Luanda -  As manifestações de 3 de Setembro e o replicar das mesmas no início do julgamento dos detidos, com a catadupa de consequências políticas despoletadas dentro e fora de Angola, são sinais do início de uma nova era: as lideranças incontestadas e os partidos que estão sempre a subir não fazem parte deste mundo do século XXI


*Mário Paiva
Fonte: A Capital


Está mais que provado que a iniciativa dos jovens do movimento revolucionário e afins se caracteriza por não ter nenhuma matriz orgânica clássica, certa ingenuidade ou imaturidade política dos seus actores, onde se mesclam reivindicações básicas e exigências políticas claras como a demanda do fim do consulado de Eduardo dos Santos. Ainda que o seu percurso seja breve demonstra uma continuidade latente, com crescente adesão pública ou em surdina.

 

A reacção das autoridades policiais e da liderança política do MPLA e do governo fez estalar o verniz da vocação democrática e de reconciliação de que tantas vezes se faz alarde.

 

A polícia, cedendo à tentação autoritária dos círculos fundamentalistas, embora tenha iniciado um respeito dos protocolos da lei em democracia, desembainhou o ingrediente ultimamente em voga dos “elementos não identificados”, curiosamente muito frequentes nas manifestações nos últimos tempos, cuja arte consiste em construir cenários de arruaça que, em seguida são atribuídos aos manifestantes, sumariamente agredidos. Mas a violência dos agentes policias, tida como desproporcional e provocatória por muitos cidadãos, organizações da sociedade civil e partidos da oposição, seria menos grave, se o discurso político de dirigentes do MPLA e do governo, paralelo a estes acontecimentos, não a potenciasse ainda mais.


Expliquemo-nos.

 

No momento em que escrevo estas linhas no fecho desta edição, quarta-feira, 14, acabo de ler as declarações feitas pelo ministro angolano das Relações exteriores, George Chicoty em Lisboa, Portugal.


Chocoty alertou para o risco de os protestos de rua poderem degenerar em conflitos de proporções incontroláveis, advertindo que os manifestantes terão que assumir as consequências do que provocarem. E citado pela agência Lusa adiantou: "Temos um país com vários grupos étnicos, com várias sensibilidades políticas e se cada um for para a rua e pegar em alguma coisa? É verdade que vamos aceitar algumas manifestações, mas temos que ter o cuidado de que isso não descambe. Temos que ter a certeza que podemos assumir as consequências das opções que escolhermos e nem sempre é assim. Veja como a guerra começou em 1975: todos pensámos que íamos para a democracia e acabámos lutando. É preciso ter esses cuidados", disse Georges Chicoty.

 

Este discurso corporiza toda a posição do governo do MPLA face as manifestações. Uma é baseada na ameaça de que “ os protagonistas devem assumir as consequências” Pergunta-se: quais consequências?

 


Outra postura do governo e assim o fez o ministro do Interior Sebastião Martins – é a de brandir sistematicamente a espada de Dámocles do regresso à guerra cada vez que alguém – cidadãos, organizações da sociedade civil ou partidos da oposição – pretendem manifestar-se contra as políticas do partido governante MPLA ou do seu líder, José Eduardo dos Santos. Esta estratégia do recurso ao espectro do regresso á guerra civil e do medo, cujas marcas ainda estão presentes em todos nós – parece para os situacionistas uma arma eficaz, embora insuficiente por si só.


Os arautos do unanimismo e dos encómios permanentes ao presidente da República, na circunstancia o cidadão José Eduardo dos Santos, pretendem que a estabilidade não merece o contraditório, a diferença, a expressão adversária pacífica, o pluralismo, a diversidade. Daí a evocação do espectro da guerra étnica por Chicoty. O estranho é que as manifestações do movimento espontâneo ou as mobilizações de massas do MPLA nunca representem perigo algum: são sempre olimpicamente genuínas, pacificadoras e reconciliadoras.

 

Os dirigentes do governo e do MPLA exibem um outro estranho crédito democrático: segundo o ministro do Interior, Sebastião Martins, secundado por outros dirigentes do MPLA ou do governo – a presença de membros da UNITA ou de outro qualquer partido da oposição por extensão, seria um elemento “interessante” ou evocaria interesses ocultos. Se os membros dos partidos políticos, como aliás qualquer cidadão no exercício pleno dos seus direitos, não podem fazer uso dos seus atributos constitucionais, de que democracia estamos a falar? A manifestação pública em Angola será apenas um direito dos apoiantes do MPLA e das falanges do culto a personalidade do seu presidente?

 

Desnecessário será, continuar a referir a leitura atípica do direito á manifestação e da liberdade de expressão feitas pelos dirigentes do MPLA e do governo. Há um outro problema igualmente sério. A liderança política do país parece não ter percebido o que acontece ao seu redor em Angola. Há uma reacção de absoluta negação da mudança e do diálogo, um discurso unívoco de quem não é por nós é contra nós, avesso à transição pacífica democrática.


Em tempos tínhamos escrito neste jornal que ao não equacionar os problemas da transição democrática num diálogo aberto com as oposições e a sociedade civil, o MPLA, refém da liderança de Eduardo dos Santos e da dita “ sucessão presidencial” no partido e na candidatura à presidência da República – uma diferença tão bem escalpelizada pela pena arguta de Mihaela Webba – poderia colocar obstáculos ao alcance mais pacífico daquele desiderato.


Nas últimas semanas tenho escutado opiniões, inclusive de antigos quadros do MPLA, que consideram mesmo que a direcção do partido dirigido por Eduardo dos Santos, está a cometer erros sucessivos, a “ dar tiros no próprios pés” como soe dizer-se, politicamente falando.

 

O MPLA, que alguns dirigentes mais escorreitos pensam dirigir melhor com a política de “ firmeza diante das manifestações” ( leia-se repressão calculada) depois de exibirem um despreparo total a avaliar pela tentativa de corrupção de alguns jovens, deveria reflectir melhor sobre o momento actual. Ora, o discurso de que “ algumas forças da oposição estariam supostamente a preparar terreno para adiar as eleições” – um argumento que nem a prática nem a lógica provou ser verdadeiro até agora – não ajuda.

 

O MPLA e o governo continuam infelizmente a conviver mal com o contraditório e as diferenças. As manifestações quando não proibidas, são torpedeadas e implodidas, com cidadãos presos e condenados injustamente. A imprensa privada, depois de cerceada e remetida a acções tipo “OPA’s” (Ofertas públicas de aquisição) forçadas, para não falar do esvaziamento do sevriço público, soçobra. O grande público sem ou com poucas opções de acesso à informação, recebe de bandeja versões “ prontas à vestir ou comer” dos acontecimentos, unilaterais.


Mesmo o simples facto de a crítica popular estar concentrada na figura do líder do MPLA e Presidente da República, Eduardo dos Santos, afinal verdadeiro centro absoluto do poder - agora no texto e na praxis - não suscita interrogações nos adeptos dos aplausos intermináveis. Indefectíveis da situação, que preferem montar operações ridículas como a daquelas pobres autoridades tradicionais que surgiram no canal público a condenar as manifestações críticas da liderança de JES, ou moblizar os CAP’s para as conhecidas acções de vigilância e mobilizações de massas, em resumo fechar as janelas e portas ao diálogo com a sociedade civil e as oposições.

 

O contexto actual está a fazer emergir uma nova realidade patente no sentimento de solidariedade que uniu várias organizações da sociedade civil na resposta á repressão policial e às condenações judiciais injustas. Mesmo as oposições mais desavindas, motivadas pelo protesto juvenil da rua, encontram agora plataformas comuns. Quando vozes como a de Marcolino Moco, poderem ou ousarem manifestar publicamente o seu desagrado ou simplesmente emitir uma outra opinião à linha oficial do MPLA, o partido dos camaradas já não será o mesmo.