Luanda - Com o fim das grandes crenças e o declínio das estruturas tradicionais de sentido, o homem moderno passou a ocupar o centro do seu próprio universo. Deus deixou de ser o norte, e a felicidade passou a ser o novo dever. A princípio isso parecia libertador; com o tempo, revelou-se opressor.

Fonte: Club-k.net

Hoje, não basta viver bem — é preciso brilhar. E nessa exigência contínua por sucesso, visibilidade e desempenho, a felicidade que deveria libertar se tornou um fardo.


Neste ensaio, argumento que o sofrimento moderno está enraizado em uma lógica social que transformou o ideal de felicidade em obrigação e punição — e que o brilho, entendido como produtividade, visibilidade ou idealização de vida plena, é seu novo nome.


Freud via o homem como movido pelo princípio do prazer — entendido como satisfação dos desejos. Com a crise das religiões e o declínio da metafísica, o desejo perdeu seus freios e se tornou soberano. O que antes era mediado por uma noção de bem, virtude ou salvação, passou a ser orientado apenas pelo próprio querer. Mas os gregos antigos já sabiam que desejos desenfreados são tormentos disfarçados. Sem limites simbólicos ou finalidades superiores, o prazer moderno tornou-se insuportável em sua repetição e insuficiência. Foi nesse vácuo que o consumismo encontrou seu terreno fértil: oferecendo não apenas objetos, mas formas de se tornar alguém, de ser visto, de ter valor.


Se antes buscava-se ser bom ou justo, hoje busca-se ser desejável, interessante, notável. Esse “brilho” não é só vaidade pública, mas uma forma subjetiva de adequação ao ideal moderno:

 Ter uma carreira reconhecida;

 Viver de forma funcional e eficiente;

 Estar emocionalmente resolvido, criativo, “vibrante”.

Aqui é importante uma distinção: não se trata de condenar todo desejo por conforto ou dignidade, mas de perceber quando esse desejo é tomado como obrigação social, e não como escolha pessoal.


Exemplo: desejar um lar confortável para proteger seus filhos é legítimo. Mas quando esse desejo é comparado com um ideal de sucesso domesticamente perfeito, torna-se pressão silenciosa — e passa a produzir sofrimento.

A felicidade moderna não é só um direito — é uma exigência. Quem não é feliz está em falta com a norma social. Não sentir-se pleno, produtivo, autêntico ou bem-resolvido é quase um desvio moral. Essa lógica transforma a busca por uma vida digna em corrida por aceitação, onde o valor é medido pelo desempenho constante. A infelicidade não vem da dor, mas da inadequação — e a inadequação nasce da comparação com um ideal que ninguém sustenta por muito tempo, mas que todos fingem encarnar.


Autores como Bauman e Byung-Chul Han sugerem que o sujeito moderno é explorado por si mesmo, sem um opressor externo. Mas essa leitura precisa ser refinada:


A autoflagelação é resposta, não origem. Ela nasce da consciência da punição social que se aplica aos que não brilham.

Assim como a criança que se desespera ao prever a punição por ter errado, o adulto moderno se cobra porque sabe o que acontece com os que fracassam:
exclusão simbólica, invisibilidade social, abandono emocional.

Mas essa punição não é clara nem organizada — ela é difusa, ambígua, silenciosa. Não há tribunal, apenas o olhar constante do outro: dos colegas, da cultura, do mercado, dos algoritmos.


Pior: muitas vezes, não sabemos nem de quem vem a cobrança — mas sentimos que estamos devendo a alguém.

Apesar da força dessa lógica, ela não é invencível. O mundo não é homogêneo, e nem todos os contextos sociais seguem essa moral do brilho.

 Existem comunidades tradicionais, espirituais ou locais onde o valor está em pertencer, cuidar, estar junto.

 Existem indivíduos que, mesmo dentro da máquina, criam zonas de silêncio, pausa e desvio.

 E há filosofias — como o estoicismo, o budismo, o cristianismo profundo, ou o existencialismo ético — que ensinam a viver com menos, desejar menos e valorizar o comum.
Mesmo no mundo moderno, é possível resistir. Como?

 Recuperando o ócio criativo (não como lazer, mas como liberdade);

 Desidealizando a felicidade como direito pleno e ininterrupto;

 Reaprendendo a viver sem espetáculo, sem estar no auge, sem precisar vencer;

 Cultivando relações reais, silenciosas, onde o valor está em estar com o outro e não em impressioná-lo.

A lógica do brilho não é uma fantasia subjetiva — é uma norma invisível, mas brutal. Ela nos transforma em gerentes de nós mesmos, exigindo que sejamos sempre produtivos, felizes e interessantes.

Mas o sofrimento que isso causa não é fruto apenas da liberdade mal utilizada — é sinal de uma punição social ativa e difusa, que rejeita o “fracassado”, o exausto, o lento.


Ainda assim, há resistências possíveis. O que talvez precisemos não é de mais liberdade, mas de novas formas de limite, silêncio e sentido. Pois, como já diziam os antigos: não é o desejo que nos faz viver — é o sentido que dá forma ao desejo.

By Kanienga L. Samuel (José)