Luanda - 1. Nota Prévia:  Vale, antes, dizer que são terras rurais comunitárias aquelas que foram ocupadas e utilizadas por comunidades de famílias segundo o costume fora dos espaços bio-físicos urbanos. Nos termos da Lei de Terras essas terras são reconhecidas através de um Título de Reconhecimento.  O reconhecimento das terras rurais comunitárias é devido às formas de ocupação, uso, posse e fruição que remontam ao período pré-colonial. É sob este fundamento da preexistência desse domínio que o Estado colonial sem prejuízo de outras motivações de natureza politica reconheceu formalmente com hipocrisia as terras de segunda classe como sendo pertença das comunidades indígenas Cfr. –Dec. Lei 43894 de 06 de 09 de 1961.

 

Fonte: Club-k.net

 

O legislador actual mais não fez, senão, render-se ou na mesma cadência de hipocrisia e esnobismo académico ou político reconhecer as terras das comunidades rurais conforme o disposto na al.e) do 4º Art. Da Lei 09/04, Lei de Terras. Outra motivação afirmar-se justo apontar ao legislador actual: o beneficio do sacrifício pela independência nacional e a soberania territorial, por conseguinte. Afinal de nada teria valido o sangue derramado se as nossas terras continuassem em posse alheia.

 

2. Situação Real e Actual das Terras Rurais Comunitárias

 

1. Cadastro secular e, por isso, completamente desactualizado;


2. Inexistência de Planos Directores e do Ordenamento do Território o que permite dizer que o Estado desconhece os limites das terras do seu domínio;


3. Não Demarcação nem Titulação das terras rurais comunitárias;


4. Não constituídas as brigadas de demarcações e vistoria;


5. Uso da força, intimidação e ocupações compulsivas das terras rurais comunitárias;


6. Não aprovação do orçamento para efeitos do processo de demarcações;


7. Reservas do Estado dentro das terras rurais comunitárias;


8. Corrupção de alguns Sobas o que deu lugar a negócio ilegais de terras;

9. Desagregação de algumas comunidades e constituição de comunidades atípicas;

10. Delapidação de recursos das comunidades em meio rural sem responsabilização social das empresas que põem em causa os meios de vida das populações;


11. Fazendas instaladas em terrenos tradicionais das comunidades;


12. Fragilidade motivada pela corrupção das instituições do Estado;


13. Validação injusta dos marcos das ex-fazendas coloniais

 

3. Titulação das Terras Rurais Comunitárias: Implicações e Pressupostos
 


Temos de convir que o processo de demarcação e titulação das terras rurais comunitárias, como primeira observação, é complexo e, como tal, inspira muitos cuidados que começam, desde logo, com a aplicação das regras da audição das comunidades, da participação e do direito à informação.

 

A segunda observação decorre do entendimento não linear do conceito, Demarcação, que transportamos para esta reflexão. Ou seja, as fronteiras inter-comunitárias assentam ou devem ser acolhidas segundo as dimensões que se seguem:

 

1. Paz Social

 

A intervenção do Estado na problemática fundiária dentre outros objectivos tem fundamento na justiça, equilíbrio e paz social.

 

A terra desde os primórdios aos nossos dias é potenciadora de conflitos que podem perigar a harmonia e a paz social. Em muitos casos os sobas vendem e venderam parcelas de terras integradas no domínio costumeiro. Noutros, alguns membros da comunidade vendem terras sob o pretexto de serem terras de seus pais ou avós. Aqui ocorre-nos chamar atenção que sobre as terras rurais comunitárias o direito à terra é colectivo.  Continuando, os fazendeiros que através de outras formas exploram ilegalmente partes das terras rurais comunitárias diminuíram os espaços tradicionais das famílias. Como se não bastasse muitos fazendeiros cercaram as reservas naturais para a lenha e caça; os fazendeiros cercaram em algumas partes do território os acessos ou caminhos tradicionais; os corredores ou mesmo espaços de transumância foram ocupados por fazendeiros; muitas aldeias são cercadas ou sem espaços para o resto das ocupações tradicionais; nalgumas comunidades a poluição ambiental sufocam as famílias. A exploração de recursos naturais por algumas empresas em espaços comunitários sem o benefício das comunidades como prevê a lei de terras, etc. formam os grandes focos de conflitos entre as comunidades e os fazendeiros. Portanto, todo o cuidado é pouco. Um levantamento geral se impõe em parceria com Organizações Não-Governamentais.

 

Lendo antecipadamente o clima desse processo não se afigurará pacifico. Vale, ainda, lembrar que o principio do respeito e reconhecimento das terras rurais comunitárias assenta na regra da precedência, ou seja, a prevalência de direitos integrados no domínio costumeiro sobre outros eventualmente constituídos naqueles espaços. Quer dizer que o argumento segundo o qual foram fazendas coloniais actualizadas para o contexto actual não colhe até porque põe em causa o espírito geral da soberania que presidiu as nacionalizações e confisco que no caso se revertem em favor das comunidades rurais por força do principio do reconhecimento e respeito das terras rurais comunitárias previsto na al. e) do art. 4º da Lei 9/04.

 

Portanto, a distribuição e o reconhecimento das terras rurais comunitárias assenta e deve concorrer para a paz social contra a brutalidade imposta pela máquina colonial quando desterrou milhares de famílias dos seus espaços tradicionais.

 


2. Antropológica

 

No começo não existiam fronteiras biofísicas. Os homens circulavam livremente e só os obstáculos da natureza os paravam. Hoje, o homem multiplicou-se; a terra virou uma grande fonte de rendimentos e o lucro destruiu a grandeza moral e a dignidade da pessoa humana. O homem vê cada vez mais reduzidos os seus passos na terra. Aliás, em alguns países já existem homens sem terra em países com grandes extensões de terras. Esses homens não são impedidos pelas fronteiras bio-físicas, mas pelo próprio homem, o latifundiário, o feudocrata. O homem, repito, tornou refém o outro homem.

 


Em cada tribo apesar das fronteiras inter-comunitárias de diferentes grupos clãnicos organizados politicamente em sobados ou outras categorias segundo o costume existe um profundo sentimento de pertença e reconhecimento de os diferentes grupos humanos descenderem de um mesmo antepassado. Noutros termos a dispersão geográfica de grupos humanos da mesma tribo não apaga o espírito de partilha e comunhão dos mesmos espaços bio-físicos que antes acolheram os mesmos antepassados movediços ou não-lineares e, de certo modo, invisíveis porque marcadas nalguns casos por referência a objectos da própria natureza (pedra, rio, montanha, árvore, etc.) e noutros marcadas por um acontecimento que fica apenas na memória  dos sekulus e sobas.

 

Importa enfatizar, ainda, que não obstante as mais diversas formas de ocupação, uso, posse e fruição de terras à luz dos padrões que enformam as diferentes formas de organização político-administrativas assistidas pela ordem costumeira é entendimento generalizado, cá entre nós, que a grande fronteira é o homem e não bio-física. Aliás, nem mesmo as grandes muralhas impediram ou tornaram refém o homem ao longo da história. Caiem as muralhas, mas os muros ideológicos, dificilmente, são contornados. E é exactamente aqui aonde deve confluir a atenção dos actores envolvidos directa ou indirectamente no processo de demarcação das terras rurais comunitárias. Quer dizer que independentemente da existência de objectos que marcam as fronteiras ou acontecimentos segundo o testemunho dos sekulus devem ser acautelados para a realidade actual outros elementos, eventualmente, potenciadores de conflitos.

 

3. Sócio-Económica/Ecológica

 

 
As demarcações das terras rurais comunitárias de nada valem se não promoverem a segurança alimentar e o bem-estar social das famílias comunitárias em meio rural. As terras rurais comunitárias são seculares e grandes acontecimentos sócio-políticas ou naturais terão, obviamente, transformado de forma negativa os seus solos, a população animal e vegetal. Temos de e, como dizem os relatórios de vários especialistas ambientais, ter em conta que nos últimos 50 anos ocorreram alterações substanciais nos padrões climáticos cujos impactos negativos são, hoje, notórios e com incidências na vida de camponeses e agricultores. O próprio crescimento populacional modificou as relações intra-comunitárias. Hoje, muitos conflitos que conhecemos defluem da escassez de espaços no interior das próprias comunidades. Portanto, a quem repensar ou não dissociar o processo de demarcações à componente sócio-económica para que sejam garantidos os meios de vida das populações.

 

Essa chamada de atenção decorre do facto histórico vivido durante a era colonial que deslocou as melhores terras para as mãos dos fazendeiros colonialistas remetendo os autóctones nas encostas de montanhas ou em terras inférteis. E a pobreza que vemos no interior do país para além do fenómeno da guerra deve-se à improdutividade dos solos associada à escassez de recursos e técnicas para inverter o quadro. Os espaços de caça foram transformados em reservas, (pense na comunidade San) nalguns casos os rios foram desviados empobrecendo ainda mais o nicho ecológico das terras rurais comunitários. A devastação de grandes extensões de florestas sem planos de reflorestamento e as queimadas descontroladas tornaram ao longo de vários anos as terras improdutivas. Naturalmente, essas terras integradas no domínio costumeiro já não servem nem garantem a segurança alimentar que se pretende salvaguardada. Eis que se impõe repensar a demarcação com a garantia de recursos naturais que assegurem o mínimo para o bem-estar e o desenvolvimento económico e social das comunidades.

 

Urge titular as comunidades rurais para que evite a repetição da história sob novos disfarces.

 

Assim, havemos de voltar às nossas terras…