Luanda - Os poucos dados disponíveis sobre os sucessivos escândalos atribuídos pela «vox populi» do Namibe (palavras da própria Governadora Cândida Celeste na presença do SG do MPLA)  – certamente haverá mais – já permitem aferir que algo vai muito mal no sistema de administração de justiça no Namibe e por extensão no país.


Fonte: SA


E a ética e a deontologia, onde ficam?

É que, e conforme muito bem disse Paulo Tjipilika, o juiz é a única entidade no País com poder de privar um cidadão da sua liberdade. Até há alguns anos, de mandá-lo mesmo à morte. Segundo Tjipilika, que sabe bem do que fala, é a única entidade que partilha este poder com Deus.



Por isso não basta a um juiz ser impolutamente probo e honesto. Tem também que parecê-lo. A sua honestidade, probidade e elevação moral têm que estar acima de qualquer suspeita. Porquê? Porque o Juiz apenas deve obediência à Lei e à sua consciência. E a probidade, honestidade e elevado sentido moral são os fundamentos de uma consciência sã. Aquela capaz de formar juízos independentes e justos.




É verdade que no nosso país é difícil estar à altura destes patamares. Porque o Estado não dá aos juízes as condições necessárias para que possam exercer o seu papel, imunes às pressões a que naturalmente são sujeitos. O Juiz também é um ser humano. Como nós alegra-se e entristece-se. Como nós canta e chora. Como nós sofre se chega a casa e encontra os filhos à fome porque o salário atrasou. Como nós, sente-se vulnerabilizado quando tem que ir à escola dos filhos negociar uma moratória para a propina por esse mesmo motivo, ou tem que negociar um empréstimo com a kínguila da esquina para safar uma qualquer situação familiar ou pessoal.



Por isso é que torna-se imperativo que se dê – e o mais rápido possível – essa e outras condições para que o exercício do Juízo – sem as confundibilidades tjipilikianas – seja feito com a dignidade que é revestida noutras partes do Mundo. E essas condições não se devem cingir às questões materiais. Há também aquelas morais que permitam que o Juiz possa estar acima de quaisquer tipos de pressão. E quando falamos disso, a questão da sua segurança e a dos seus familiares não pode ser descurada. Ainda está fresca na nossa memória colectiva o bárbaro assassinato de um juiz em plena Luanda por compinchas de um bandido sobre o qual ele tinha exercido pouco tempo antes o seu Juizo. Essas e outras responsabilidades que o Estado tem em relação aos juízes e outros magistrados judiciais devem absolutamente ser satisfeitas para que haja condições materiais e morais para um exercício do Juízo independente, probo e, por isso mesmo, justo.



Salvaguardados os aspectos acima, o caso do Namibe apresenta aspectos que, de tão perturbadores, não devem ser olhados silenciosamente pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, entidade que regula o exercício dos profissionais da administração da justiça. E são perturbadores porque não parecem enquadrar-se nas dificuldades apontadas acima e que infelizmente fazem parte do nosso contexto.



O primeiro elemento é a carta escrita ao Director da Rádio Ecclésia sugerindo, embora veladamente, o sancionamento de um jornalista que lhe é crítico. Perturba porque quando um Juiz – ou qualquer outro profissional, mais a mais em Angola – solicita um favor tem que estar preparado para retorná-lo à mesma medida. Ora, tanto quanto se sabe, o Padre Camuto estaria a incorrer em ilegalidade se atendesse ao pedido – velado, repito – do Juiz Presidente da Comarca do Namibe. Estando ou não preparado para retribuir tal «favor», o facto relevante aqui é que a consciência de um Juiz, presidente ou não, não pode estar amarrada a este tipo de coisas. Deixa de ser justa.



O segundo elemento perturbador tem a ver com a confusão da venda da residência do oficial das FAA. Que tenha ou não sido vendida em hasta pública – o que deveria ser feito por uma questão de transparência – acaba por não ser o mais grave. O grave mesmo é que por cima disso, o Juiz Presidente aparece conduzindo a viatura do comprador da residência. O tal que beneficiou do facto de a venda não ter sido em hasta pública. O Juiz pode até tê-la comprado, mas… já César dizia «a mulher de César não tem apenas que ser honesta; tem que parecê-lo também!»



O terceiro elemento perturbador tem a ver com as tais alegações de assédio sexual. Convenha-se que o depoimento da senhora na presença do SG do MPLA e da Governadora Cândida Celeste é muito comovente. Trata-se de uma senhora humilde, mãe de oito filhas que, sentindo-se injustiçada clama por ajuda. Ajuda essa que tarda a chegar. Estritamente falando, o Juiz é inocente até provado culpado. Mas eticamente, e no quadro da tal independência moral que se exige destes profissionais, a coisa fica complicada. Muito complicada mesmo!



E o último elemento perturbador tem a ver com os julgamentos – dois no caso – em que o Juiz Presidente é o queixoso, e os juízes das causas são subordinados directos seus.



Existe aí um claro conflito de interesses, já que o juiz da causa poderá ter receio de deliberar contra o seu chefe e tio, como parece ser um dos casos. O que até é normal, pois o juiz também é humano. É por isso que deveria haver um procedimento quando cenários deste tipo acontecessem. Sendo o Juiz Presidente o queixoso, ou a causa deveria ser julgada por um juiz de outra comarca com a mesma ou maior senioridade que o queixoso (para evitar ser pressionado) ou a causa deveria ser transferida para outra comarca, sendo sempre julgada por um juiz com a mesma equivalência do queixoso. Não tendo isso acontecido, fica o julgamento do juiz da causa inquinado por força do potencial conflito de interesses, independentemente da sua actuação.



Não foi há muito tempo que vimos a Juíza Luzia Sebastião do Tribunal Constitucional abster-se de participar no julgamento de uma causa por achar que pelo seu envolvimento na mesma no passado enquanto advogada, não teria a isenção necessária. Aí está um belo exemplo de probidade moral que deveria ser regra entre os magistrados judiciais.



Isso é prática normal em quase todos os países do Mundo. Para citar apenas um exemplo, o homem mais poderoso do Mundo – o Presidente dos EUA – não pode nomear o Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele é eleito pelos pares e o Presidente limita-se a ratificar a escolha. E isso porquê? Porque caso o Presidente dos EUA incorra em crime, de acordo com a Constituição desse País é ao Presidente do Supremo que compete julgá-lo. Ora, caso o Juiz devesse a sua posição ao réu, haveria um potencial conflito de interesses passível de inquinar o Juízo daquele.



Para o bem do nosso sistema de administração da justiça, urge que os seus órgãos reguladores debrucem-se sobre o que realmente está-se a passar no Namibe e esclareçam a situação. Para a tranquilidade da Nação, já bastaram as denúncias do ex-Bastonário Raul Araújo – ainda hoje em águas de bacalhau – e o puxão de orelhas que o TC deu no caso Quina da Silva. E isso sem falar da vergonha nacional que foram os julgamentos de Garcia Miala e dos activistas de Cabinda. É tempo do Conselho Superior da Magistratura Judicial, a Ordem dos Advogados e outros afins intervirem para repor a ética e a deontologia no exercício do Juízo… para que haja mais juízo!