Luanda - O discurso de José Eduardo dos Santos (JES), no dia 15 de Abril é um discurso que advoga o regresso ao passado, ultrapassado face as exigências de um mundo em transformação, averso e avesso à liberdade, modernidade e cidadania, indigno de um estadista e baseado em inverdades grosseiras, como se demonstrará.


Fonte: Angolense

 

1. O panorama que traça sobre a evolução histórica de Angola e da África, do período de libertação nacional aos “processos democráticos que estão em curso em quase todos os países”, passando pelos processos revolucionários das “ditaduras democráticas revolucionárias, com o socialismo e a direcção centralizada da economia” e à “revolução pela democracia representativa e a economia do mercado”, constitui um autêntico branqueamento da tragédia por que passaram o Povo Angolano e os povos africanos nesses processos conduzidos quase sempre pelos mesmos actores políticos, nas suas diferentes vestes de nacionalistas, revolucionários, democratas, acumuladores primitivos do capital e actualmente, prontos a converterem-se às virtudes do socialismo democrático, tornando-se assim sociais-democratas. Contudo, em Angola, na essência o regime não muda, mas as transformações formais são aproveitadas como instrumento legitimador da ordem política ditatorial de JES.

 


2. Tal elogio pomposo à história de Angola, no rigor dos termos, corresponde a um quadro bem diverso do que nos apresentará a verdadeira História de Angola, pois, à excepção da conquista da independência, o quadro é desolador. Com efeito, mesmo antes da proclamação da independência, existiam, já três exércitos, três bandeiras e três vontades diferentes para a tomada totalitária do poder e a dominação do País. Desta divisão resultou que, alcançada a independência, a 11 de Novembro de 1975, duas repúblicas tivessem sido proclamadas.

 

A ditadura foi imposta nas duas repúblicas e as forças estrangeiras, chamadas a intervir na guerra civil, iniciada já no Período de Transição, sustentavam o regime totalitário dos respectivos partidos aliados. Com a vitória do MPLA, apoiado na presença do exército expedicionário cubano e no expansionismo soviético, as tropas zairenses e sul-africanas foram expulsas do País e a UNITA e a FNLA retiraram-se para as matas. Seguiram-se durante a I.ª República, o Regime Totalitário do partido único implantado pelo governo do MPLA; o processo de Transição para Democracia a que o regime totalitário havia sido obrigado a consentir em consequência da crise no sistema de dominação; a ditadura militar instaurada depois da crise eleitoral de 1992 que usando e abusando da chamada legitimidade democrática de “vencedor das eleições”, do “dito partido maioritário” impediu a progressão do processo de democratização, e finalmente, o Executivo de JES, instituído após as eleições legislativas amplamente fraudulentas de 2008 que deram lugar ao triunfo da restauração autoritária, iniciada depois da crise eleitoral de 1992, confiscando o processo de normalização constitucional, e impedindo a realização das eleições presidenciais e autárquicas, impondo uma Constituição cujo “sistema de governo representativo simples” pode comparar-se a da República Corporativa do Regime Ditatorial de Oliveira Salazar, de acordo com a Constituição Portuguesa de 1933, no dizer do constitucionalista português Professor Jorge Miranda, formalizando um regime de concentração de poderes na pessoa de JES, instituindo um poder autocrático que chega ao ponto de, objectivamente, eliminar as eleições presidenciais em Angola ao transformar o Presidente da República e Chefe do Executivo no cabeça da lista, pelo círculo nacional do partido político mais votado no quadro das eleições gerais, extinguindo-se não apenas a 2ª República mas a própria República, o próprio Estado de Direito “para dar lugar, ao livre arbítrio do Príncipe em todas as suas declinações”, segundo a expressão feliz do Cientista Político Nelson Pestana, Bonavena.

 

3. JES, por outro lado, fala dos “ processos democráticos que estão hoje em curso em quase todos os países em que o Presidente, o Governo e os Deputados são regularmente eleitos”, mas omite o facto dele próprio ser um Presidente há mais de 31 anos no poder, sem ter sido jamais eleito, pois, as eleições do Presidente da República no quadro das eleições gerais de 1992 não foram conclusivas, não ultrapassando a fase da 1.ª volta. No entanto, na República de Angola, a Lei Constitucional de 1992, em vigor até 2010, durante quase 18 (dezoito) anos, estipulava que nenhum cidadão Angolano podia exercer o mandato de Chefe de Estado por mais de 10 anos (entre eles dois mandatos consecutivos de cinco anos). Portanto, se a Lei Constitucional impunha esse período máximo de mandato a um Presidente eleito não poderia impor a um presidente não eleito um período maior de mandato.

 


 4. Importa referir que o modelo “Atípico” da Eleição do Presidente da Republica de Angola, aconteceu unicamente, para satisfazer o ego de JES que não quis voltar a ser derrotado, uma segunda vez, como aconteceu nas primeiras eleições gerais em Angola, pelo seu próprio partido. É que o Mpla, apesar do valor relativo dos resultados eleitorais devido a graves irregularidades ocorridas e a permeabilidade e permissividade para a fraude, nas eleições gerais de 1992, teve uma maioria absoluta de 53%, não tendo JES conseguido os 50%, para se fazer eleger na 1.ª volta, apesar de ter contado com o apoio de alguns partidos políticos da Oposição que não concorreram com candidatos próprios àquelas eleições presidenciais (PRS, PAJOCA, PAI, entre outros).

 

5. Os “processos democráticos em curso” no nosso país, bem como na grande maioria dos países africanos, salvo honrosas excepções que também as há, contrariamente ao que diz JES, não se baseiam em qualquer princípio da alternância democrática, e isto, “por causa das tiranias pseudo-democráticas que se mantêm no poder pela perversão dos valores democráticos” ou “pela tentação monárquica em certos Estados onde herdeiros designados são colocados no espaço público e político com vista a preparar ou a organizar eleitoralmente uma devolução sucessória do poder”, agravado “pelo não funcionamento do sistema eleitoral que sofre de um duplo défice de fiabilidade e de credibilidade e pelo ressurgimento de actos de violência militar que interrompem o processo democrático”, de acordo com a declaração do Comité África da Internacional Socialista em 2009, em Daccar.

 


 6. Relativamente à existência do que JES considera tratar-se de uma “certa confusão em África e alguns querem trazer para Angola,” o que ele quis foi referir-se às “revoluções” ocorridas no Norte de África (Tunísia e Egipto) e que se estendem a outros países da África do Norte e países do Médio Oriente, tendo como pano de fundo, serem países de ditaduras pessoais – e familiares -, com uma duração bastante grande (Ben Ali, Tunísia – 23 anos; Mubarak, Egipto-30anos; Kadhafi, Libia-42anos; Abdullah Saleh, Yemen-33 anos; Blaise Campaoré, Burkina Faso-24anos; Qaboos bin Said Al Said, Oman-41anos), com um elevado grau de corrupção, com o custo dos bens alimentares essenciais muito alto, de grande pobreza, com taxas de desemprego muito elevadas, abrangendo sobretudo uma juventude culta, de estudantes e jovens licenciados, sem trabalho nem horizonte de futuro e um extenso sistema de repressão.

 


7. É evidente que JES já viu que as causas que levaram a “certa confusão em África” existem quase todas em Angola, à excepção do nível de cultura da juventude fruto do deficiente nível de educação. Ele percebeu que há um grande perigo de contágio que urge neutralizar, pelo que aproveitou a oportunidade que o congresso do seu partido lhe proporcionou, para procurar unir todo o Comité Central contra os inimigos comuns, o que passava por definí-los previamente, determinar os seus lugares de actuação e estabelecer os planos para os poder aniquilar.

 

8. Ora, o inimigo novo e que, por isso, mereceu as primeiras honras no seu discurso foram os utilizadores das “redes sociais que são organizadas via Internet, e nalguns outros meios de comunicação social”. Para vencê-los, no que chamou a “batalha de comunicação da verdade”, JES advogou que os seus correligionários tinham que ser mais activos do que os utilizadores das redes sociais. Como? Quando se esperava que JES apelasse os seus seguidores para a saudável concorrência e competição com os utilizadores das redes sociais, para optimizar-se ao máximo o potencial da Internet e dos médias informáticos de forma a garantir-se e a promover-se a liberdade de expressão da Internet, como recurso público universal, o que ele estava já a ordenar aos órgãos de inteligência e de segurança do Estado, à Direcção Nacional da Investigação Criminal, aos órgãos que asseguram a ordem pública, bem como a todos “informadores”, era policiar a Sociedade de Informação, bloquear, filtrar e censurar a informação, providenciar às contas dos clientes das operadoras da Internet, vigiar o pensamento de cada um e de todos os angolanos e pôr em causa o livre exercício de Liberdade de Expressão, Opinião e Critica de Imprensa e o acesso à informação, através da aprovação de Propostas de Leis, designadamente a da Lei de Combate à Criminalidade nos domínios das Tecnologias de Informação e Comunicação, da Protecção de Dados Pessoais e da Lei Quadro das Comunicações Electrónicas e dos Serviços da Sociedade de Informação. O Grupo parlamentar do Mpla pretendia fazer aprovar as referidas propostas no dia 21 de Abril, tendo sido retirada da agenda pelo próprio Grupo proponente devido alegadamente à “forte” pressão que a oposição e a sociedade civil têm vindo a fazer no sentido da não aprovação, não sendo, contudo, de estranhar que tenham sido retiradas da Agenda, na referida data, para nelas se incluírem mais restrições às liberdades que as propostas já apresentavam, e voltarem a ser propostas numa data posterior quando diminuir a vigilância do publico.

 

9. Mas o que parece indispor JES contra os seus novos inimigos, são as manifestações, que segundo o previsto na Constituição de Angola devem ser realizadas, “sem necessidade de qualquer autorização” e as realizadas em lugares públicos carecerem de prévia comunicação (não autorização) da autoridade competente. É que JES ao acusar os seus inimigos de fazerem manifestações, como se fazer manifestação fosse um crime e não um direito, demonstra que o Título II da Constituição - Direitos e Deveres Fundamentais – é letra morta e não é para ser levada em consideração.

 

10. Por seu turno, os partidos da Oposição, não deixaram de merecer também a atenção de JES. Mas como estes foram sempre o seu inimigo ao longo dos seus 31 anos de senhorio da Cidade Alta, as técnicas, as tácticas e os meios de os combater devem ser os habituais: marginalização dos seus lideres, seu silenciamento perante os “media” públicos, controlo através de escutas telefónicas e das contas de emails, reforço da partidarização no acesso à função pública e aos cargos públicos, às Forças de Ordem, da Autoridade Tradicional, dos pastores de diversas congregações religiosas e mesmo de alguns padres da Igreja Católica, apesar dos Bispos da CEAST, na sua Nota Pastoral de 22 de Março último, reiterarem que “a Igreja não pode ser instrumentalizada por Partido algum, nem sequer por aquele que exerce o poder”, mas sobretudo pela partidarização da CNE a fim de possibilitar a fraude, como a que aconteceu em 2008, em que até a Casa Militar foi um órgão da CNE, senão o principal órgão da CNE, em Luanda.

 

11. Talvez, por isso, JES, no seu discurso apenas aflora os partidos da Oposição, utilizando aquela retórica, em uso no tempo da “ditadura democrática revolucionária”, com que brindava a oposição armada, de “fantoches” que obedecem “a vontade de potências estrangeiras que querem voltar a pilhar as nossas riquezas”, paradoxalmente, as novas parceiras do Executivo que ele constituiu! Esta inimizade circunstancial para com as potências “imperialistas” deve-se apenas ao facto das potências ocidentais terem deixado, nas revoluções em curso, de confundir o direito dos povos de dispor de si próprios (princípio de autodeterminação), do direito dos ditadores de disporem dos seus povos, o que são realidades bem diversas.

 

12. Desenganem-se, no entanto, todos os que pensam que os utilizadores da Internet, os bloguistas e os partidos da Oposição tenham sido os únicos visados pelo discurso de JES. É certo que a táctica utilizada por JES, no seu discurso, foi de procurar a unidade do Comité Central do MPLA face aos inimigos comuns. Mas ao esvaziar a importância do Congresso, retirando da sua agenda “os assuntos referentes à lista de candidatos e aos quadros em geral que deverão integrar os órgãos eleitos do Estado, após as eleições de 2012”, os mais motivadores para os congressistas, pois, através dos mesmos, a questão da sucessão de JES podia começar a ser equacionada, JES sabe, que a partir daí, os seus companheiros de partido, que em privado dizem exactamente sobre ele e a sua família o que não têm coragem de dizer em público, terão a tendência de aumentar as criticas contra ele.

 

13. Daí o acerto com que JES escolhe e cataloga os seus inimigos, sendo que os intriguistas ocupam na trilogia (oportunistas, intriguistas e demagogos) o papel central. De resto, é claro. Os bloguistas e os vendedores de ilusões, na visão de JES, não fazem intriga. Os utilizadores das redes sociais podem insultar, denegrir, provocar distúrbios e confusão. Já os políticos, que são os demagogos, podendo, inclusive, insinuar que o Rei vai nú e que os alfaiates que o rodeiam não tenham peças e instrumentos para vesti-lo, não fazem também intriga, podem, no entanto, na visão de JES, beneficiar da intriga feita pelas “potências estrangeiras que querem voltar a pilhar as nossas riquezas e fazer-nos voltar à miséria” de que ele, sua família e seu séquito já há muito se libertaram. Intriga, na verdadeira acepção do termo, para além das potências “imperialistas”, podem apenas fazer, alguns dos companheiros de partido de JES, que de resto, estão em melhores condições que os da Oposição para poderem beneficiar do trabalho das potências estrangeiras que preparam “as condições para executarem os planos de colocar fantoches no poder”.

 

14. Mas, a mais grave “irresponsabilidade” cometida por JES no seu discurso, apenas “compreensível” talvez pelo estado emocional em que se encontrava, devido a detenção do seus mais fiel aliado, o presidente cessante da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo, 3 (três) dias antes, não propriamente pela detenção em si, mas sim pelo que ela pode ter representado para afirmação de Angola como potência regional, pois, no caso concreto da Costa do Marfim, Angola demonstrou ser o que efectivamente é, uma potência com pés de barro, foi a ordem lançada aos seus zelosos subordinados e apoiantes de “desmascarar os oportunistas, os intriguistas e os demagogos” ordem que a ser interpretada em sentido lato, como foi aquele slogan pós-27 de Maio de 1977 “ Não haverá perdão para os traidores”, pode, uma vez mais, enlutar dramaticamente o país.

 

15. Já no passado com o malfadado “ Malhar no ferro enquanto está quente”, o Jornal de Angola no seu Editorial do dia seguinte, com o título “Denunciar a desordem”, posicionou-se na linha da frente da resposta ao apelo de JES, precisando já que dois dos inimigos por ele definidos, a saber, os utilizadores das “redes sociais e os vendedores de ilusões”, os políticos, terão a resposta adequada, mas não dos poderes públicos (órgãos que asseguram a ordem pública e a protecção policial do País, no estrito respeito pela Constituição e pelas leis, bem como pelas convenções internacionais de que Angola é parte) mas sim directamente “dos angolanos que lutam corajosamente pela reconstrução da pátria”, talvez instituídos em “tribunal popular revolucionário”, um poder paralelo, oficioso e clandestino, cujos membros não disponham de símbolos do Estado de Angola, para que JES e seus correligionários possam lavar as mãos como Pilatos, às atrocidades que esta “nova força” (?) anti-confusão possa vir a desencadear pelo trabalho sujo que está incumbida de realizar.

 


E assim pensa poder enganar, uma vez mais, a comunidade internacional, “as potências industrializadas e ocidentais que gostam de se ingerirem nos assuntos internos dos Estados soberanos”, pois, esta comunidade internacional não tem como condenar o Executivo Angolano e classificá-lo de falta de legitimidade e competência para governar o seu próprio povo, uma vez que o Executivo não pode ser responsabilizado por todo e qualquer acto criminoso que for cometido em Angola (!), sendo apenas “solidário e civilmente responsável por acções e omissões praticadas pelos seus órgãos, respectivos titulares, agentes e funcionários, no exercício das suas funções (…) ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros (art. 75.º da Constituição do Estado de Angola)…


(Conclusão dia 28 de Maio de 2011)