Luanda - O poder judicial parece tudo fazer para impedir a realização do Estado de Direito em Angola, fomentando a insegurança jurídica ao aplicar um modelo de administração da justiça baseado no tráfico de influências.

Fonte: MAka Angola

Por uma questão de rigor, deixamos aqui uma definição rigorosa daquilo que se entende por “segurança jurídica”, tão deficitária no nosso país: “A segurança jurídica consiste num princípio inerente ao Direito e que supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas de forma a que as pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos actos por elas praticados, confiando que as decisões que incidem sobre esses actos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem.”

Os casos multiplicam-se de forma assustadora.

Tem-se tornado comum haver juízes dos tribunais de Luanda, de secções diferentes do Cível e Administrativo, a tomarem decisões sobrepostas sobre o mesmo processo, com ardis que transformam as ciências jurídicas em actos de magia. Há uma vaga de aplicação possivelmente criminosa da lei que transforma o Estado numa entidade de má fé, com instituições que podem ser apelidadas de delinquentes.

Como estudo de caso, o Maka Angola analisa o litígio sobre um terreno de 28 hectares, na Via Expresso, na Zona do Bita/ SAPU, que opõe o cidadão nacional Lourenço Pequeno, de 72 anos (na foto principal), e a empresa Sociedade de Participação Financeira Angolana (SPFA).

A SPFA foi criada a 9 de Junho de 2003 pelos irmãos Georges Fayez Choucair (60%) e Abdel El Hussein Choucair (40%), de nacionalidade francesa, para negócios no ramo imobiliário, bem como actividades de participação imobiliária. Georges Choucair é o presidente da SPFA desde a sua criação e exerce também a função diplomática de cônsul-geral honorário do Senegal. Abdel Choucair exerce a função de sócio-gerente.

A 9 de Agosto de 2023, a juíza Kâmia Menezes, da 3ª Secção da Sala Cível de Administrativo do Tribunal da Comarca de Luanda, ordenou a restituição provisória da posse do referido terreno, na Avenida Comandante Fidel de Castro (Via Expresso), ao requerente Lourenço Pequeno. Trata-se do Processo n.º 830/21 – C.

Passados nove meses, a 15 de Maio de 2024, o Ministério das Obras Públicas, Urbanismo e Habitação emitiu o Título de Concessão do Direito de Superfície a favor de Lourenço Pequeno, após assinatura do contrato para o efeito. Pelo Ministério, assinou o ministro Carlos Alberto S. Gregório dos Santos. O cessionário pagou 48 milhões de kwanzas pelo terreno.


Lourenço Pequeno viu nascer três dos seus 12 filhos no referido terreno, que ocupa desde 1986. A 7 de Março desse ano “da Defesa da Revolução Popular”, o Ministério da Agricultura transferiu-o do Huambo e nomeou-o chefe da Unidade de Produção SAPU (Sociedade Agropecuária do Ungemaca), que fazia parte do Complexo Agrário do Kwanza-Bengo, a chamada cintura verde de Luanda.

Delinquência judicial
Inconformada com a decisão da juíza Kâmia Menezes, a SPFA, representada por Abdel El Hussein Choucair, recorreu à 1ª Secção da Sala do Cível do mesmo tribunal, em vez de, como seria normal, interpor recurso para o Tribunal da Relação de Luanda.

A 5 de Setembro de 2024, o juiz da 1ª Secção, António Serilho Moisés, requisitou ao comandante provincial da Polícia Nacional em Luanda que fosse exercida força pública para entregar o terreno em disputa à SPFA. Passados seis dias, a 11 de Setembro, um forte aparato policial desalojou Lourenço Pequeno e sua família do terreno e entregou-o à posse da empresa dos Choucairs. No local, também compareceu o decano dos embaixadores angolanos, Dombele Mbala Bernardo.

Esta segunda decisão do juiz António Serilho Moisés contém um elemento extraordinário. Lourenço Pequeno desaparece como litigante e são introduzidos, como “executados”, as cidadãs “Jandira Ernesto, Maria da Conceição José, Conceição Lopes da Fonseca, António Manuel e outros”, que nada têm a ver com o terreno, conforme adiante se explica.

No portão do terreno vedado, o Maka Angola confirmou que os oficiais de justiça da 1ª Secção rasgaram o selo judicial que fora afixado com a decisão inicial da juíza Kâmia Menezes, da 3ª Secção do mesmo tribunal.

O novo selo judicial entretanto aposto, da 1ª Secção, adverte, com total ironia inadvertida, para o facto de a destruição do referido documento dar lugar à penalização legal.


É evidente que há algo aqui que não bate certo. Do ponto de vista técnico, a segunda acção não poderia ter sido julgada nem decidida.

Segundo o analista legal do Maka Angola, Rui Verde, “na verdade, mesmo que não houvesse litispendência, isto é, uma repetição da acção em que a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir são iguais, há uma situação prejudicial, na qual pode existir, também, o risco de contradição ou reprodução de uma decisão judicial anterior”.

Para o analista, “havendo, uma causa prejudicial, a solução passaria pela suspensão da instância até trânsito em julgado da anterior decisão, que teria de ser respeitada”. Caso essa tivesse transitado em julgado, “teria de haver um esclarecimento da situação, designadamente, chamando à demanda o proprietário do terreno ou decidindo a execução desfavoravelmente por ilegitimidade ou caso julgado prévio. O que não poderia haver é esta contradição de julgados”, explica o jurista.

Qual é a base do litígio?
O Instituto Geográfico e Cadastral de Angola (IGCA), a entidade estatal responsável pelo registo cadastral dos terrenos, esclarece-nos sobre a parcela de 28 hectares em disputa.

A 11 de Agosto de 2021, o IGCA respondeu à solicitação do gabinete da Procuradoria-Geral da República sobre a documentação apresentada por Lourenço Pequeno quanto à titularidade do terreno, incluindo o primeiro título de concessão que lhe fora concedido em 2000.

“Quanto à Declaração sob o n.º 3410 e o Croquis de Localização emitidos pela Direcção Provincial de Agricultura de Luanda, bem como o Título de Concessão de Terreno com o n.º 276/DP/DNOR/2000, emitido pela Direcção Nacional de Ordenamento Rural afecto ao Ministério da Agricultura e do Desenvolvimento [Rural] após confirmação verbal a este Departamento Ministerial, confirma-se que são autênticos”, garantiu o director-geral do IGCA, José Manuel da Conceição Januário.

Para ser presente ao tribunal, a 12 de Agosto de 2021, a sub-procuradora-geral da República junto do Serviço de Investigação Criminal, Joana Quituto Jardim, emitiu uma declaração a confirmar a autenticidade do cadastro do terreno a favor de Lourenço Pequeno.

Por sua vez, a 2 de Setembro de 2021, o sócio-gerente da SPFA escreveu ao IGCA: “No quadro da acção de resolução de litígio em torno da titularidade do direito fundiário do terreno supra referido, somos respeitosamente a solicitar ao Senhor Director Geral, que nos seja confirmada a autenticidade ou falsidade do Título de Concessão de Terras n.º 1201.LA/17, em nome do cidadão Lourenço Pequeno.”

Em resposta, a 2 de Setembro de 2021, o director-geral em exercício do IGCA, António Joaquim Airosa de Oliveira, esclareceu que “não existe no nosso Arquivo Cadastral – Base de Dados – qualquer registo em nome da Sociedade de Participação Financeira Angolana, S.A – SPFA, sobre dados relativo[s] ao terreno em causa”.

O IGCA referiu ainda que “quanto à Escritura do Direito de Superfície apresentado pela Sociedade de Participação Financeira Angolana, S.A – SPFA a mesma não foi instruída pelo IGCA e nem foi assinada pela Autoridade que superintende o Cadastro”.

Sobre a mesma escritura, o IGCA denuncia que as coordenadas do terreno apresentadas pela SPFA não fazem sentido, “estão erradas e não condizem com o terreno em causa”.

Quanto à reclamação de Lourenço Pequeno, a instituição refere que o seu processo, sob o n.º 1201-LA/17, está “devidamente cadastrado no Departamento de Cadastro do IGCA”.

A SPFA alega ter comprado o terreno à empresa Maglemik, que detinha um Título de Direito de Superfície passado pelo então governador de Luanda, Job Capapinha. Sobre este título, a 12 de Dezembro de 2023, o coordenador da Comissão de Gestão do IGCA remeteu esclarecimentos detalhados para a PGR/SIC.

De acordo com o IGCA, as coordenadas geográficas descritas no Direito de Superfície exibido pela SPFA “apresentam debilidades no seu formato, bem como nos seus valores, fazendo com que exista uma grande dispersão dos pontos, ademais nenhum dos pontos está localizado na província de Luanda”. Como prova, o IGCA remeteu um mapa que estabelece as coordenadas do terreno exigido pela SPFA em quatro províncias costeiras, nomeadamente Bengo, Kwanza-Sul, Benguela e Namibe. Ou seja, o então governador Job Capapinha emitiu um Direito de Superfície para um terreno que abrange quatro províncias que não a da sua jurisdição. Curiosamente, em Benguela e no Cuanza-Sul o terreno está literalmente no meio do mar. É por conta dessa dispersão territorial que o IGCA informou a SPFA de que as coordenadas por esta apresentadas “não fazem sentido”.

Da informação depositada em tribunal, a que o Maka Angola teve acesso, em momento algum a SPFA exibiu um documento contendo as mesmas coordenadas que o terreno da Via Expresso, que agora ocupa, de forma “mágica”, por ordem judicial do juiz António Serilho Moisés.

A versão da SPFA
O escritório de advogados TMR, representante da SPFA – cuja resposta adicional aqui reproduzimos na íntegra –, reconhece que “realmente existem duas decisões provisórias” sobre o mesmo terreno, uma proveniente da 1ª secção do Tribunal de Comarca de Luanda, outra da 3.ª secção do mesmo organismo. Argumenta, contudo, que a segunda acção, do juíz Serilho, “foi para remover os terceiros que tinham ocupado o terreno e já lá havia construções avançadas”.

Confirma que “já há uma decisão definitiva sobre a acção principal intentada pela SPFA, que é a seu favor. Mas, de momento, não lhe consigo dizer de que secção [do tribunal]”. Sublinha a complexidade do caso, afirmando que há “sete ou oito processos, entre providências cautelares e acções principais que correm trâmites sobre o mesmo terreno.

Sobre a quem e como a SPFA adquiriu o terreno, a TMR informa que “o imóvel pertencia originalmente à empresa Maglemik, que detinha a posse legítima e o direito de superfície. Em 2009, a Maglemik formalizou um contrato de promessa de compra e venda com a SPFA, que passou a exercer sua posse de forma pública, pacífica e de boa-fé. Desde então, a SPFA iniciou o processo de legalização, sem interrupções ou contestações”.

O escritório TMR lembra que, em 2021, as autoridades provinciais promoveram uma notícia na Televisão Pública de Angola, “em que esclareceram que o terreno pertence à SPFA. Só depois disso foi possível realizar as demolições”. Quanto à presença do antigo embaixador, informa que “não existe nenhuma relação entre a SPFA e o Dombele [Mbala Bernardo], pelo contrário são partes em litígio no processo”.

Mesmo considerando a argumentação do escritório de advogados, há um aspecto processual central que ressalta: se, como diz, o objecto da acção foi retirar terceiros do terreno, tal implicava que as autoridades tivessem apenas retirado esses terceiros e não que “selassem” o terreno e impedissem a entrada de Lourenço Pequeno. Portanto, não se vislumbra qualquer fundamento legal e processual para a actuação do juiz da 1ª secção, António Serilho Moisés.

Por outro lado, a defesa da SPFA informa-nos que tem variada documentação que comprova o direito de propriedade sobre o terreno e que já ganhou acções nesse sentido, com trânsito em julgado.

Tomámos boa nota, mas notamos que também existe sólida documentação referente aos direitos de Lourenço Pequeno e que este também ganhou acções judiciais. Não somos tribunal, nem nos compete decidir, mas informar o público dos aspectos relevantes deste caso, que são a inoperância e contradição das decisões judiciais. Este caso demonstra que o aparelho legal não dá satisfação às necessidades do povo, além de colocar em evidência um dos problemas essenciais que contribuem para o atraso de Angola: a indefinição maldita dos direitos de propriedade. Sem uma clara definição e protecção dos direitos de propriedade, não haverá investimento reprodutivo e sustentado em Angola.

Ameaças de morte
Lourenço Pequeno lamenta o facto de, em 2019, ter sido alvo de várias ameaças de morte por forças policiais e militares que frequentemente “invadiam o meu terreno”.

Nessa altura, diz ter surgido em cena o decano dos embaixadores angolanos, Dombele Mbala Bernardo, “que me informou que tinha comprado o terreno a umas pessoas. Deu uma explicação que não fazia qualquer sentido”.

“Por causa das constantes ameaças de morte e invasões da parte de polícias e militares, fui queixar-me à Região Militar de Luanda”, conta Lourenço Pequeno. Diz que o embaixador foi chamado à referida instituição para provar a titularidade do terreno, na presença do tenente-coronel Afonso Daniel Neto. “Ele apareceu todo arrogante e atirou uns papéis para a mesa dos militares, mas não apresentou qualquer documento de posse do terreno. Foi aí que conheci o senhor como um malandro e arrogante.”

Lourenço Pequeno conta que, em 2021, forças militares e policiais, “a mando da SPFA, roubaram-me mais de 150 cabritos que tinha no terreno, mais os porcos, galinhas e patos. Vieram com a empresa 7 Cunhas, que destruiu a minha casa de quatro quartos e a zona de produção agrícola”.

A 17 de Julho de 2021, o Ministério Público constituiu arguidos os representantes da SPFA, os irmãos Choucair e o antigo embaixador Dombele Mbala Bernardo, por suspeitas de burla, falsificação de documentos, etc. Passados cinco meses, a 5 de Janeiro de 2022, Dombele Mbala Bernardo foi ouvido em auto de interrogatório sob Processo Crime n.º 7460/021-03, aberto pelo SIC.