Luanda - Recentemente o mundo veiculou a notícia sobre a condenação dos principais autores do genocídio do Rwanda que levou mais de 800.000 pessoas à morte em pouco menos de três semanas, depois de mais de uma década da sua ocorrência. Dentre os autores do famigerado genocídio, o General Augustin Bizimungu (hoje 59 anos de idade) foi sem dúvidas o mais notável.


Fonte: Club-k.net

 

ImageQuem assistiu o filme Hotel Rwanda (em alusão ao genocídio) pode ter uma ideia da sua importância estratégica no caso que eclodiu com a morte do, então, presidente ruandês, Juvenal Habyarimana a 6 de Abril de 1994, quando o seu avião foi abatido. Contudo, a justiça, embora lenta, foi feita. O que confere um sentimento de satisfação sobre o trunfo da justiça sobre a impunidade para os milhares de sobreviventes do genocídios e de todos aqueles que dele têm recordações assombrosas. Esse sentimento porém, já se apresenta enevoado de incerteza quando comparado com a morte de Osama Bin Laden, que para os muçulmanos, de uma maneira geral, consideram inaceitável por julgarem merecer um tratamento judicial equivalente ao do General Bizimungu, mesmo quando o mundo, na senda dos EUA, cante vitorioso com a sua morte.

 

Esse quadro leva a reflectir sobre a legitimação da violência do Estado e a sua utilidade na harmonização dos interesses dos povos e das nações nos dias de hoje. Com efeito, o triunfo do contratualismo social (movimento constitucional) trouxe consigo a consagração de elementos relativos a libertação dos povos (direitos e igualdades entre os pares) contra a hegemonia esmagadora dos soberanos condicionada pela necessidade de estabelecer novos mecanismos de controlo do poder. Paradoxalmente, este exercício de (re) organização dos Estados deu lugar a legitimação de um novo modelo de violência dos poderes públicos como instrumento de equilíbrio social expresso num conjunto de instrumentos consagrados na própria constituição. Assim, o homem perdeu em grande medida a capacidade de rebelião contra os poderes públicos e o Estado ganhou meios de tortura até a exaustão contra os próprios cidadãos (prisão perpétua, pena de morte, etc.). Admite-se no contexto das leis nacionais um conjunto de mecanismos de concretização da violência que aos poucos vão sendo igualmente justificados nas relações internacionais. Assim, os EUA justificaram a sua agressão contra o Iraque para derrubarem Saddam Hussein e darem azo a um conjunto de acções militares que têm resultado em instabilidade política e até social para muitas nações, em nome de uma “guerra preventiva” que ingressou como terminologia obrigatória no Direito Internacional Público por imposição unilateral do seu promotor. De todo o modo, verifica-se um quadro em que a violência do Estado nem sempre responde aos interesses dos povos, mesmo quando promovida em nome deste.

 

O tema sobre a violência na relação entre o Estado e o povo tem toda oportunidade nos momentos que correm, em que assistimos o derrube de Laurent Gbabo da Presidência da Costa do Marfim taxado como magistrado inconstitucional por falta de legitimidade gerada pelas eleições que o opôs a Alassana Ouattara; o conflito armado na Líbia em que é alegado o envolvimento das forças fieis a Muhamar El Khadafi e os rebeldes, entre os quais o povo, em guerra civil sangrenta e sobretudo as ondas de manifestações no mundo e em Angola como reflexo de um clima de mau relacionamento entre o Estado e o Povo. É claro que o conceito de Estado aqui utilizado é o de poder, representado pelas autoridades públicas, contrariamente ao conceito modernamente utilizado que entende (e com o qual não deixo de concordar) que o Estado é o substrato humano e como tal personificado pelo povo. O caso angolagate que terminou de forma gloriosa para Angola varrendo o desprestígio dos indivíduos envolvidos dos dois países (o outro é França) assentou a sua razão de ser na violência do Estado viabilizada pelo tráfico “ilícito” de armas. Aqui temos uma violência que a Lei em especial e o Direito em geral classificam de legítima por ser no interesse do povo embora tenha dizimado o próprio povo, para ironia da finalidade.

 

Em Angola, a opção política pelo comunismo a partir de 1975 arrastou o Estado numa excessiva onda de actos de violência contra o povo durante décadas (serviço militar forçado, recolher obrigatório, limitação na circulação de pessoas e bens, prisões arbitrárias por actos qualificados injustificadamente como crimes contra a segurança do Estado, etc.) sobrevivendo ainda na actuação dos poderes públicos (“maxime”, agentes de autoridade), com efeitos limitadores gravosos no exercício dos direitos e liberdades materiais dos cidadãos.

 

O que se nota com a contra-cultura que as recentes manifestações de jovens insatisfeitos com realidade política, económica e social vêem trazendo no modo de percepção dos agentes de ordem pública (e até dirigentes políticos), quando reagem ilicitamente contra direitos e liberdades constitucionais. O uso ilícito da violência do Estado é hoje muito patente nas prisões arbitrárias contra indivíduos que protestam contra os regimes ditatoriais (poderes ilegítimos) ou contra os movimentos reivindicativos do bem-estar social e económico contra os poderes públicos impotentes. O que macula a eficácia da Democracia enquanto modelo de controlo de poder político mais aplaudido no mundo actual e leva a necessidade de ponderação sobre novos modelos de contenção ou viabilidade desta mesma violência do Estado em atenção ao povo em nome do qual é legitimada.