Lisboa - Jornalista independente até à medula, investigador num país onde fazer perguntas provoca muitas dores de cabeça, Rafael Marques editou agora uma denúncia em livro sobre a exploração, a violência e a morte que grassam nesse grande "campo de concentração" em que foram transformadas as zonas de garimpo de diamantes em Angola.
Fonte: IOL
"O regime não tem capacidade para se regenerar"
Este livro, mais que uma denúncia, é quase um grito para que a comunidade internacional e os países amigos de Angola percebam o que se está a passar?
Eu diria que é um processo de informação dos angolanos e um contributo para a formação da consciência social em Angola sobre a realidade do país. A comunidade internacional e os amigos de Angola, como o Estado português, são cúmplices do que se passa no país. Sabem o que se passa e também sabem, por exemplo, que os proventos indescritíveis que são investidos em Portugal e noutros países provocam uma mortandade e uma violência extrema em Angola. É o dinheiro com que as empresas portuguesas sonham: que os angolanos venham cá comprar empresas, que venham cá comprar apartamentos, que venham cá gastar nas lojas, é um dinheiro que está a levar a vida de muitos angolanos.
É um dinheiro de sangue?
É um dinheiro de sangue. E todos estão confortáveis com esta situação, enquanto o povo angolano está ali a definhar. O grito não é para a comunidade internacional, mas é para que os angolanos saibam compreender a realidade do seu próprio país e façam alguma coisa em relação a essa realidade. Porque não devemos esperar nada da comunidade internacional, senão o seu cinismo e o contínuo apoio àqueles que permitem, como dizia Agostinho Neto, que os abutres venham debicar na carne inerte e tirar o seu pedaço.
Este relatório que sai agora em livro, já o entregou a alguma organização internacional? Tenciona fazê-lo?
É um relatório que não tem recomendações à comunidade internacional. Tem uma recomendação única: aos angolanos, para que tomem consciência do seu problema, para que saibam gerar solidariedades para defender os seus compatriotas, os seus concidadãos. A zona das Lundas, com algumas variações, é um campo de concentração. Um campo de concentração moderno, onde há trabalho forçado, onde há situações de semi-escravatura. Porque muitos destes garimpeiros são usados para o enriquecimento dos generais, para o enriquecimento da Ascorp (onde a família presidencial tem acções), a Sodiama (que é uma empresa do Estado angolano), o Lev Leviev e Samuel Goldstein (conhecidos vendedores de diamantes a nível mundial) e outras figuras internacionais. O Estado português tem sociedade com a Endiama na Sociedade Mineira do Lucapa [através da empresa pública Sociedade Portuguesa de Empreendimentos, que detém 49% da empresa]. Um grande comedouro internacional, onde todos vão buscar recursos.
Isso quer dizer que o Estado português, além de cúmplice, é actor nestes crimes?
Na Sociedade Mineira do Lucapa é. Também há expropriações de lavras sem compensação na zona do Locapa, onde está situado este projecto com participação do Estado português.
Então quando fala no livro de crimes contra a humanidade Portugal também está associado a esses crimes?
Como sócio do projecto também é co-responsável pelo projecto e pelas más práticas dessa mesma empresa e da sua contratada, a empresa privada de segurança.
Fale-me um pouco dessa empresa de que fala no livro e que é uma organização quase paramilitar.
Como muito bem disse, a Teleservice é uma empresa paramilitar que é propriedade de uma série de generais angolanos, entre eles o general França Ndalo, antigo chefe do Estado-Maior das FAPLA e actual presidente da De Beers; e outros dois ex-chefes de Estado: o general João Batista de Matos e o general Armando da Cruz Neto, actual governador de Benguela. É a maior empresa privada de segurança de Angola, com cerca de 8 mil homens. E é a empresa que não só conta com o poder dos generais, mas também com o facto de ser a principal garantia de serviços de segurança às multinacionais petrolíferas. É uma empresa riquíssima, porque tem os principais contratos de segurança do país e detém um poder financeiro extraordinário por causa disso. Essas multinacionais também contribuem e são cúmplices desses crimes porque mantêm contratos com uma empresa que sabem que viola de forma sistemática os direitos humanos em Angola.
Todas essas empresas que estão em Angola o que dizem é que têm de se sujeitar às regras existentes se querem fazer negócios no país.
Isso é uma falsidade, porque a lei não permite que estabeleçam negócios com dirigentes angolanos para obtenção de contratos facilitados ou outorgados por esses mesmos dirigente. Isso é corrupção pura, de acordo com as leis angolanas e os tratados internacionais sobre corrupção assinados por Angola. Vou dar um exemplo de como este argumento é falacioso. O Banco Espírito Santo vendeu 25% das acções do BESA em Angola a um tenente-coronel da presidência da República que é da chefia da escolta presidencial. Onde é que o escolta do presidente encontrou 375 milhões de dólares para comprar 25% das acções do BESA [Banco Espírito Santo Angola]? O tenente-coronel Leonardo Lidinikeni tem 98% das acções da empresa Portemill, onde é que ele encontrou esses 375 milhões de dólares? A Portemill não tem. É lavagem de dinheiro. Agora o banco vai dizer que foi forçado a lavar dinheiro? O BES tem de explicar isso. Aquele dinheiro só pode ter origem duvidosa. Onde é que um tenente-coronel, que sempre serviu o exército como escolta, encontrou tal soma de dinheiro?
Em Angola, ao contrário de outros países em que existe corrupção, em que os governantes tentam disfarçar os negócios com testas-de-ferro, tudo parece muito mais às claras...
A corrupção em Angola é um acto transparente. Há total transparência dos actos de corrupção em Angola e as empresas portuguesas dão o seu contributo para isso. Um banco recebe 375 milhões de dólares de Luanda e não diz nada? Não se preocupa de onde vem aquele dinheiro? Agora vão dizer que foram forçados? Não lêem as leis angolanas? As leis angolanas foram escritas por juristas portugueses que colaboraram na elaboração da Constituição angolana, que é extremamente assertiva sobre a democracia. Então vão dizer que não sabem que estas leis existem?
O problema é que as leis só existem se forem aplicadas.
É a mesma desculpa que usam outros sectores sobre o período da escravatura - os colonialistas dizem que só se envolviam na escravatura porque os chefes africanos vendiam o seu próprio povo. É um dos argumentos que se utilizam para justificar a escravatura. Hoje diz-se: "Eles roubam e pedem-nos a nós para reinvestir o produto, mas quem está a saquear e a roubar são os próprios dirigentes, nós só os estamos a ajudar." É a justificação racional que alguns apresentam.
Apesar de a corrupção ser transparente em Angola, há um único homem que nunca aparece como estando metido directamente nos negócios: o presidente José Eduardo dos Santos.
Em relação ao presidente da República, a questão é muito simples: o presidente não pode assinar um contrato do qual resulte benefício ou enriquecimento da sua própria família. E todos esses grandes contratos são assinados por José Eduardo dos Santos. É nepotismo, acto de corrupção e ele devia ser processado por isso. Aquelas percentagens que a Isabel dos Santos tem são em representação do pai, porque é o pai que assina os contratos em Angola. Isso é contra a lei. Como podem dizer que é uma grande empresária e rica? Rica de quê? Se é o pai quem assina os contratos todos?
Mas o presidente cultiva o silêncio e cultiva essa posição de estar acima de todos os outros...
É uma ideia falsa, mostro-lhe aqui um negócio feito pela primeira-dama como gestora de um banco [mostra uma página do Diário da República de Angola]. A assinar documentos e a declarar como residência a presidência da República para efeitos de negócio privado. É o uso da presidência para seu proveito, isso é contra a lei! A meu ver, ele é muito mais corrupto que todos os outros. Todos esses actos de corrupção de que estamos aqui a falar são assinados pelo presidente, passam todos pelo Conselho de Ministros. Ele é o facilitador, o distribuidor da grande corrupção em Angola.
É o garante dessa corrupção?
É o garante dessa corrupção. É o padrinho dessa corrupção. Ele assina os contratos todos que envolvem estes dirigentes. Eles submetem os processos ao Conselho de Ministros e o presidente aprova-os.
Temos países como Portugal, que atravessam uma grave crise económica e onde há empresas cuja sobrevivência depende, em grande medida, dos rendimentos conseguidos em Angola; temos a comunidade internacional, que considera Angola uma potência regional e actor importante na geoestratégia da África austral. Neste contexto, as suas denúncias não estão condenadas a cair em saco roto?
Por isso é que o meu apelo não é para a comunidade internacional. É um trabalho que em qualquer sociedade normal deve ser feito, com ou sem intervenção da justiça. É a capacidade dos cidadãos registarem, até para efeitos de memória colectiva, a realidade que está a acontecer. Uma realidade de violência, de pilhagem desenfreada, que tem de ser registada. Muitas vezes falamos de Angola por ouvir dizer. E o que se está a fazer com este trabalho é criar um registo do que se está passar, para que as pessoas estejam mais bem informadas e possam criar uma consciência social e de solidariedade para defesa da vida humana em Angola. Não é possível construir uma pátria e falar em desenvolvimento humano, em democracia ou em transparência, num país onde o governo banaliza a vida dos cidadãos.
Acredita naquela informação que começou a circular de que o presidente angolano tinha escolhido o presidente da Sonangol para ser o seu sucessor?
Eu penso que ele nem sequer deve ter manifestado essa ideia. Primeiro, o líder do MPLA é, por inerência, caso o MPLA ganhe as eleições, o presidente da República. Isso implica que o Manuel Vicente seja presidente do MPLA e para isso é preciso passar por uma eleição dentro do MPLA.
Mas se for indicado por José Eduardo dos Santos não é um bom indício de que chegará a esse cargo?
O MPLA tem estatutos que prevêem eleições internas. O presidente pode ser votado por unanimidade, como aconteceu no último congresso (houve até dois ou três votos contra, de forma simbólica), mas tem de passar por uma eleição. Por outro lado, Angola não é uma dinastia. Não cabe ao presidente escolher o seu sucessor. É um direito que cabe ao povo, ao eleitor. E o presidente criou uma situação que lhe poderá custar muito caro, que é esta mudança constitucional em que eliminou as eleições directas para presidente. Porque põe maior pressão sobre ele. Havendo eleições directas é o povo que escolhe. Agora como é que o presidente pode escolher o seu sucessor se há eleições no país? Então está a assumir - como todos esses que espalham essa ideia - que as eleições são desnecessárias em Angola.
Digamos que estão um pouco confiantes, ganharam as últimas eleições com 80%.
Sim e em Março afirmaram ter juntado um milhão de pessoas numa marcha de apoio ao presidente José Eduardo dos Santos e ao MPLA. E agora em Setembro tremeram de raiva quando 200 jovens gritaram "Abaixo o José Eduardo dos Santos". Estão a cometer erros crassos, porque nem sequer conseguem ouvir a voz de 200 jovens. Um poder que tem 80% dos votos e que junta numa manifestação um milhão de pessoas tem medo de 200 jovens?
A ideia das revoluções árabes e do Norte de África trouxeram algum nervosismo ao regime em Angola?
Claro que trouxeram. E é um nervosismo resultante da sua capacidade de se adaptar a uma verdadeira cultura democrática. Em que a participação do eleitor determina o comportamento da classe política. O MPLA não está preparado. Está preparado para manipular o conceito de democracia, mas não está preparado para a verdadeira democracia em Angola. Por isso é que o presidente se está a encurralar a si próprio. Como explicar, volto a repetir-me, que um partido com 80% dos votos, que consegue juntar um milhão de pessoas para gritar "viva o presidente", saia à rua com a maior das violências e prenda um grupo de jovens que juntou 200 pessoas para dizer abaixo o presidente? Não tem confiança nos votos que teve? E se não tem confiança nesses votos confia em quem?
O regime em Angola tem capacidade para se regenerar por si?
O regime não tem capacidade para se regenerar. Porquê? Porque o poder está a ser perseguido pelos seus próprios fantasmas, não pela população. E é um exemplo que eu dou aqui na questão das Lundas: com todos os assaltos que se fazem, a população só quer ser deixada em paz. Quer recursos mínimos de subsistência, não quer os diamantes, mas nem isso conseguem compreender e satisfazer. Porquê? Por causa desta banalização da vida. O presidente está numa situação em que tem de proteger os seus próprios actos de corrupção. Hoje o governo está mais preocupado com manter o controlo da situação como forma de segurança. Porque depois, quando saírem, como ficam as fortunas? Como irá a Isabel [dos Santos] explicar a obtenção de tantos 25%? Nos negócios assinados em Conselho de Ministros, de bancos e outras empresas? Como se manterão esses negócios com a saída do pai? E quem fala da Isabel fala de outros dirigentes. E por isso é importante nesta fase embrionária de mudança de consciência social o próprio presidente tomar a liderança no processo de começar a discutir uma transição. E num processo verdadeiramente angolano. Pedir desculpa pelos seus crimes e garantir que tem um futuro tranquilo em Angola. Que seja deixado em paz; com parte da fortuna que acumulou, se for preciso. Em nome da paz e da reconciliação. Se continuar a agir com arrogância e a achar que a violência, que sempre o manteve no poder, continuará a ser o seu garante, então estará a criar um efeito bumerangue sobre si. E os membros que estão à sua volta, que usam a imagem do presidente para proteger os seus interesses, vão acabar por condená-lo, vão acabar por arrastá-lo para um beco sem saída. Quando, neste momento, ele pode criar a sua própria saída. Não quer dizer que tenha de indicar um sucessor. Isso não será feito. Nem no próprio MPLA será feito. E o presidente sabe disso. O Manuel Vicente como presidente não vai garantir nada.
Isso não seria uma forma de começar a iniciar a regeneração do regime? Visto que Manuel Vicente é um tecnocrata, não um político, um homem que fez da Sonangol uma grande empresa...
Um grande antro de corrupção! O Manuel Vicente é um indivíduo extremamente corrupto. Ficou com 1% da Sonangol e não consegue dar uma explicação plausível disso. Onde estão os lucros dos investimentos da Sonangol no exterior? A Sonangol, o ano passado, apresentou um lucro de 2 milhões de dólares. Com tantos investimentos que se fizeram fora, onde é que está o dinheiro? Em que é que se transformou a Sonangol se a Sonangol nos traz lucros de 2 milhões de dólares? Uma empresa de petróleos num país em que 95% das exportações dependem do petróleo? Lucros de 2 milhões de dólares?! E estamos a dizer que ele transformou a Sonangol em quê?! Onde é que está o dinheiro da Sonangol?! E agora a Sonangol até vende casas sociais, quer dizer, está envolvida em tudo! Mas onde estão os lucros? O retorno desses investimentos que o Manuel Vicente anda a fazer? Os investimentos que se fazem com a China. Essas empresas fictícias que são criadas na China. Onde é que está o retorno? E os angolanos vão perguntar isso. A questão não é a de regenerar o regime mas a de fazer a devolução do Estado angolano. É a principal questão em Angola: a devolução do Estado. A reforma de José Eduardo dos Santos como garantia de que ambas as questões sejam solucionadas, ao mesmo tempo e de forma cortês? O José Eduardo dos Santos amarrou o Estado angolano; representa a privatização do Estado angolano. Como garantir que ele entrega o poder e sai com todas as garantias de segurança, para poder permanecer no país com tranquilidade? Porque, também, com todas estas denúncias do género de que pagou 50 milhões de dólares para acabar com o Angolagate, se o presidente se reformar no exterior do país está sujeito a ser detido para responder a processos em França ou mesmo em Portugal. Então tem de garantir que tudo o que foi feito de errado no país seja tratado no país. E para isso tem de garantir a liberdade de expressão agora. Abrir o "Jornal de Angola", que é uma máquina de propaganda já fossilizada. Abrir a Rádio de Angola, abrir a Televisão Pública de Angola, para gerar este debate no país. É a única segurança que tem. Porque a segurança da violência pode virar--se contra ele.
Tentou publicar isto em Angola?
A última tentativa de publicação em Angola foi retirada na gráfica. E as pessoas não esquecem que, no ano passado, os meus relatos sobre corrupção eram também publicados em alguns jornais de Angola. E um desses jornais foi comprado por órgãos ligados ao regime.
Ou seja, escreveu este livro para o povo angolano e a verdade é que a maior parte do povo angolano não vai ter acesso a ele.
É assim, os angolanos pedem sempre que lhes compre umas camisas, e uns sapatos, e umas prendas aqui de Portugal. E todo aquele angolano interessado em saber do país, em vez da camisa vai começar a pedir que lhe leve um livro. Porque não tenho outra forma. Não tive qualquer apoio institucional, excepto, a amabilidade da editora Tinta da China em transformar este relatório em livro. Agora os angolanos que estão preocupados com esta situação vão certamente tentar arranjar o livro e partilhá-lo com outros. Eu escrevia-o para que também a população nas Lundas tenha acesso a este livro e se criem grupos de leitura - como fiz, em ocasiões anteriores - para que tomem conhecimento das coisas que são ditas nestes relatórios.
Roubaram-lhe parte das notas para este relatório/livro no aeroporto em Luanda. Não teme pela vida, não se sente ameaçado?
Há uma resposta que dou sempre. Eu sou um cidadão consciente que está a cumprir com o seu dever profissional e cívico. Se há neste relatório alguma falsidade, que seja levado a tribunal. Agora, se há ameaças à margem da lei, por estas não posso responder. Mas posso dizer que vou continuar a fazer o meu trabalho porque, como cidadão, quero uma Angola diferente. Onde o trabalho de investigação jornalística ou antropológica, sobre qualquer tema, seja um processo aberto. É assim em Portugal, é assim na África do Sul, é assim na Zâmbia. Em Angola, deve ser o mesmo.