A verdade, porém, é que está ainda por digerir, em sectores da sociedade portuguesa (e angolana) a forma dramática como se concluiu, sobretudo em Angola, o ciclo imperial. Há feridas por sarar, todas as palavras são avaliadas procurando eventuais intenções ocultas e todas as linhas são lidas à lupa.

Neste caso, os leitores Maria João Sande Lemos e José Corte-Real Sequeira dirigiram-se ao provedor, contestando o excerto da notícia em que se escrevia que "Eduardo dos Santos está no poder desde 1979 e venceu a primeira volta das presidenciais de 1992, cujo resultado não foi aceite pela UNITA de Jonas Savimbi". Para sustentar o seu protesto, os leitores citam informação variada, datada da época em causa, nomeadamente declarações do próprio Savimbi, publicada em vários órgãos de comunicação social portugueses e angolanos, em que a UNITA declarava a sua aceitação oficial dos resultados eleitorais de 1992.

Os leitores tecem, depois, algumas considerações de interpretação política sobre essa eventual "distorção dos factos", mas por aí não vai o provedor: não é essa a sua função. Interessa, sim, neste âmbito, esclarecer se o DN respeitou ou não a "verdade histórica".

A pedido do provedor, o editor executivo Leonídio Paulo Ferreira, que, por coincidência, foi também nesse dia o responsável pela edição da secção em causa, elaborou o comentário que se segue: "É absolutamente factual a frase 'Eduardo dos Santos está no poder desde 1979 e venceu a primeira volta das presidenciais de 1992, cujo resultado não foi aceite pela UNITA de Jonas Savimbi', que regressou então à guerrilha activa. Tal como é um facto histórico que dirigentes da UNITA foram massacrados nas ruas de Luanda e que no espaço de semanas depois da divulgação da vitória do candidato presidencial do MPLA (e também do MPLA nas legislativas) a guerra tinha regressado a toda a Angola, com o desafio de Savimbi a Eduardo dos Santos a consumar--se na conquista de vastos territórios, incluindo a emblemática cidade de Huambo. Mas, caso não se tratasse de uma pequena notícia (umas 40 linhas) sobre a data das legislativas de 2008 (marcadas finalmente após 16 anos de espera), teria sido também possível explicar as complexidades dos acordos de Bicesse, que permitiram o entendimento de 1992 entre o MPLA e a UNITA, assim como as enormes desconfianças de lado a lado, razão pela qual Savimbi (avisadamente) nunca se fixou na capital. Seria também possível explicar que a resposta militar do Governo angolano, e as pressões internacionais, levaram depois a um novo processo de paz com a UNITA, consumado nos acordos de Lusaca de 1994, e que, de negociação falhada em negociação falhada, só se chegou à paz quando Savimbi foi morto em 2002. Sobre o reconhecimento pela UNITA dos resultados das eleições de Setembro de 1992, existem notícias de tal em meados de 1993. E depois, solenemente, quando, em Julho de 2005 (três anos após a morte de Savimbi), os deputados da UNITA, apesar de declararem que 'as eleições presidenciais de 1992 são inconclusivas', reconheceram a legitimidade da presidência de José Eduardo dos Santos, com efeitos retroactivos."

As explicações pormenorizadas do jornalista, que demonstra uma conhecimento profundo da situação angolana, permitem um melhor entendimento sobre os acontecimentos posteriores às eleições de 1992. E se de facto existem (como se comprova na documentação enviada pelos leitores ao provedor) declarações oficiais da UNITA, em 1992 (e também em 1993, segundo diz o jornalista), a aceitar o resultado das eleições, não é menos certo que se seguiu um período de guerra civil que se prolongaria por vários anos.

Sopesados, com atenção, todos os dados disponíveis, o provedor conclui que, de um ponto de vista meramente factual, não é correcto escrever-se, em Junho de 2008, que a UNITA "não aceitou os resultados das eleições de 1992" - e ainda o é menos se o espaço disponível não permite um enquadramento histórico pormenorizado como aquele que Leonídio Paulo Ferreira enviou ao provedor.

Parodiando uma expressão que era cara à ditadura, "Angola já não é nossa". Mas é óbvio que a história está ainda muito longe dos terrenos do consenso interpretativo, permanecendo, nos dois países, sensibilidades que não deixam escapar eventuais deslizes factuais. E esse é um motivo adicional para que a imprensa responsável afine os seus mecanismos de verificação e controlo de qualidade.|

* Mário Bettencourt Resendes
Fonte: Diário de Notícias