Luanda - Quando em 1981, aos 19 anos, cruzei em Luanda os portões da Rádio Nacional de Angola carregado de utopias como o fazem sempre as pessoas que chegam dos pequenos lugares do interior, entendi em poucas semanas o significado da expressão “está-se mal”.


Fonte: O Pais


Era um sujeito de província atirado para a imensidão asfixiante das cidades impessoais, que tinha como único e verdadeiro lar o local de trabalho.

 

Comia onde calhava, disputando como quase todos os repórteres do célebre DINF — Departamento de Informação da Rádio Nacional de Angola — as doses desengonçadas de carapau e de peixe-espada magricelas nos restaurantes e bares das imediações, com o Avis no topo das preferências porque era logo ali, bastava atravessar o jardim da Comandante Jika cheio de flores densas e de bom aspecto. Eu era, então, óptima companhia porque estava sempre disposto a ceder os meus muitos copos de finos que vinham acoplados aos pratos de arroz branco e peixe.

 

Foi nesse tempo que me tornei amigo da Carolina Cerqueira, a actual ministra da Comunicação Social. Trabalhava, como eu, no DINF e integrava, digamos, a ala feminina daquele estratégico sector da emissora, com outras colegas de quem continuo a manter lembranças frescas na memória, como Arlete Bolonhês, Filomena Gamboa e Maria João.


Eram do domínio de todos as minhas dificuldades existenciais por não dispor de familiares em Luanda e a primeira atitude que a Carolina Cerqueira — para todos nós Carol — teve comigo foi de manifesta protecção. Não foram poucas as vezes que me fez a pergunta se tinha almoçado ou se me encontrava a pão e água. Certa vez, que não me lembro já se foi a única, levou-me mesmo até à casa onde vivia com a sua família, no bairro Azul, para recuperar-me do estrago e das sequelas de dias de refeições minguadas.


Para um atarantado menino do campo em busca de espaço numa cidade em que ninguém está para ninguém, a aura maternal que envolvia a atenção vinda da Carol fez história naquele departamento cheio de jornalistas com milhentas maneiras de estar no mundo, uns solidários e amigos, outros completamente corroídos pelo vírus deformador da vaidade e da petulância. Trinta anos depois, é curioso, continuo a cruzar-me com eles pelos caminhos da vida; os bons tornaram-se melhores e os já então com mentalidade de pequenos donos do mundo, são ainda os mesmos idiotas vazios de afectos.


Um dia, no auge da sua inspirada veia protectora, a Carol disse-me que estava preparada para ser a minha madrinha de casamento, quando esse momento chegasse. Sabíamos eu e ela que haveria de passar ainda muito tempo, pois o meu sonho de licenciar-me em jornalismo, por via de uma bolsa de estudo no estrangeiro, era uma decisão irrevogável partilhada por todos no DINF.

 

Quando em 1986 parti para Cuba, renovámos o pacto, e em 1992 quando regressei, de curso feito, reafirmei-lhe que embora ainda sem noiva eleita, a madrinha para o dia em que um homem rompe com o egoísmo genético para pensar por dois, continuava a ser ela.


Cumprimos no dia 28 de Agosto de 1995 a promessa recíproca, o mesmo dia em que entrei também para a vida do Dr. José Eduardo Nelumba com o estatuto de afilhado. Encontramo-nos cedo no cantinho da tia Marta, ali naquele empedrado na colina onde o poder do colonizador ergueu, alguns séculos atrás, a poderosa fortaleza para defender Luanda e a sua baía das investidas dos holandeses. Do lado da Paula, os padrinhos eram o casal Teresa Lando e José Eduardo Mota.

Custa a crer que toda esta história que dá colorido a um dos melhores sentimentos humanos — a amizade — se conta agora sem a presença de um dos seus protagonistas cruciais da fase derradeira. O médico que testemunhou há quinze anos como eu transitava do estatuto celibatário para o de chefe futuro de uma prole que começa com a Tula e fecha com a Paula Cecília, deixou-nos sexta-feira 13 em Madrid, devastado pela doença, indiferente à dor da Carol e do Pedrito, o herdeiro que fica para lhe prosseguir a saga de homem bom.

 

*Publicado no OPais aos 19 de Agosto de 2010