Luanda - Recebi com incontida satisfação a notícia da anulação da sentença de Quina da Silva e antigos subordinados. Satisfação porquê? Porque algo no meu íntimo sempre me dizia que não era possível Quina da Silva ter cometido os crimes de que era acusada. E nessas coisas raramente me engano. Há coisas que a voz, os olhos e a expressão facial não conseguem esconder e uma delas é a sinceridade.


Fonte: SA


Não tenho o privilégio de fazer parte das suas relações pessoais. Mas trabalhei com ela, eu na qualidade de Oficial de Comunicação do UNICEF e ela na qualidade de chefe dos SME. Trabalhámos num projecto muito bonito, a prevenção do tráfico infantil e ela dedicava a isso uma paixão muito especial. Algumas vezes ligava à noite porque «tinha acabado de ter uma ideia e queria discuti-la antes que desaparecesse». Achei-a algumas vezes uma chatinha, porque quando encasquetava alguma coisa na cabeça não parava enquanto não atingisse os seus objectivos. Reparei que era disciplinadora, mas humana, uma espécie de mãe ou irmã para os subordinados. De facto lembrava-me muito as minhas irmãs mais velhas, razão pela qual dedicava-lhe o mesmo respeito e carinho que nutro pelas minhas manas… elas também umas teimosas e chatas mas muito amorosas. Por isso achava que, a ter desviado mesmo os tais fundos, só poderia ser para ajudar alguém como ela gosta de fazer.

 

Da mesma maneira que algumas das minhas manas, Quina da Silva fez parte de um grupo pequeno de mulheres valentes que em 1975 deixaram os estudos e juntaram-se às FAPLA para pegar em armas. Algumas como a minha irmã Gina foram parar à Procuradoria Militar; outras nos SAMM como a Inês Primo; e outras ainda como duas irmãs minhas nos Serviços de Inteligência. Algumas foram saindo, mas a “Mana” Quina e algumas outras foram ficando, fazendo disso a sua profissão, a sua carreira e a sua vida. Não sabem fazer outra coisa e agora já não têm nem idade nem pachorra para recomeçar tudo de novo. Por isso é que senti nas manas todas um profundo sentimento de orfandade, desespero mesmo, quando em catadupa aconteceu o caso Miala, depois a Mariana Lisboa, depois a Quina. Começaram a virar-se mais para a família porque começaram a ver que naquelas horas de aperto, só mesmo os do mesmo sangue é que não arredavam pé do seu lado. Os amigos e colegas, esses até evitavam – alguns, não todos, diga-se em abono da verdade – serem vistos perto «dos desgraçados» não fossem ainda serem confundidos…

 

Sempre senti que essa dimensão humana foi um pouco negligenciada ao longo de todo aquele julgamento. Lembro-me que a Quina chegou a comover os presentes no Tribunal quando, depois de recordar tudo o que tinha feito pela Pátria disse que «as mulheres não roubam». Alguns presentes, eu inclusive, não conseguiram conter as lágrimas. É que estava ali uma senhora que tinha sacrificado a juventude, cujos princípios e elevação moral estavam à vista de todos e que estava a ser obrigada até a vestir o uniforme de presa. Ela que tecnicamente ainda era inocente pois o julgamento ainda não tinha acabado. Era particularmente comovente ver os esforços que fazia para cobrir o trajo que a obrigavam a envergar, ora pondo o blusão entreaberto sobre o vestido, ora cobrindo-se com um xaile. Parecia que alguém tinha um prazer especial em vê-la humilhada. Ainda bem que o Tribunal Constitucional criou jurisprudência banindo de uma vez por todas dos nossos tribunais excessos desta natureza.


Como dizia no princípio, Quina da Silva sempre me pareceu alguém que não vira a cara à luta. Contra ventos e tempestades, e quando outros menos fortes já esmoreceriam, ela levou o caso até às últimas consequências – o Tribunal Constitucional, no caso – até que ganhou a razão que, agora vemos, sempre fora sua. Está por isso de parabéns, ela e os seus advogados – a advogada Paula Godinho está contra mim no litígio que tenho com a IURD mas está de parabéns mesmo assim! – porque prestou mais uma vez um grande serviço à Nação: os tribunais terão mais cuidado quando julgarem outros casos no futuro e terão mais respeito pelos réus graças à jurisprudência criada pelo acórdão do TC.

 

Um outro factor positivo, este até benéfico para a segurança do nosso estado é que sinto como que uma lufada de alívio no seio das “manas” que aí dão o seu contributo. O desânimo geral que se estava a apossar delas e não só, não era bom para o desempenho de uma função crucial para uma defesa eficaz dos interesses do Estado nos seus mais variados domínios. Esta gente tem que estar a todo o tempo motivada e tranquila para que seja capaz de permanecer em alerta máximo initerruptamente como exige a natureza do seu trabalho. Por isso é que espero – e acho que as “manas” também – que sejam restituídas à Quina todas as honras, regalias e benesses que usufruía antes do malfadado julgamento que em boa hora foi declarado nulo. Incluindo a sua patente – creio que é Coronel – o seu tempo de serviço e a sua reintegração na corporação de onde chegou a ser expulsa (vejam lá até onde a coisa chegou!). Porque senão não se estaria a fazer justiça. E nem assim chegaria porque os danos à imagem e os estragos na saúde que tudo isso acarretou, jamais serão repostos. Aí só nos resta pedir à “Mana” Quina que perdoe. Faz parte da vida de tropa…


No fim de tudo ainda bem que podemos dizer que foi feita justiça. Ainda falta, mas o essencial está feito. Saravá, “Mana” Quina!


P. S. – E para quando um ponto final semelhante na farsa em que se transformou o julgamento do Padre Raul Tati? Será que tem mesmo que esperar pelo pronunciamento do TC na cadeia? D. Filomeno – que até é primo do General Kopelipa – não pode afiançar por ele e pô-lo em residência vigiada no Paço? Porque fugir, isso o Padre Raul jamais faria. E esta história de pôr padres na cadeia não dá sorte a ninguém…