Luanda - A Propósito do despacho nº 0217/03/GPAN/2010 de 12 de Agosto de S. Ex.ª do senhor presidente da Assembleia Nacional, várias pessoas já me perguntaram como foi possível? Porque os académicos e juristas se calam? Qual a razão deste silêncio monstruoso? Que implicações para a História Política de Angola? Como fica doravante o futuro dos cidadãos que com o seu voto em 2008, deram mandato aos deputados para fiscalizarem à acção do executivo, visando a cidadania e a “BOA GOVERNAÇÃO”?


Fonte: Club-k.net


Considero pois, as preocupações justas e legítimas. Assim, a presente reflexão tem por objectivo, tão somente, exprimir uma opinião de cidadania acerca deste assunto de particular gravidade, que em abono de verdade, à todos apanhou de surpresa e, tentar procurar compreender com base nos ensinamentos da história contemporânea de Angola este “agir político” do senhor presidente da Assembleia Nacional de Angola.

 


Creio que é preciso olhar a História com os olhos bem abertos. A suspensão da acção fiscalizadora do parlamento, é assunto que diz respeito a todos os cidadãos! Se a todos preocupa, então todos os cidadãos angolanos têm o direito de debitar uma opinião, e procurar entender às reais motivações subjacentes à esta medita política, na verdade inédita na história parlamentar de Angola. 

 

O “Despacho administrativo” do presidente da Assembleia Nacional viola de factum e de jure o artigo 162 da Constituição de Angola e traça um grande círculo com lápis vermelho ao redor da cidadania. Mas infelizmente, as estrelas-do-mar não têm cérebros. Doutro modo como vir ao público e defender inconstitucionalidades? São puras teorias da crise ou crise das teorias? O que está em causa, são os princípios fundamentais de um Estado de Direito Democrático!

 

 O Despacho administrativo do presidente da AN, ao determina a extinção da função primária do parlamento, (A Acção fiscalizadora do parlamento) pode prenunciar outra coisa: a não observância dos preceitos constitucionais. Para o Estado de Direito, seria erro muito grave! Seria a todos os títulos inconstitucional e nula a sua aplicação. Na verdade a Democracia não é compatível com ilegalidades! Um Parlamento democrático deve exercer sem inibidíssimos, as suas duas funções primárias: a função de aprovar leis e a acção fiscalizadora dos actos do poder executivo. A assembleia nacional de Angola é a assembleia representativa de todos os angolanos e exprime a vontade soberana do povo angolano. O despacho administrativo em epígrafe, não exprime a vontade soberana do povo angolano. Ou estaremos outra vez diante de uma ideologia política relativa aos diferentes estatutos de cidadania e de triste memória em contexto colonial?

 

Vejamos o que a Constituição sobre o assunto diz: «O “ARTIGO 162 da Constituição de Angola estabelece o seguinte:

 

(Competência de controlo e fiscalização)

Compete à Assembleia Nacional, no domínio do controlo e da fiscalização:

a) velar pela aplicação da Constituição e pela boa execução das leis;

 

b) receber e analisar a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar, podendo as mesmas ser acompanhadas do relatório e parecer do Tribunal de Contas, assim como de todos os elementos que se reputem necessários à sua análise, nos termos da lei;

 

c) analisar e discutir a aplicação da declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência;

 

d) autorizar o Executivo a contrair e a conceder empréstimos, bem como a realizar outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, definindo as respectivas condições gerais, e fixar o limite máximo dos vales a conceder em cada ano ao Executivo, no quadro da aprovação do Orçamento Geral do Estado;

 

e) analisar, para efeitos de recusa de ratificação ou de alteração, os decretos legislativos presidenciais aprovados no exercício de competência legis­lativa autorizada».

 


Assim sendo, parece não haver dúvidas quanto a inconstitucionalidade do Despacho do presidente da Assembleia nacional. O presidente da Assembleia Nacional Paulo Kassoma, com o despacho em epígrafe, pré-anunciou mesmo a morte do poder legislativo de Angola. Mas, como apreciar este “ Acto e/ou agir político”, à luz das realizações levadas acabo durante as últimas três décadas de sucessivos governos do MPLA?

 

Parafraseando, Adelino TORRES (1999) no pós-texto, «A situação e perspectivas de desenvolvimento dos países do Sul, nomeadamente do continente africano, devem ser apreciados à luz das realizações levadas a cabo durante as últimas décadas. Mas, por si só, sem a filtragem prévia de referências teóricas, a leitura dessa “experiencia prática”conduz a interpretações ilusórias cuja utilidade real é de pouco alcance. A teoria e a prática completam-se na medida em que, parafraseando Kant, a teoria sem a prática é vazia e a prática sem teoria é cega (…). Entre heterodoxias temporariamente em crise e ortodoxias cujos axiomas a experiência não confirma, a preferência pelas primeiras é clara, mesmo se a sua renovação tarda»[1].

 

Esta questão é fundamental na medida em que ajuda a esclarecer conceitos e a confrontar teorias demasiado frequentemente assimiladas umas às outras. Por acaso? Não creio. Está em causa os fundamentos de um Estado de Direito e Democrático.

 

Não subscrevo por exemplo, a hierarquização e a distinção entre cidadãos, assimilados e indígenas , uma vez que estes “Estatutos de cidadania sob a colonização portuguesa de Angla,  obedeciam á lógica da dominação europeia e hoje não só não podem ser confundidas (como acontece ainda, incluindo em trabalhos académicos), como são, em vários aspectos, contraditórios entre si.

 

Com efeito, o conceito de cidadania em território que historicamente se convencionou chamar “Angola”, desde o período colonial, mais especificamente, desde a implantação do Estatuto Civil e Criminal dos Indígenas (decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926, decreto nº 16473 de 6 de Fevereiro de 1929, decreto-lei nº 39666 de 20 de Maio de 1954) até a revogação do mesmo pelo Dec. Lei 43893 de 6 de Dezembro de 1961 e consequente substituição pelo “código de Trabalho Rural do Ultramar (Dec. 44309 de 27 de Abril de 1962), tem consequências que urge desmascarar.

 

Na verdade, o Código de trabalho Rural do Ultramar validou a existência de uma situação real de desigualdade cujo critério de distinção tinha como base as diferenças fenotípicas. É aquele que substituiu o “alvará de assimilação” pelo bilhete de identidade que legalizou os assimilados das “províncias ultramarinas” de Portugal como cidadãos portugueses. Hoje temos na verdade o bilhete de identidade. Mas, parece faltar aos angolanos (todos), a plena cidadania!

 

Sobre o assunto em discussão, no preâmbulo do Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique de 1926 (decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926) lê-se o seguinte:

 

«Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não Submetemos a sua vida individual doméstica e pública (…) às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência».

 


A reformulação deste Estatuto, aprovado em 1929 (decreto nº 16473 de 6 de Fevereiro), definia, de modo radical, a ideia de “indígena”, a quem eram aplicadas os “costumes privados das respectivas sociedades». A partir de então consideravam-se “indígenas”, «os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivido habitualmente (nas colónias), não (possuíssem) ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses (artigo 2º)». Ainda de acordo com o estabelecido neste a Estatuto, os “indígenas” deveriam com efeito, reger-se “pelos usos e costumes (…) limitada pela moral, pelos ditames da humanidade e pelos interesses do livre exercício da soberania portuguesa (artigo 3º parágrafo 1). São estes o fundamentos do despacho em epígrafe?

 

Quanto ao alcance e objectivo do Despacho nº 0217/03GPAN/2010, subscrevo o ponto de vista de René Pélissier quando afirmou ao “Jornal Notícias 24 horas”, o seguinte: “É preciso ser verdadeiramente cego, ou não querer olhar a verdade de frente»[2].

 

Quanto ao pretenso “acto e/o agir em nome de soberania”, Rui Barbosa citado por César Plotz Fróis (2003), diz o seguinte “A pior democracia é preferível à melhor das ditaduras” [3]
Assim, se é verdade que “cada país encontra os heróis onde pode”[4], é no entanto, difícil, ilógico e incompreensível defender ilegalidades e fazer a apologias a actos inconstitucionais.

Assim exposto, podemos então concluir o seguinte:

No que às regras da Democracia e da Boa-governação diz respeito, elas não se inventam nem se improvisam. Em democracia, deve haver uma nítida separação de Poderes: Legislativo, Executivo e Judicial. O poder Legislativo é independente. Não é refém do poder executivo. Outrossim, os povos autóctones de Angola nunca foram ingénuos. Se por hipóteses alguém pensa que historicamente existiu um povo existiu ingénuo, esse povo não foi o de Angola. Os aspectos positivos de luta do povo angolano são indeléveis. São aspectos que têm a ver com a cultura africana de tolerância, a luta pelos valores democráticos assente na promoção e preservação da vida humana, na Justiça social, Liberdade, Dignidade, Progresso e Bem-estar de todos: o governante é, e deve ser tão-somente servo do povo. Deve antes servir com zelo e lealdade o povo, e nunca só se servir dele… São os preceitos da gestão da “coisa pública”, a res-pública e/ou República democrática. Proceder doutro modo é pretender agarrar o vento com as mãos, é tapar o sol com a peneira.  “Das teorias da Crise e Crise das teorias” que infelizmente muitos hoje em Angola, parecem defender, só por causa do (s) seu (s) “estômago (s).”

 

Ninguém está acima da Lei. É urgente clamarmos pelos direitos de plena cidadania em Angola. Sem a fiscalização do executivo como fica a corrupção, que o presidente de Angola e muito bem,  num comício no Lubango, salientava como sendo, “depois da guerra a corrupção é o pior mal a combater”? Haja pois, ética na política.

 
(Docente Universitário)

 

[1] TORRES, Adelino (1999); “Horizontes do Desenvolvimento Africano No Limiar do Século XXI”. VEGA EDITORA - Lisboa


[2] PÉLISSIER, René «Não se pode falar de “cinco séculos de colonização” portuguesa em África. Isso seria uma burla. Disponível em www.verdade.co.mz. Pesquisado dia 17 de setembro de 2010.

[3] FROIS, César Plotz (2006), “A Função Fiscalizadora do Poder Legislativo: A utilização do requerimento de solicitação de informação a Secretaria de Estado e a autoridade estadual pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais como instrumento de Control”. Belo Horizonte. Disponível em: http://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:djbiEOm2pcIJ:www.almg.gov.br/bancoconhecimento/monografias/Monografia%2520-%2520Poder%2520Legislativo.pdf+fun%C3%A7%C3%A3o+fiscalizadora+do+parlamento&hl=pt-PT&gl=pt&pid=bl&srcid=ADGEESgX9RprmyD49u5u-qNq464YhK95xGedpyFJbWYo6vJaEkd12It31ODC0bKdW2G5tJqWIUtS7QsM_VoG5mJchiBWzzVPx1YzfYpR8yrm-3_vXbumQJQOh6RTYwV1fvHQEZ4rLg3M&sig=AHIEtbQC1xHBU6jevMQNpy9TgCTW5Xevxg. Pesquisado dia 16 de Setembro de 2010.

[4]  Pélissier René, Op. Cit.