Luanda - Toca o telefone. Atendo e, do outro lado uma voz que de tão embargada demoro a reconhecer diz-me de chofre: «Celso, o teu amigo foi-se». Confuso e assustado ponho-me a fazer perguntas. Cada resposta deixa-me cada vez mais incrédulo, até que rendo-me à fatal realidade.


Fonte: SA

A propósito da morte de D.Mateus Feliciano

Realmente, o meu amigo D. Mateus, o tranquilo e sereno Padre Mateus dos anos difíceis de 97 no Huambo tinha morrido. De acidente de viação. Ao tentar poupar a vida… de um boi! Tinha-se despistado e capotado algures entre o Catengue e Chongorói. Sozinho – acompanhado apenas por uma criança de 5 anos – demorou duas horas para chegar o socorro e nesse tempo encontraram-no já sem vida. A criança de cinco anos pouco pode explicar; o resto são conjecturas. E assim, o homem que escapou a mil e uma emboscadas nas várias missões de risco que encetou em plena guerra no Huambo morreu assim. Rezarão os anais da história da igreja católica que um Bispo que viajava ao volante do seu carro numa viagem de mais de dois mil quilómetros, morreu por causa de um boi… não me conformo!

 

Por ironia do destino, D. Mateus regressava da última Assembleia Geral da CEAST onde os bispos católicos chamaram a atenção para os altos índices da sinistralidade rodoviária. «O volante é uma arma que deve ser usada com cuidado» avisaram. Mal sabiam eles que dias depois, esta sábia verdade seria confirmada com a vida de um dos seus. Do cassule deles, com apenas um ano e tal de governo episcopal. E agora, a igreja católica no mundo inteiro pára e interroga-se como foi possível. Que um bispo fosse motorista de si próprio numa viagem tão longa, exposto a mil e um riscos. Sozinho, sem a companhia de alguém. O Bispo não tinha motorista; porquê? Para poupar dinheiro? Ia só, porquê? Não tem secretário, um padre ou leigo que velasse pela sua dignidade? Enfim, perguntas que ninguém sabe ou pode agora responder, perante a Morte que está ali, bem presente para lembrar que talvez vá-se a tempo ainda de pôr trancas na porta pois o ladrão pode voltar…

 

Um Bispo da Igreja Católica não é uma pessoa qualquer. Nunca o foi em toda a longa trajectória da história desta igreja. Não por ele, mas pelo que representa. Os séculos de serviço pela humanidade, de governação de pastores de almas tornou-o desde sempre num detentor de uma dignidade respeitada e aceite por príncipes, reis, imperadores e presidentes. Assiste-lhes a governação temporal, pois administram províncias eclesiásticas com recursos humanos, materiais, financeiros e outros, e assiste-lhes a governação espiritual pois dirigem homens e mulheres que têm a missão de atender as necessidades espirituais das suas comunidades. Essa dupla condição dá-lhes a prerrogativa de terem pessoas ao seu serviço, pois da mesma maneira que servir um Governador de Província ou um Presidente da República é servir a Nação que ele representa, servir um Bispo é servir a Igreja que lhe conferiu a dignidade episcopal.

 

Por isso não se compreende que D. Mateus estivesse a viajar sozinho. Para além do facto que um acompanhante é parte essencial da dignidade episcopal, há também que considerar que sozinhos podem estar à mercê de gente mal intencionada. Alguém sempre pode pensar que o Bispo tem sempre dinheiro no bolso. Num país que as pessoas assaltam templos para roubar objectos sagrados – a última vez que isso aconteceu foi mesmo no Namibe, a diocese do malogrado D. Mateus – isso pode perfeitamente acontecer e um Bispo ser molestado por ladrões. E uma viagem de Luanda a Namibe passando pelo Huambo é muito quilómetro para um viajante solitário ainda que não Bispo, que ainda por cima já não era nenhum jovem.

 


Também não se compreende que um Bispo vá ao volante da sua viatura numa viagem tão longa. Para dizer a verdade, uma dignidade episcopal não tem nada que ir ao volante seja onde for. Lembra-me uma vez já há uns bons anos que o Cardeal Nascimento saiu do Paço Arquiepiscopal ali na colina de S. José para dirigir-se à casa das Irmãs de S. José de Cluny na Igreja de S. Paulo. Ali pela Alameda Manuel Van Dúnen, farto do engarrafamento, estacionou o carro e fez o resto do caminho a pé… para escândalo de dezenas de motoristas que na volta e meia paravam para dar boleia, que ele recusou até chegar. Depois alguém foi lá buscar o carro… que ele tinha-se esquecido de fechar, até os vidros! Na altura virou anedota, mas os padres do Paço nunca mais o deixaram sair sozinho e muito menos ao volante.

 

Isto porque não fica bem a um Bispo andar de um lado a outro ao volante. No trânsito selvagem desta Luanda, ficaria mal uma entidade destas estar exposta aos insultos dos motoristas por uma manobra menos conseguida, ou àquelas discussões de rua porque os dois carros se tocaram. As representações diplomáticas e organizações internacionais insistem que os seus titulares andem sempre com motorista para pouparem-se a estas coisas e fazem eles muito bem. Avisados andariam os Bispos se seguissem este exemplo.


Muitas vezes cruzamo-nos nos aeroportos deste país com Bispos em viagem, completamente sozinhos. Confesso que não sei porque cargas de água – Suas Excelências Reverendíssimas perdoem-me o destempero verbal – algumas vezes vemo-los a viajar até de económica e, depois sujeitos à longa espera da bagagem. Ora, um Bispo tem mais que fazer; o seu tempo é precioso demais para perdê-lo assim. Em primeiro lugar, pela sua dignidade e idade também deveriam viajar sempre que possível em classe executiva. E não venham cá dizer que a igreja não tem dinheiro para isso porque tem. Ou devia ter. Em segundo lugar devem sempre fazer-se acompanhar de mais uma pessoa que trate dos detalhes da viagem como bagagem, etc.

 

Caso não, ou o Secretariado Geral da CEAST – veja bem, Padre Hisilenapo – ou os serviços de apoio do bispado onde se dirige devem tratar disso à sua chegada, incluindo uma viatura para transportá-lo ao lugar de hospedagem. E não estejamos com falsas modéstias. Isso deve ser feito não por eles mesmos, mas pelo que representam. Pela responsabilidade que carregam. Pela vergonha que causa a todos nós quando se falta ao respeito à dignidade que lhes cabe.

 

Aceitei por isso nestas linhas o desafio que me foi imposto: a tarefa ingrata de «puxar as orelhas aos Senhores Bispos». Porque algumas vezes são eles que insistem nestas «simplicidades». Sei que estamos a pôr trancas nas portas depois de o ladrão – a Morte no caso – ter roubado nada mais nada menos que uma vida. E que vida! Mas ainda é tempo de precavermo-nos mesmo assim. O ladrão – essa malfadada Morte que, apesar da nossa fortitude cristã ainda mexe tanto conosco – pode tornar a passar pela mesma porta se não estiver bem trancada. Não facilitemos, portanto.


Requiem in Pace, Sacerdos Magnus! Descansa em Paz, Grande Sacerdote…