Benguela - JAIME VICTORINO AZULAY. Este é o meu nome completo. O presente texto foi escrito por ocasião da minha participação, no mês de Abril, no programa de entrevistas "Café da Manhã" da rádio LAC, dirigida pelo Zé Rodrigues, em 95.5 Mhz. Deixo um auto-retrato para os amigos que desejam conhecer algo de mim, na visão do próprio: quem não sabe de onde vem, jamais saberá para onde vai. Tenho dito:


Fonte: jaimeazulay.blogspot.com

Retrato na primeira pessoa

[jaimeazulay.jpg]Nasci no dia 29 de Maio de 1961 no bairro do Inconcon, próximo do mar, na cidade de Novo Redondo, hoje Sumbe. Curiosamente, a minha terra também foi chamada de cidade de Ngunza-Kabolo e depois, simplesmente de Ngunza. Até hoje ninguém conseguiu explicar as razões das constantes trocas de nome, mas certamente deve ter havido muito trabalho para o pessoal da cartografia e cadastro. Nós sempre fomos chamados de Camussumbes, ou seja, os do Sumbe. Assim nos consideramos desde os tempos. Os mais velhos asseguraram que estamos protegidos dos espíritos malignos pelas divindades do rio Cambongo, que atravessa a cidade. Do leito do rio bebemos a água barrenta e comemos cacussos e bagres pescados no lodo do zunguê. Sou Jornalista profissional e Licenciado em Direito. Frequento presentemente um curso de pós-graduação em Direito do Petróleo e do Gás na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Luanda.

 


     Ao longo da carreira como repórter, fui galardoado com alguns prémios: o de Jornalista do Ano na Província de Benguela, Jornalista do Ano da rádio LAC, o Prémio Maboque de Jornalismo e o Prémio Nacional de Jornalismo. Foram momentos felizes dos quais guardo gratas recordacões; frisar a contra-partida financeira, com a qual endireitei momentaneamente a espinha quanto à dívidas e quejandos. Alguns mal-intencionados chegaram a chamar-me jornalista rico. Uma vez, a minha velha amiga quitandeira de verduras subiu o preço do tomate e da cebola mesmo à porta de casa, porque "tinha ouvido no rádio, o mano recebeu dinheiro no prémio do jornalista". No entanto,sossego-vos, caros  amigos, tais montantes em nada influenciaram a pessoa que me considero, em essência. Habituei a não reclamar nada acima do pedaço de pão para sustentar a familia. Receio que a vida já me tenha brindado com mais do que honestamente  mereço. O meu padrinho, António Martins de Matos, desde pequeno me ensinou um dos mais valiosos segredos da vida:  para ter dinheiro é preciso saber ter dinheiro. A apetência desmedida pelo dinheiro destrói as qualidades boas do Homem, porque o torna escravo daquilo que possui e o corrompe irremediavelmente, pelo poder perverso que lhe dá sobre os outros homens.

 

      Iniciei no Jornalismo na Angop em 1980. Trabalhei no Jornal Desportivo Militar (JDM). Fui correspondente em Angola do Jornal de notícias de Portugal (JN), correspondente do serviço português da Voz da América. Trabalhei para a agência Lusa, publiquei reportagens na RPT, TPA, RNA, Semanário Angolense e outros.
    


  Basicamente, reconheço-me como um apaixonado da vida. Procuro estar de bem com ela, tirando o que existe de melhor, ou seja, a liberdade de ser eu próprio, em comunhão com os demais. Há pouco tempo levei um tombo de moto, logo vieram os premonitores da desgraça alheia, reclamando a sua coroa e os louros:" Não te avisei?". Ninguém tem de me avisar de nada, naquilo que à minha esfera estritamente pessoal diz respeito, principalmente no que toca a minha opção sagrada pela moto. Quando vou para a estrada, desligo de todos os problemas da cidade e procuro diluir-me simplesmente nas paisagens por onde passo. O sussurro da mota é a minha sinfonia divina. Quanto a cair ou não cair, isso nunca está em causa, para quem gosta das duas rodas. Apenas me preocupa quando e onde isso acontecerá. E procurar não sair muito machucado do tombo.
  


   A mais surpreendente definição da minha pessoa foi-me dada inadvertidamente pela Paula Simons. Um dia ela disse: “ Jaime, tenho inveja de ti. Fazes o que mais gostas e ainda te pagam por cima”. A Paula tinha razão. Ser feliz interiormente, resume-se a isso, quanto a mim. Não mordo a mão do patrão que me paga o ordenado, mas não aceito assumir o papel do tronco do sândalo, que perfuma o machado que o fere. Tal como A. Cury, dei conta que enfileirei entre os anónimos da sociedade, que compreendem que a existência nada é, senão um grande contrato de risco, em cujas cláusulas, o drama e a comédia, as perdas e os ganhos, o deserto e o oásis, são privilégios exclusivos dos vivos.

 

     Provavelmente seria desnecessário dizê-lo: o que se segue não é, nem pretende ser, um martirizado discurso de auto-contemplação, muito menos um aparvalhado convite para o faustoso manjar dos eleitos, que esses, estão destinados a próprios merecimentos. Nem se trata de um pálido grito a esganiçar no clamor dos deserdados pela dinâmica precária do processo; dos que foram, compulsivamente, projectados para fora da carruagem. Para estes homens, a História um dia fará justiça. Tampouco pretendo reclamar louros e honras que pertencem aos grandes generais, das grandes batalhas. O que aqui segue, são simplesmente retalhos de uma vida intensa e apaixonadamente vivida. São respigos da Longa Caminhada, que continua o seu curso e percurso. Vida muitas vezes dura, contudo gratificante, por tudo que Deus me deu e luto para preservar, como tesouros únicos: vida, família, amigos e uma Pátria, a cujo povo generoso pertenço.

 


     Em casa chamam-me Nino, nome dado pela minha madrinha Carocha, já falecida. Sou filho de D. Teresa Azulay “Candinda” e neto de Jaime Azulay. O meu bisavô também se chamava Jaime Azulay e tinha sangue israelense. Tenho um filho que se chama Jaime Azulay e o nome também foi dado ao meu neto. Tenho vários primos e sobrinhos que também se chamam Jaime Azulay. É o nosso legado mais importante. Penso que vai perpetuar-se assim na nossa familia. O nome e a honra, como brasão.

 

      Sempre vivi no bairro. Fui criado pela minha mãe, praticamente não conheci o meu pai. Passei a infância em Novo Redondo, no tempo em que as feridas se curavam com pedra-uma e o brututu e a barba de milho eram remédio santo para a briosa. Sofremos a demolição da casa construída pelo avô Jaime e, no seu lugar, foi erguida a bela catedral do Sumbe, no alto da colina, com vista para o recorte do mar, no horizonte. Quanto à casa que a Câmara prometera em seu lugar, não passou mesmo de promessa do barrigudo do Sr. Rodrigues, a quem um dia, a minha mãe, já farta de tantas aldrabices, o chamou de matarruano. O senhor Rodrigues barrigudo virou bicho e retaliou desproporcionadamente. Restou-nos rumar para a mbumba, um bairro que acabava de nascer nas montanhas, nos arredores do campo de tiros-aos-pombos. Todo mundo foi mobilizado para trabalhar na construção da nossa casa de pão à pique, com cobertura de capim. Desbravámos o matagal de gimbulo e matámos cobras, lagartos e outros bichos. Estavam na mbumba outras familias, com as quais partilhávamos as privações e as alegrias, como a família da Dona Teresa Onofre. Não tinhamos, nem água nem luz. Percorriamos distâncias longas para acarretar água que corria montanha abaixo, quando o pessoal da limpeza da câmara fazia a descarga dos tanques que abasteciam as casas da cidade do asfalto.

 

        Eu e o meu irmão Nelito partilhávamos os quedes e a única camisa  têvê que as parcas posses da mãe permitiu comprar. Eu chegava da escola às 12h30. Mamãe lavava a camisa e 30 minutos depois o meu irmão descia a montanha assobiando melodias do Roberto Carlos, rumo à escola, com a mesma camisa têvê e os mesmos quedes brancos. A nossa infância foi dura, mas alegre. Faziamos traquinices no rio Cambongo, as kápias no zunguê, os amigos que nunca mais se esquecem, Barão, Kinguy, Zezito, Didi, Domingos Sousa, Carol, Tininho. Estudei com atestado de pobreza, autenticado com o selo branco na administração do concelho, por absoluta falta de alternativa.

 

       Em 1969 fomos viver para Benguela. A minha mãe decidiu ficar ao lado das irmãs que estavam em Benguela, a tia Luna e a tia Antónia. 10 anos antes o meu avô Jaime falecera na cadeia, enquanto cumpria pena, remível de uma multa de uns tantos angolares que não conseguiu em prazo. Foi condenado depois da denúncia que continuava a exercer funções forenses com a carta de solicitador caducada. A dita carta demorava uma eternidade a vir do gabinete do ministro da Justiça em Lisboa. Para sustentar a família, o meu avô batia alguns requerimentos à máquina e deu conselhos jurídicos a algumas pessoas que o procuraram, mas nunca foi às barras do tribunal exercer, como antes o fazia. Já o tinham debaixo de olho, por ter espirito e convicções rebeldes. Entre os que o procuraram, estava um diabo delator. Aproveitaram a oportunidade para lhe baixarem o pau. Contudo, ele não desistiu de lutar, a fim de conseguir provar que tinha sido alvo de um complot tecido por um advogado português, seu rival e concorrente nas lides judiciais. Há alguns anos recebi, por mão amiga, um importante documento que se encontrava na Torre do Tombo, uma carta escrita e assinada por ele, endereçada ao ministro da Justica de Portugal, a reclamar da sua detenção arbitrária e a exigir direitos que eram vedados aos nativos. A carta é datada de 1955. O meu avô era um homem culto e com elevado sentido de justiça. Conversei com várias pessoas que o conheceram pessoalmente.

 

     A nossa viagem de automóvel para Benguela foi a bordo de uma carreira da Emutral. Rolámos num tapete asfáltico novo até ao Lobito. Depois seguimos de comboio para Benguela, no meio do canavial da Kassequel. Sentia-se no ar o cheiro do bagaço da cana-de-açúcar a ser triturada nos engenhos da fábrica da Catunbela. Pouca-terra, pouca-terra. A locomotiva rebocava a composição com uma força hercúlea e atirava nuvens de vapor branco para a atmosfera. Era uma das lendárias locomotivas "Garratt", que fizeram história no CFB. Foi uma  viagem fantástica. Foi a primeira vez na vida que vi o comboio.

 

     No dia 25 de Abril de 1974, sopraram em Angola os ventos da revolução dos cravos de Portugal. Na altura, eu estava a concluir o segundo ano do ciclo preparatório do ensino secundário. Repentinamente, as pessoas começaram a demonstrar comportamentos diferentes e a falar coisas que nunca ousaram falar em público, tal como independência para Angola. Era a revolução a romper a mornez histórica de esperas e de lentidão. As árvores começaram a ser arrancadas pela raiz. Tudo se precipitava num rodopio para esmagar o inimigo colonialista contra a terra pura, para que a secular maldade das suas vísceras ficasse plantada nas profundezas.

 

     Participei nas primeiras manifestações estudantis. Assinei, por vontade própria da idade, o cartão de ingresso na geração da utopia . Seguiram-se as aulas politicas e os infindáveis debates com outros jovens e fervorosos revolucionários, gente há pouco desmamada. Alguns já liam, à sua maneira claro, Vladmir Lenine, Karl Marx e os poemas de Neto. A escolha entre o capitalismo e o socialismo não confundia ninguém. Tudo era tão linear e tão fácil, no meio do fervor revolucionário. Convidava-se para discutir politica como se convida um amigo para uma partida de xadrez. A revolução Popular triunfa e os nossos heróis serão vingados, repetiamos até à exaustão.

 

     Lembrarei sempre o juramento de bandeira no CIR Sangue do Povo na Gabela. Os esquadrões kwenha e Ngunza Kabolo, os combatentes garbosamente perfilados, uns com boinas azuis dos comandos e outros com boinas pretas da infantaria. Apesar de garoto, sentia que deveria estar entre aqueles homens prontos a baterem-se por Angola contra o inimigo. A revolução chama e quando isso acontece é preciso levar avante o facho aceso. O ingresso no MPLA deu-se em 1975, na delegação do Sumbe, chefiada pelo comandante Mbeto Traça. A vida na Delegação era diferente de tudo que vira antes. O monta-desmonta das pepechás, efebepés, estrelings, gegés (G3), e outros artefactos bélicos, como as traiçoeiras granadas de pau, herdadas dos arsenais da Wermarcht de Hitler. Tal como as enormes mausers desaconselhadas para nós que estavamos a iniciar, por causa do potente coice da coronha. Uma manhã, após recebermos os uniformes cruzei no quintal com o Zezito, meu companheiro desde a cabunga até a secundária. O Zezito também estava fardado e calçava umas botas enormes. Olhamo-nos matreiramente e batemos continência:-" Bom dia camarada Dipanda", bramiu o Zezito. Eu respondi com voz firme:-"Sim! Aceito camarada Granada". Assim nos passamos a tratar. Cada combatente tem de escolher o seu nome de guerra, é a primeira coisa que se aprende na revolução. Dipanda era a independência, cuja data se aproximava. Liamos o jornal VC, Victória é Certa e ouviamos as músicas revolucionárias do Urbano de Castro, David Zé e Santocas.

 

     Consequência dos acordos de Alvor, foi constituída a ronda mista, patrulhas que incluíam soldados dos três movimentos de libertação e do exército português. Os incidentes sucediam-se e a espiral começava a ficar incontrolável. Num sábado, estalaram os primeiros confrontos contra o ELNA, o exército da FNLA. As armas e granadas feriram pela primeira vez os ouvidos dos camussumbes. A  igreja conseguiria negociar um frágil cessar fogo. Todos os movimentos falaram na rádio Kwanza-Sul, atravès dos  porta-vozes. O comandante, Joãozinho “Morte”, comandante do Esquadrão Kwenha, também falou : “-O nosso povo deve continuar vigilante, a luta continua e a vitoria é certa". De facto, a guerra reataria poucos dias mais tarde, com os combatentes do MPLA  a sairem vitoriosos.

 

      Custa-me tanto explicar o estardalhaço que se gerou com a ida da minha mãe à delegação a fim de buscar-me com um puxão de orelhas, por ter fugido de casa. “- Não entreguem armas ao meu filho, ele é uma criança”. Não, ele não é criança, ja é um camarada do MPLA. O Gangula também era pioneiro e deu a vida para proteger dos tugas a base do movimento, disse um camarada combatente. A minha inconsolada e incrédula mãe quase desmaiou ao me ver com uma simonov com baioneta nas mãos. Lamento tanto o mal que lhe causei naqueles dias complicados e depois disso, tudo por causa da revolução. Um dia, em 1991, eu e os meus irmãos Nelito e Yaya fomos sepultar a nossa mãe no cemitério do Calundo, em Benguela. Ela foi tudo o que de melhor tive na vida. Nada nem ninguém consegue preencher o vazio que ela me deixou.

 


       Novembro de 1975. Começa o verdadeiro pandemónio. Entre os dias 5 e 6 chega a Novo Redondo o pessoal oriundo de Benguela e doutras paragens do Sul. Uma massa heterogénea agindo quase sem comando. Combatentes cacimbados à mistura com a fandanga miliciana da Resistência Popular Generalizada decretada pelo Manguxi. A Bela Russa, intrépida guerrilheira de cabelos cor de fogo, por cima do BTR com a kalash em punho. Era o recuo, face ao avanço dos sul-africanos. A chegada do Gaudêncio com a noticia da morte do meu primo Jaime Bragança trouxe incontida comoçao na familia. O seu irmão Herminio se encontrava internado no hospital militar devido aos ferimentos recebidos durante a batalha de Katengue. O Herminio viria a sucumbir no hospital em Luanda, quanto ao Gaudêncio, morreria depois no fraccionismo.

 

      O calendário marcou finalmente o dia 11 de Novembro. Em Novo Redondo, a atmosfera era indescritível,  com os combates praticamente às portas da cidade. Mesmo assim, surgiram os incontrolados festejos pela independência. Fizemos rajadas de tiros tracejantes para o ar. Nesses dias tive um acidente com uma mini-Honda recuperada num armazém abandonado. Agora éramos donos das nossas riquezas. Para vincar isso,  bastava apenas pegar as coisas deixadas às pressas, pelos assustados colonos opressores. A chegada dos cubanos, los companeros,  enviados por Fidel Castro, a pedido do presidente Neto. O recuo para Porto Amboim, no dia 12 de Novembro de 1975. O comandante Kassanji com o mona-caxito de um cano, a fazer fogo a partir do mercado municipal de Novo Redondo. Saímos para o Chingo e dali para Porto Amboim. Kassanji desapareceria sem deixar rasto. O mistério continua até hoje. O que terá acontecido de facto a este jovem comandante do MPLA? Alguém, um dia, vai explicar a verdadeira história do dersaparecimento de Herculano Delfino Kassanji.

 


     Duas semanas mais tarde a ida para Luanda e o agravamento dos ferimentos na  perna direita. Luanda, em finais de Novembro de 1975, era diferente do postal que tinha gravado na minha memória. Reinava uma certa calma depois das duras batalhas de Kifangondo. Todos os dias desembarcava-se armamento que, de imediato, seguia para as frentes de combate com os militares cubanos.

 

     O regresso à Benguela em Fevereiro de 1976. O reecontro com os livros, a escola e um temporário adeus às armas. Novos amigos, novas experiências. Mas a revolução, essa continua. A campanha do café na Chicuma e na Babaera. As revoltas dos estudantes devido as más condições. A revolução exige sacrifício e os revolucionários devem ser puros, porque defendem o povo dos tiranos opressores.

 

     O primeiro emprego em 1977 no Comércio Interno e o ingresso na Angop em 1980. Nasceu a paixão pelo jornalismo. A Angop em 1980. Os chefes e os jornalistas. O Nazaré Van-Dúnem, Rui Vasco, Kito Neves, Eduardo Beny, Graça Campos, Joseph Mputo, Siona Casimiro, João Melo, Mena Abrantes, Raimundo Sotto-Maior. O JDM. Ângelo Silva, Gustavo Costa, Muanamosi Matumona, Policarpo da Rosa, Luís Fernando. O inesquecível Pires Ferreira e a contagiante irreverência do Osvaldo Gonçalves.
   


 O reingresso na vida militar em 1983. As operacões na Chicuma, a seguir ao rapto dos checoslovacos no Alto Catumbela. Camuine, Balombo, Bocoio, Kibala e Canjala. O comissário provincial Kundi Payhama, personagem com traços interessantíssimos, presidente do Conselho Militar da 7ª Região, uma pessoa de personalidade vincada, que muitos consideravam ser pura arrogância. "Kuenda kolume ongombe". O verdadeiro homem deve ser altivo e deixar a sua marca no chão, como o fazem os verdadeiros touros. Jamais se deve chegar ao ponto de confundir um homem, nem com passarinho nem com lagartixa. Kundi aparentava ser um líder carismático na sua franja etno-linguística e esse poder ia muito além dela;  fazia por merecer o mito que girava em seu redor. Cultivava um sentido de justiça baseado na tradição dos povos pastores do Sul e entendia a guerra com o mesmo fervor guerreiro dos Kwanhamas. Das vezes que estive com o batalhão "Onças da Montanha" trazido do Cunene pelo próprio Kundi Payhama, reparei que nunca saiam para uma missão de combate sem antes entoarem os cantos guerreiros, herdados dos seus antepassados, como o rei Ndemufayo Mandume. Para eles, Kundi simbolizava o legado indómito dos Kwanhamas, por isso seguiam-no de armas aperradas para onde quer que fosse.

 

     O Acordo de Bicesse de 1991. A aventura da Paz, os a primeira viagem de moto com o Rui Iglesias, de Benguela para Luanda. A guarda presidencial travou-nos próximo do Futungo de Belas. Foi preciso explicar tudo direitinho para acreditarem que estávamos, de facto, a festejar a Paz. Depois riram-se e nos desejaram boa viagem.
  

  As eleições em 1992. Os angolanos sentiram-se defraudados, afinal foi apenas uma mini-paz e não a paz verdadeira. Afinal, as eleições só são justas quando você ganha. Afinal, numa cadeira não se podem sentar dois sobas simultâneamente e, afinal, por esta elementar razão eclodiram novamente  os confrontos armados. O nosso grupo de defesa formado numa noite. O ferimento em combate em Janeiro de 1993 em Benguela e os cuidados médicos proporcionado pelas madres.
  


  O trabalho como repórter de guerra. O encontro com alguns correspondentes estrangeiros, Jean Charles e Marco Vercruysse. Kito Neves, o cartucheira, velho companheiro e amigo de toda a vida. Por capricho do destino tive a sorte de, em algumas ocasiões, ser o único jornalista a testemunhar eventos marcantes da história recente de Angola. As reportagens nos locais onde a guerra fazia a sua morada. Janeiro de 1999. Vila Nova e Tchiumbo e os Hércules da ONU nos quais morreram pai e filho, o drama da família Wilkinson. O jornalista no cenário da guerra. A fase do deslumbre face as acções militares. Repórter sortudo ou o derradeiro “click” da vida? Aqui o filme acontece a sério. A guerra não come pão, camaradas! Andulo, 18 de Outubro de 1999.

 


A partida do Huambo. O general Miguel Ângelo Vietnam despede-se de nós, no aeroporto Albano Machado. Mais tarde, a cobertura do passeio triunfal com tanques pelas ruas do Andulo. As  minas anti-tanque no vale do rio Membia. A derradeira entrevista com o general Simione Mucune. O almoço na casa que pertencera ao Dr. Savimbi e o encontro com o general Nguto vindo de Calussinga. A apresentação da reportagem na TPA no noticiário das 20 h com uma camisola do director Fernando Cunha e a barba feita às pressas no wc do gabinete. O reencontro com o Carlos Henriques, velho repórter do Opção KK dos anos 80, com o qual estive no Alto Catumbela naqueles anos dificeis. Os seus preciosos conselhos até hoje me calam fundo. Senti muito a sua morte, algum tempo mais tarde. Era um homem de uma simplicidade extrema e excelente profissional.
 


   A morte do general Simione Mucune dois dias depois da minha saída do Andulo. Simione, exemplo acabado de bravura dos que mudaram, com o sacrifício supremo do seu sangue, a história de Angola. O anúncio a partir da base da Catumbela, feito pelo general Joao de Matos e gravado por mim. Os funerais do general Simione passaram-se no cemitério do Alto das Cruzes em Luanda, debaixo de uma indescritivel atmosfera de comoção. O semblante carregado do presidente José Eduardo dos Santos e da primeira dama da República D. Ana Paula dos Santos, na cerimónia fúnebre.Os gritos lancinantes da viúva removendo os nossos corações destroçados. Simione estava morto. Enquanto o general Zé Maria lia o elogio, a banda das Forças Armadas interpretava a marcha fúnebre de Frederich Chopin.
     


 A ideia de escrever um livro de memórias. A minha mensagem é um NÃO rotundo à apologia da guerra. Os que mais desejam a PAZ são aqueles que sofreram na carne e no espírito os efeitos da guerra maldita.

 

       Os problemas actuais do nosso pais. O que mais nos preocupa enquanto cidadãos. A democracia. Os direitos fundamentais do cidadão. A assimetrias regionais e as desigualdades sociais. A função da comunicação social na luta por uma Angola melhor. A situação na província de Benguela e outros mambos. Coisas nossas.