pela justa necessidade de se combater a violência contra as crianças, o trabalho infantil, o abuso sexual infantil, etc. É um fato que lamentavelmente antigamente as crianças sofreram mui (e, até onde se sabe, infelizmente há ainda mui delas nesta triste e revoltante situação). Por exemplo, segundo o historiador e arqueólogo Pedro Funari, na antiga Grécia as crianças que não eram fortes e saudáveis eram jogadas de um despenhadeiro. Ainda me lembro de um ex-professor do Io Ciclo do Ensino Primário, que nos batia na bochecha de modo que um anel que tinha num dos dedos da mão marcasse-a. Coisas do gênero são indubitavelmente repugnantes! Porém, isso não quer necessariamente dizer que repreender as crianças ou puni-las seja totalmente mau! Sabemos por experiência que isso não é verdade! Eu e outras tanta gente, que nasceu na mesma fase que eu ou antes, fomos criados com berros e palmadas (surras de chicote de tudo PPR, de condutor de eletricidade entre outros. Pelo contrário, as pessoas desta ‘‘criação utilitarista’’ são exatamente as pessoas as mais ‘‘perturbadas’’ (como é o caso das pessoas dos países mais desenvolvidos).


Segundo Émile Durkheim (séculos XIX e XX), ‘‘[...] é a ‘norma’ medida pela média ou pelo mais comum, e apoiada em duras sanções punitivas, que verdadeiramente liberta os pseudo-humanos da mais horrenda e temível das escravidões; o tipo de escravidão que não se esconde em nenhuma pressão externa, mas dentro, na natureza pré-social ou associal do homem’’.


Mesmo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (do século XIX) sabia que esse modo de educação/criação utilitarista é mau, e isto pode se verificar na sua seguinte fala;
‘‘Vocês querem, se possível – e não há nenhum ‘se possível’ mais absurdo – abolir o sofrimento? E nós? Parece que o que nós queremos de verdade é tê-lo em maior e mais aguda medida que nunca. O bem-estar, conforme vocês o entendem – isso não é um objetivo, e a nós mais se parece com um fim, um estado que logo torna o homem ridículo e desprezível – isso faz com que sua destruição até seja desejável.

A disciplina do sofrimento, do grande sofrimento – vocês não entendem que essa disciplina sozinha gerou todas as melhorias do homem até hoje? Aquela tensão da alma quando se encontra infeliz, que cultiva sua força, seu estremecimento perante a decadência atemorizante, sua inventividade e sua coragem para suportar, perseverar, interpretar e explorar o sofrimento, e tudo o mais que lhe foi concedido de profundo, de secreto, de dissimulado, de espiritual, de hábil, de majestoso – não foi tudo isso lhe concedido através do sofrimento, através da disciplina do grande sofrimento?’’


Ainda sobre o assunto, há um provérbio oriental que diz que ‘‘homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis criam homens fracos (...)’’. Outro semelhante à esse, tão famoso quanto sábio, diz que ‘‘dificuldades fazem o homem’’. Essa é uma das razões pelas quais essa ‘‘criação utilitarista’’ contemporânea, apesar dos pesares, é má!


3. Indiferença (entre membros da mesma família)
‘‘[...] Ninguém está nem aí para pais, irmãos, primos, tios, avós, e vice-versa.’’ ~ Luiz Pondé


‘‘Imagine que você tenha chegado aos cinquenta anos muito bem de vida. Que você tenha saúde, sexo à vontade, grana e uma p*ta casa. Agora imagine que você acorda no meio da madrugada depois de um pesadelo e se debate na cama. Olha ao redor e está só, porque vive só. Suas opções ao longo dos anos foram sempre em favor das garantias profissionais. Isso ‘pagou bem’, mas, às vezes, como agora, às três da manhã, você se sente miseravelmente só. Tem filhos, mas nunca os vê porque eles também estão ocupados com a vida deles. O espectro da solidão do velho o atormenta. O corpo, já não tão jovem, começa a dar sinais, mostrando que ele é seu dono e não você o dono dele. Você se levanta, anda pela enorme casa vazia e se pergunta: o que eu fiz da minha vida? Onde estão meus vínculos afetivos duradouros? Será que você os dissolveu no sucesso profissional e no desejo narcísico de só pensar em si mesmo?’’. Isso é uma ilustração do romantismo feita por Pondé no livro ‘‘Filosofia para corajosos’’. Entretanto, é também uma ilustração da vida contemporânea (uma vida de indiferença e solidão).


Quanto a solidão, para se ter uma melhor noção dos seus males, por exemplo, segundo Karnal, em 2003 morreram de solidão mais de 11 mil pessoas na França (sendo a maior parte velhos) e o governo da ex-primeira ministra britânica (Theresa May) criou um Ministério da Solidão para combater o mal da solidão, que tende a levar à depressão e ao suicídio, uma vez que os vínculos afetivos são essenciais na vida humana (e não só).


No que concerne a indiferença, ela é causada pela fragmentação e atomização social (que por sua vez é causada pelo excesso de desempenho e afazeres, entre outras coisas), e leva ao não (ou pouco) convívio e comunicação, que são indubitavelmente crucias nas relações humanas (como já vimos acima).


Isso explica em parte o grande número de lar de idosos e centros de acolhimento. Há um número elevado de idosos e crianças abandonados. Não vamos ser hipócritas! As crianças e os idosos mui vezes chegam a ser insuportáveis, tanto no que diz respeito a mente como ao bolso. Idosos e crianças requerem mui paciência, dinheiro e tempo. É, de facto, mui difícil lidar com os mesmos, mas é só refletir sobre a chamada ‘‘regra de ouro’’, a saber; ‘‘não faças aos outros o que não gostarias que ti fizessem’’. Como você se sentiria se, após morrer, soubesse que a sua filha ou o seu filho vive na rua, ou que passa mui dificuldades financeiras, sabendo que você tem familiares em vida que poderiam ajudar? Se fosses idoso, preferirias morar com os teus filhos ou num lar de idosos? Ficarias feliz se os teus filhos te levassem num lar de idosos, sabendo que há espaço para você na casa deles? Que reflitamos sobre isso!

4. Divórcio/separação


Hoje, em função do narcisismo/egoísmo exacerbado (que origina a convicção de autossuficiência e a pouca entrega nas relações) e, consequentemente, da superficialidade das relações, em função da pressão de desempenho (a luta incessante por uma maior inserção na cadeia produtiva de bens), da transformação do ‘‘lar’’ em ‘‘ringue’’, da liberdade (ou libertinagem, inclusive sexual), da sola beatitude, dos avanços tecnológicos e não só (onde se destacam as redes sociais), e, em consequência, da falta (ou escassez) de tempo e indisposição para convívio familiar, etc., a indiferença e a separação/divórcio tomam conta das relações humanas. E, como consequência de tudo disso, a família está num processo de auto abolição. Parece que até certo ponto Marx estava certo ao afirmar que a história está galopando para a abolição da família.


A família alargada (composta por avôs, pais, tios, filhos, primos, netos, etc.) está se dissolvendo e dando lugar à família nuclear (composta apenas por pai, mãe e filhos). E, concomitantemente, essa última, para tomar emprestada as palavras de Bauman, está começando a se desintegrar no divórcio, se transformando em família monoparental, composta apenas pelo pai ou pela mãe e os filhos (que também estão a ceder o lugar à cachorros, gatos, etc.). Não é à toa que Ulrich Beck (séculos XX e XXI) mencionou a família, junto da classe e do bairro, como principais exemplos de “categorias zumbi” e “instituições zumbi” (que estão ‘mortas e ainda vivas’).


Antigamente o casamento era algo sagrado e indissolúvel. Hoje está mui distante disso. Algumas das principais causas dos mui divórcios/separações atuais (além das supracitadas) são;


a) A ideia mui passada em músicas, novelas, filmes (principalmente romances), redes sociais, etc., de que é logicamente possível um relacionamento perfeito (sem sofrimento; brigas, decepções, etc.) e que o divórcio ou separação é o melhor a ser feito quando:

- Um dos parceiros amorosos se apaixona por uma outra pessoa ou, principalmente, quando ambos não se sentem mais apaixonados um pelo outro;

- Os parceiros não têm condições financeiras para satisfazer as necessidades materiais das suas parceiras (coisas como; ‘o amor não paga renda’, que não estar abastecendo a parceira com bens materiais é estar desvalorizando-a, etc.);

b) A traição, que resulta;

- Do apego material exorbitante;

- Da ideia já mencionada de que não estar abastecendo a parceira com bens materiais (principalmente da moda) é não valorizá-la;

- Da ideia de que apoixonar-se sempre que se ver uma pessoa atraente é tão ‘‘natural’’ e razoável, tanto que a resistência à ela é uma privação da ‘‘felicidade’’ e um ‘‘velho tabu’’, que já deveria ser derrubado (quando claramente apaixonar-se por qualquer pessoa bonita/formosa está mais para doença do que outra coisa);

- Da normalização desse ato (traição).

c) Deslealdade. Os músicos que, direta ou indiretamente, incentivam as mulheres a serem interesseiras são pessoas que pensam a curto prazo e estão preocupadas apenas em agradar a população (em especial as mulheres, obviamente) e lucrar, na ingenuidade de que isto não os afeta (direta ou indiretamente). São pessoas que fazem um desserviço social! É fácil defender que, por exemplo, é normal (para não dizer certo) que uma mulher abandone o seu parceiro quando este não tem nada a lhe dar, ou quando ela encontra um homem que pode dá-la uma vida melhor (financeiramente falando); é fácil defender ser normal que um homem abandone a sua parceira quando ele simplesmente apaixona-se por uma outra mulher (mais) atraente, ou quando a sua parceira apanha alguma doença que a faz deixar de ser atraente. É fácil defender que um dos parceiros deixe o outro quando, por exemplo, sofre um acidente que o deforma ou uma doença grave, abandando-lhe com os filhos, sem se importar com os seus sonhos, sem se importar com seus sentimentos. Difícil é quando é a nossa irmã ou filha que foi abandonada com os seus filhos pelo seu parceiro porque ela deixou de ser atraente por alguma razão, ou quando é o nosso irmão ou filho que foi trocado pela sua parceira por um outro homem financeiramente melhor (que mui vezes é o chefe da mesma). A opinião muda rapidamente ao ver a sua irmã ou irmão (filha ou filho) chorando amargamente, sendo consumido(a) por uma dor profunda, não querendo comer ou mergulhando no álcool, na tentativa de afogar as mágoas (principalmente aquando de um momento que mais precisava dela ou dele).


C.S. Lewis (do século XX), um crítico literário e escritor inglês, no seu livro ‘‘Cristianismo puro e simples’’ trouxe uma abordagem simplesmente magnífica a respeito do casamento e divórcio, tão magnifica que sou obrigado a ‘‘me calar’’ e deixa- lo falar;
‘‘A idéia crista de casamento se baseia nas palavras de Cristo de que o homem e a mulher devem ser considerados um único organismo – tal é o sentido que as palavras ‘uma só carne’ teriam numa língua moderna. Os cristãos acreditam que, quando disse isso, ele não estava expressando um sentimento, mas afirmando um fato — da mesma forma que expressa um fato quem diz que o trinco e a chave são um único mecanismo, ou que o violino e o arco formam um único instrumento musical [...]


Certas pessoas podem retrucar dizendo que consideram a promessa feita na igreja uma simples formalidade, a qual nunca tencionaram cumprir. A quem, então, pretendiam enganar quando fizeram tal promessa? A Deus? Isso não é nada sensato. A si mesmas? Isso não é muito mais sensato que a alternativa anterior. Enganar a noiva, o noivo, os sogros? Isso é traição [...]


Não podemos nos fiar em que um sentimento vá conservar para sempre sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão[...]


E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: ‘E viveram felizes para sempre’, quisesse dizer que ‘pelos cinqüenta anos seguintes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento’, estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável.


Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da paixão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido - distinto da ‘paixão amorosa’ - não é um mero sentimento. E uma unidade profunda, mantida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo hábito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele recebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mesmo nos momentos em que se desgostam, da mesma forma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gostamos da nossa pessoa. Foi a "paixão amorosa" que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cumpram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento [...]


As pessoas tiram dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá ‘apaixonado’ para sempre. Como resultado, quando se dão conta de que não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que cometeram um erro, o que lhes daria o direito de mudar - não percebem que, da mesma forma que a antiga paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse departamento da vida, como em qualquer outro, a excitação é própria do início e não dura para sempre. [...]


A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos morar num lugar aprazível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar, o arrepio da novidade, quando morre, é compensado por um interesse mais sereno e duradouro.’’


E quanto ao amor o próximo, mesmo desprovido de ‘‘boas qualidades’’, nessa mesma obra e ele disse; ‘‘Agora que começo a pensar no assunto, vejo que não nutro exatamente um grande afeto nem tenho especial predileção pela minha pessoa, e nem sempre gosto da minha própria companhia. Aparentemente, portanto, ‘amar o próximo’ não significa ‘ter grande simpatia por ele’ nem ‘considerá-lo um grande sujeito’. Isso já deveria ser evidente, pois não conseguimos gostar de alguém por esforço. Será que eu me considero um bom camarada? Infelizmente, às vezes sim (e esses são, sem dúvida, meus piores momentos), mas não é por esse motivo que amo a mim mesmo. Na verdade, o que acontece é o inverso: não é por considerar-me agradável que amo a mim mesmo; é meu amor próprio que faz com que eu me considere agradável.’’


As pessoas trocam de parceiros com a mesma facilidade que trocam de meias, como disse Bauman, onde (no caso de haver criança no meio) a criança, que é a parte que mais sofre, é pouco considerada. E, segundo Eurídice Freitas, a ausência de um ou ambos os pais tem um impacto profundo no ajustamento emocional e social da criança. Quando adulta, normalmente a principal consequência advinda disso é dificuldades (às vezes insuperáveis) na comunicação interpessoal; o que, juntamente com as razões dada por Lewis, demonstram que o divórcio ou a separação nem sempre é a melhor opção.


O que se pode fazer a respeito?
‘‘O homem é criador de cultura, ele é também ‘fazedor’ da história.’’ ~ Paulo Freire (1921-1997)


Hannah Arendt (do século XX) observou que a sociedade moderna degrada o homem a um animal laborans (um animal trabalhador). Infelizmente, atualmente praticamente todas as atividades humanas decaem ao patamar do trabalho e todas as relações humanas à relações económicas, até mesmo as relações familiares. Tal como disse Pondé; ‘‘O mundo moderno burguês em que vivemos é um lugar pautado pela lógica da eficácia em que todo mundo é medido pelo seu valor ‘instrumental’, ou dito de outra forma, pelo seu valor ‘de uso’. Você vale pelo que faz funcionar neste mundo [...]’’.


Hoje é praticamente o mercado que regula as relações políticas e sociais, e as práticas educacionais (que, a serviço do sistema social e financeiro-económico, estão mais para formadores de consumidores do que outra coisa). É também tendo em vista esse facto, penso eu, que Pondé chamou a universidade de ‘‘o lugar contemporâneo por excelência da produção quase irrelevante’’.


Considerando o conceito de sociedade dada por Max Weber (segundo a qual a sociedade é basicamente o conjunto das ações dos homens nas suas múltiplas interações) e a compreensão básica de mercado como um lugar onde ocorre trocas de bens materiais e serviços por dinheiro, é totalmente sensato alegar que hoje é difícil fazer uma distinção clara entre sociedade e mercado. Pode-se dizer, portanto, que vivemos numa sociedade-mercado (ou sociedade mercantil, como mui preferem chamar). Como lamentou Han, o mundo está perdendo a sua alma, deixando de ser um lugar de morada para se tornar um lugar de comércio. E como uma das grandes consequências disso temos uma sociedade desumana e doente, onde se destacam doenças como; Síndrome de Hiperatividade (Tdah), Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), Síndrome de Burnout (SB) e Depressão. Como defende Han, a nossa sociedade (sociedade do desempenho e sociedade ativa) gera um cansaço e esgotamento excessivos.
O excesso de atividade (junto dos avanços tecnológicos) faz com que;


a) Os homens não tenham (ou tenham pouco) tempo e disposição para o convívio familiar (inclusive entre pais e filhos), que é essencial para;


- A comunicação, onde há transmissão da cultura e a formação psicológica de seus membros, articulação de esforços para a obtenção de objetivos comuns;


- O fortalecimento do amor entre membros da família; pois, o amor é como fogo, precisa queimar para existir. Assim como fogo, a única maneira de manter o amor acesso é alimentando-o, o que só é possível na prática (nos conselhos, carinhos, apoios, nas brincadeiras, etc.). Sabemos por experiência que, pelo menos no nosso mundo contingente, sem o espaço-tempo não há existência. Assim sendo (e uma vez que o mundo humano é finito) quanto mais espaço-tempo para o trabalho, compras e diversão/entretenimento, há, naturalmente, pouco espaço para outras coisas, inclusive o amor e Deus. Isso explica em parte o porquê de haver pouco amor e mui indiferença. E, segundo Wilhelm Stekel, o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença.


b) Os homens se tornem doentes, com problemas de atenção, esgotamento, etc., o que também dificulta na boa criação dos filhos, uma vez que a atenção e a disposição são extremamente necessários para que haja amor, educação e acompanhamento.


c) Os homens se tornem solitários e depressivos, pois o vínculo afetivo é necessário na vida humana.


O excesso de atividade, de ambição e a obsessão ao aperfeiçoamento, os avanços tecnológicos (para além dos benefícios que proporcionam à humanidade, claro), etc., estão a destruir o mundo humano! Penso que talvez era isso que o Rousseau tinha em mente quando defendeu que ‘‘o avanço das ciências e das artes leva as pessoas para longe de sua pureza e alegria naturais e originárias, tornando-as mais sutil e sofisticadamente viciosas’’. As tecnologias, além de causarem problema a saúde mental, no bem-estar, na qualidade do sono, problema de atenção e sedentarismo, etc., estão a destruir os laços humanos!


Como já demonstrei acima, o tipo de vida (ou sociedade) que temos não é ‘‘natural’’ e nem ‘‘atemporal’’ (e mui menos a melhor, logicamente possível); isto é, ela surgiu num determinado ponto da história e foi criada por nós mesmos. E, como disse Pondé, ‘‘se tudo é construído, toda desconstrução é racionalmente permitida’’, ou como disse-nos Bauman; ‘‘[...] o que o homem faz o homem pode desfazer’’ (pese embora haja poucas chances de se reverter esta triste situação). Apesar dos pesares, penso que ainda podemos fazer algo a respeito, mesmo que apenas mitigar e não solucionar (eliminar) completamente o problema.
‘‘O futuro a Deus pertence, mas o caminho você decide’’ ~ Bruno M
Bruno M, certamente o melhor kudurista de todos os tempos, disse a frase supracitada
numa música sua, intitulada ‘‘Vamos?’’.


Houve mui discussões sobre ideias divergentes como; ‘‘o homem nasce uma tábua rasa ou não?’’; ‘‘é o homem que faz a sociedade ou é a sociedade que faz o homem?’’. Entretanto, já é praticamente um consenso que o homem não nasce uma tábua rasa, principalmente devido aos estudos de Sigmund Freud (séculos XIX e XX) e a sua descoberta do ID (Identity, que significa identidade) que, basicamente falando, está relacionado as coisas que herdamos dos nossos ancestrais (em especial os nossos pais). Nós nascemos com tendências para determinadas características. Segundo geneticista brasileiro André Anjos; “Os traços da personalidade, assim como várias outras características dos seres humanos, são considerados, dentro da genética, o que denominamos de herança complexa, ou herança multifatorial, pois conta com diversos fatores envolvidos”.


Entretanto, já é consenso entre os geneticistas que o ambiente (basicamente o meio onde o homem vive) também exerce uma grande influência no homem, tanto no que diz respeito aos aspectos físicos como a personalidade, mas principalmente na última. ‘‘O homem produz o meio ao mesmo tempo em que é por ele modificado’’ (Capra, 2002:90).


O carácter, isto é, a nossa personalidade, é em grande parte uma construção social. Como bem argumentou Bauman; ‘‘O destino é o apelidade para todas as coisas sobre as quais não temos nehuma influência. O que acontece connosco, mas não foi causado por nós. Quanto ao carácter, boa parte dele está sob o nosso controlo e, consequentemente, é algo mui individual, algo que pode ser trabalhado ou mudado e, portanto, melhorado [...]’’.


Exemplo? Ele dá o seguinte; ‘‘se você tivesse nascido 20 anos antes a sua gama de opções seria diferente, e se você tivesse nascido 20 anos depois, de igual modo a sua gama de opções seria diferente. Se você tivesse nascido num bairro nobre, você teria uma gama de opções, e se você tivesse nascido numa periferia, você teria outra. Há sempre gama de opções proporcionadas pelo destino; porém, as escolhas entre as opções são feitas pelo carácter.’’


A desculpa ‘‘esse é um outro tempo’’ é esfarrapada! O tempo não diz nada sobre como devemos agir; como devemos pensar, nos vestir, falar, estar, etc. Portanto, essa nova conduta humana é uma construção social, alimentada principalmente através dos filmes, novelas, músicas, redes sociais, etc. A fragilidade dos laços humanos é resultado dessa nova estrutura social narcisista, consumista, inquietante e fria. Assim como os estados sólido e líquido basicamente são resultados do tipo de ligação de seus átomos (isto é, quanto mais próximos maior é a resistência e quanto mais afastados menor é a resistência que apresentam, quando sob efeito de uma força deformante), as relações humanas são condicionadas pelo tipo de união entre as pessoas, pelo tipo de relação entre as mesmas. Assim sendo, enquanto essa fragmentação e atomização social permanecer (isto é, enquanto estivermos afastados devido ao excesso de atividades, narcisismo e indiferença) as relações humanas continuarão sendo frágeis, e quanto mais piorar esta atomização pior ficarão as relações humanas.


‘‘‘‘[...] As sociedades complexas se tornaram rígidas a tal ponto que a própria tentativa de refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua ‘ordem’, isto é, a natureza da coordenação dos processos que nelas têm lugar, é virtualmente impedida por força de sua própria futilidade, donde sua inadequação essencial”. ~ Claus Offe


Para ser sincero, infelizmente há pouca esperança quanto a essa trágica situação humana! Aparentemente estamos num caminho sem retorno! Mas eu aprendi algo com Jesus (o que já partilhei num outro artigo). O mesmo Jesus que nos disse claramente que o pecado permanecerá até o fim do mundo (e não só, que piorará com o passar do tempo), que apenas poucas pessoas atenderão ao chamado (através do evangelho) e que o amor de mui esfriará, é o mesmo que nos manda abandonar o pecado e chamar as pessoas a fazerem o mesmo, pregar incessantemente o evangelho e amar; ou seja, o facto de um problema não ter solução não quer necessariamente dizer que o melhor a ser feito é cruzar os braços, pois às vezes há algo que se possa para melhorar a situação, para mitigar. E é isso que precisamos urgentemente fazer!


‘‘‘‘[...] a estabilidade da família contemporânea depende cada vez mais da força e influência internas. Quando essas forças psíquicas falham a família torna-se instável,
desorganiza-se, desintegra-se’’ ~ Eurídice Freitas

Luanda, Outubro de 2024 By Kanienga L. Samuel (José)