Lisboa - Reconhece que tem capacidade para ocupar um cargo de chefia na Angola de hoje, mas não tem essa ambição.Conheceu as atrocidades da guerra e as dificuldades da paz. "Vi coisas que não desejo ao meu pior inimigo", afirma.


Fonte: Economico

“Eu não estou à venda”

 Em 1992, Horácio Roque teve de regressar a Angola - depois de jurar que nunca o voltaria - para a socorrer. "Durante meses, fomos mais de 60 pessoas nos quartos e nos corredores do terceiro andar do Hotel Tivoli. Eu tinha medo de mostrar que tinha medo", conta. Em 2008, foi a um comício do MPLA. Uma decisão que tomou de "plena consciência", mas recusa que este passo seja lido como uma aproximação ao poder. Não está à venda, garante.

 

Regressemos aos tempos de "Fáti". Em 1992, no rescaldo das primeiras eleições em Angola e do intensificar da guerra civil, o MPLA reteve-a em Luanda.

 Não posso dizer que fiquei presa, fiquei sob custódia no Hotel Império. Era uma luta diária para não acreditar na propaganda que me era transmitida nos interrogatórios ou pela televisão. O MPLA teve de usar muitos artifícios para justificar o que foi feito.

 

Tentaram que assinasse um pedido de desculpas em troca da libertação?
Queriam que dissesse algumas coisas negativas sobre a UNITA, em particular sobre Jonas Savimbi. O actual vice-presidente de Angola, Fernando "Nandó", foi um dos meus protectores. Nos interrogatórios, chegou a dizer-me: "Tem de colaborar, senão não a consigo proteger". Uma pessoa chegou a trazer-me uma carta para assinar, mas não assinei.

 

Horácio Roque, que depois da descolonização prometera não mais regressar a Angola, acabou por ir em sua ajuda.

Esteve lá durante duas ou três semanas, depois veio passar o Natal com as filhas. Contava que, a certa altura, o Nandó, lhe disse: "Há quantos anos é casado com a professora?". Ele terá respondido vinte e tal e o outro terá dito: "E continua com a sua sanidade mental? Nunca vi ninguém tão teimoso como aquela mulher".

 

Uma vez, escreveu: "Guerra é miséria. Cativeiro é miséria. Dependência é miséria". Sentiu-se miserável?

Mais do que miserável, senti-me impotente. Eu vi coisas que não desejo ao meu pior inimigo.

 

Durante os interrogatórios?

Quando ainda estava no Hotel Tivoli. E mesmo antes, quando íamos a zonas rurais que tinham sido tomadas e víamos os agentes químicos que tinham sido usados... Foi muito complicado...

 


Em que momento teve mais medo?

Tive muito medo nos três dias da Batalha de Luanda. Tive medo de ter medo. Muitas mulheres e crianças vieram ter comigo. Durante meses, fomos mais de 60 pessoas nos quartos e nos corredores do terceiro andar do Hotel Tivoli. Eu tinha medo de mostrar que tinha medo, aquelas pessoas pensavam que a vida delas estava nas minhas mãos.

Tudo isto longe das filhas.

Lembro-me de lhes ter mandado uma carta a pedir desculpa por todo o sofrimento. Hoje, à distância, acho que o MPLA nunca teve intenção de me matar.

 

Recentemente, na campanha eleitoral de 2008, marcou presença no comício do MPLA. Porquê?
Voltaria a fazê-lo, tive plena consciência do passo que estava a dar. Estive lá de corpo inteiro e com o meu coração totalmente aberto. Dentro dele, nesse dia, couberam, finalmente, os 16 milhões de angolanos.


Muitos viram a sua ida ao comício como uma aproximação ao MPLA. Ao poder.
Eu sou ministra!? Eu tenho algum cargo em Angola!? Não. Tenho capacidade? Tenho. Eu não estou à venda. A minha causa, e mesmo antes de ser expulsa da UNITA, é a de uma Angola enquadrada no contexto de uma África unida, democrática, livre, com justiça social e solidária. Eu não durmo bem à noite quando penso que a esmagadora maioria do meu povo não tem um pão para dar aos filhos.

 

“Não tenho ambição de tomar conta do grupo do meu ex-marido”

 

"Angola é um país que vive em paz e oferece boas condições de investimento a quem souber fazer o trabalho de casa", assegura Fátima Roque. Mas os empresários portugueses têm de ter cuidado, porque Angola "não é um destino fácil". É necessário fazer estudos de mercado e escolher um parceiro adequado ao investimento.

 

Que contas faz da Angola de hoje?

Já é uma potencia regional e poderá ser uma potência continental. O crescimento económico é excepcional, no período pré-crise global foi o segundo maior do mundo. Este ano, estima-se que cresça entre 7 e 9%.

 

Mas não tem sido imune à crise.

Especialmente em 2008, teve algumas dificuldades. Não há dúvidas que nós angolanos temos de correr para recuperar o tempo perdido e transformar este tremendo crescimento económico em desenvolvimento.

 

Angola é uma democracia?

[Silêncio] Se definir democracia como o acto livre de votar, a existência de vários partidos, de uma comunicação social relativamente livre, então Angola é uma democracia. Se definir democracia na esteira de Montesquieu ou Toqueville, Angola ainda não é uma democracia. Para sermos uma verdadeira democracia, precisamos de diminuir as assimetrias sociais. Vivendo em paz, num clima de reconciliação nacional e pós-eleitoral, esperar-se-ia mais dos governantes. Estou convencida que teria sido feito, se não fosse a crise.

 

Uma nova vaga de portugueses volta a encontrar em Angola o El Dorado.

Na Europa poucos são os países que podem oferecer boas condições, por isso, há a tentação de procurar um futuro melhor. Angola é um país que vive em paz e oferece boas condições de investimento a quem souber fazer o trabalho de casa. Mas os empresários portugueses têm de ter cuidado, não é um destino fácil.

 

O que quer dizer com "trabalho de casa"?

Refiro-me à necessidade de um estudo de mercado e da escolha de parceria adequada ao investimento. Em qualquer país jovem, e acho muito bem, é fundamental que se promova o empreendedorismo local.

 

Fala da figura do sócio angolano?

Esse sócio tem de ser adequadamente escolhido, não só em termos da mais-valia que pode trazer ao investimento como também da capacidade de abrir portas, do conhecimento da realidade angolana.

 

A crise vai continuar a assolar o mundo?

Espera-se que o pior período já tenha passado, se bem que as últimas estatísticas indiquem um certo pessimismo e levem a pensar duas vezes se esta recessão em vez de ter a forma de "V" não terá de "W".

 

Tem quantos netos?

Uma menina com quatro anos e um menino com seis. Normalmente, vou a casa deles ao final da tarde, à hora do banho. Chego e encontro-os na banheira, com aqueles olhos enormes à espera que lhes conte a história da Mariana. Todos os dias invento um capítulo novo. Também foi assim que eduquei as minhas filhas.

 

Aos 59 anos, tem a vida pela frente. O que vai fazer dela?

Gostaria que tivesse iniciado a entrevista com esta pergunta. É uma questão que nunca me colocaram, pelo menos, de forma tão directa. Adoraria regressar a casa e trabalhar nos países da África Austral. Usar uma percentagem mínima dos diamantes, essa riqueza que a natureza lhes deu, para criar uma estratégia de erradicação da pobreza. Seria uma organização supra-nacional, com uma espécie de conselho de sábios, figuras notáveis e ex-presidentes que tenham sido defensores da democracia e dos direitos humanos.

 

Quer transformar diamantes de sangue em diamantes de vida?

Precisamente, transformar diamantes de sangue em diamantes de vida.

 

Isso não é uma utopia?

Não, a estratégia está escrita. Se nos próximos dois anos não a tiver posto em pé, vou publicá-la em livro. Começaria a implantar na África Austral, mas há países noutras zonas de África que também são produtores e que tanto têm sido ligados aos diamantes de sangue.

 

África seria mais feliz se não tivesse diamantes?

Gostaria que pudéssemos falar ao contrário. Por que não transformar essa riqueza num bem? Reduzir a pobreza através da educação.


Tem apoiantes?

Já falei com várias pessoas ao mais alto nível em vários países e já tenho alguns apoiantes. O que se pretendia conseguir era dar ao povo africano o que África lhes dá e que até agora tem sido usufruído apenas por uma elite. Falei nesta estratégia ao actual Presidente da África do Sul [Jacob Zuma] e ele a determinada altura disse-me: ‘Tu falas como uma criança, com paixão, com alegria!'.


Os seus olhos brilham.

Eu visto as minhas calças de ganga, ponho os ténis, o meu chapéu e aí vai a Fátima Roque novamente conhecer África com os seus pés. Não tenho ambição de tomar conta do grupo do meu ex-marido - não é por falta de competência, é porque não quero. Nem tenho ambição de fazer parte do governo de Angola. Esta é a minha causa. Não tenho outra ambição.