Luanda -  1. Acesso e Segurança de Posse e Uso da Terra

Para nós Rede Terra a segurança alimentar sugere em primeira instância o acesso e o mínimo de segurança de posse e uso da terra. Sem a garantia de posse segura do direito à terra todo o investimento é tímido e insustentável  porque inseguro o investidor ou empreendedor. Mesmo é terras das comunidades protegidas pelo costume impõe-se a prova do reconhecimento de suas terras que são alvo de esbulho remetendo as populações a condições de uso e posse bastante precárias. Na luta para a posse segura e segurança alimentar a Rede Terra não está alheia pois em parceria com a ZG/Misereor está em diálogo com instituições competentes para apoiar a titulação da terra e por conseguinte garantir a realização de direitos económicos, sociais e culturais.


Fonte: Club-k.net


Ao longo de séculos as terras constituíram o epicentro de vários conflitos que perseguem as gerações actuais. Essas terras ficaram, de certo modo descaracterizadas por várias razões o que potencia ainda os tipos de conflitos. Temos de preveni-los e investir seriamente na formação do homem para que compreenda que da terra depende não só a segurança alimentar como o futuro da própria humanidade. A razão é simples: é da terra que tiramos a mandioca, o milho, o feijão, o diamante e tantos outros recursos. Aliás, não é em vão que hoje vemos países do ocidente e, não só, como a China e tantos outros a invadirem terras de muitos países africanos. Cá entre nós houve um protocolo não tornado público entre Cabo-Verde e Angola sobre a exploração de terras. Não sabemos os termos exactos, os valores, o tempo de exploração, mas o que é certo é que parte de uma parcela da nossa terra ficará privada para realizar interesses que julgamos não potenciarem as nossas populações. Vemos as ocupações de grandes extensões de terras por empresas imobiliárias, maioritariamente, estrangeiras ou com estrangeiros que, em muitos casos, põem em causa a própria segurança alimentar ou ainda os direitos económicos, sociais e culturais das nossas populações, exactamente, porque ocupam terras há muito exploradas pelas famílias comunitárias.

 

A destruição de lavras; os desalojamentos de famílias pescadoras para áreas que impossibilitam o exercício de sua ocupação tradicional, fonte de sua subsistência; a instalação de fazendas em espaços onde as famílias comunitárias exercem as suas actividades agro-pecuárias, portanto, do domínio útil consuetudinário; cercos e impedimentos de acesso a espaços aonde as famílias exploram o mel, a lenha, vassoura, plantas medicinais, cogumelos e outros recursos de sobrevivência perigam a própria segurança alimentar. Veja, o que se passa nas Lundas…a procura do diamante e a agressão à natureza, ambiente, cujas consequências futuras se prevêem desastrosas na economia das famílias da região. No Município da Cela, Waku-Kungu, as pessoas usavam o rio Cussoi para apanhar o peixe e o bagre, mas hoje, isso é impossível porque vários detritos de uma fábrica poluem o rio. Portanto, a segurança alimentar remete para uma reflexão profunda sobre questões de fórum ambiental e sustentabilidade.


2. Políticas de Combate à fome e Sustentabilidade Ambiental


Hoje, por mais investimentos que se façam, sobretudo, na agricultora se forem descuradas questões de sustentabilidade ambiental tudo pode ser fatal. As mutações nos padrões climáticos são uma realidade que não terão apenas incidências negativas nas economias tradicionais ou não, mas também na saúde humana o que nos permite olhar para a segurança alimentar com olhos no futuro. É uma responsabilidade que deve ser solidária e, por isso, chamar ao diálogo todo o homem, mulher, jovem, velho ou criança porque a destruição e o mau uso da terra é auto-destruição da própria humanidade. Os relatórios internacionais relativos ao aquecimento global e suas consequência nas economias dos povos e na saúde apelam para os cuidados que devemos ter com a terra, nossa casa comum. Estamos em paz e o país não pode depender nem importar mais batatas, fuba, feijão, tomate, alho ou ginguba.


3. Criação de um Instituto de Segurança Alimentar e Nutricional


Para isso, é necessário valorizar mais a produção e produtores nacionais potenciando-os com recursos e conhecimentos em termos de gestão. O governo tem de criar a nosso ver um instituto para atender questões sobre a segurança alimentar e nutricional e deixar de importar modelos de desenvolvimento que não respeitem a identidade sócio-económicos e culturais dos povos. Há que contrariar o império do consumismo que perverteu os fundamentos e valores dos nossos hábitos de consumo. Os programas até agora produzidos são alimentados por recursos financeiros não especializados ou com fins múltiplos que não garantem sustentabilidade quanto a políticas sobre a segurança alimentar. Temos de criar bancos de alimentos e sementes, tornar os preços mais acessíveis para que cada um tenha um pouco para comer. Mas isso, pode ser atingido se trabalharmos a terra com a cultura de sustentabilidade ambiental. Os problemas de escoamento de produtos devem incentivar para que sejam criados regulamentados os mercados inter-municipais ou provinciais e ampliar a rede de crédito bancário sem muita burocracia. O país não deve estar refém do petróleo.

É nosso entendimento que deve haver uma reforma agrária. A trabalharmos desse jeito e com um cadastro a cheirar a neocolonização por força da prevalência e imposição de marcos coloniais sobre as terras comunitárias em meio rural protegidas pela Lei Fundamental não dá. Aliás, corremos o risco de pôr em causa valores que suportam e sempre serviram de base para a segurança alimentar nas economias familiares ou tradicionais. A Rede Terra em parceria com o Ministério do Ambiente e PNUD está a capacitar algumas comunidades sobre gestão sustentável da terra. Portanto, é importante que todos sejam mobilizados porque se queremos segurança alimentar o primeiro garante e agente de transformação e criação da própria riqueza é o próprio homem. Nalgumas situações, esse homem mesmo, que em muitas comunidades e de forma desregrada, lança fogo às lavras, destrói as florestas, atira restos de produtos tóxicos no solo e na água e foge à licença ambiental. Em muitas partes do nosso território há fome.

 

O problema não é que sejamos preguiçosos. O mau uso dos solos, sobretudo, viciando-os com agrotóxicos tornaram os solos improdutivos. As oscilações no calendário das chuvas; as injustiças que criaram disfunções e assimetrias regionais privilegiando aproximação de serviços e bens básicos a algumas em detrimento de outras regiões cujas populações encontram enormes dificuldades de deslocação, transportação e acesso aos serviços básicos. A estratégia sobre a segurança alimentar e nutricional recomenda a produção de uma política de solos em Angola, mas isso morreu em gavetas. O povo precisa de saber o pacote financeiro para cada programa tanto de combate à pobreza quanto de segurança alimentar ou ainda outras. O povo deve ser informado e participar das decisões que sobre si dizem respeito para que esteja em condições de monitorar ou até compreender eventuais limitações que se vão impondo na implementação de programas do governo. O povo não sabe apenas criticar, mas também compreender quando tal se justifique. Programas ou politicas sem sustentabilidade financeira, de nada servem.


Quando falamos da segurança alimentar requer também partilhar experiências e conhecimentos, muitos deles tradicionais, que possam reorientar ou mesmo criar mecanismos de defesa de algumas espécies, sobretudo, vegetais e do próprio património natural e histórico-cultural das populações face às várias ameaças.  Existem plantas medicinais raras que nem sempre são exploradas para potenciar as economias familiares, antes, são levadas e transformadas no exterior beneficiando determinados grupos que assaltam essas espécies silenciosamente. Há que proteger o nosso património natural de onde pode tirar muitos benefícios para a segurança alimentar. A modo de exemplo, segundo a Revista Esporo nº 28, só as vendas de Vinblastine, um medicamento utilizado no tratamento de leucemias e sintetizado a partir de previnca de Madagáscar cifra-se em cerca de 65 milhões de Euros por ano. Para isso, é urgente entre as famílias maior espírito de cooperativismo.


Portanto, o que estamos a chamar a atenção, aqui, é que as nossas populações tomem consciência das ameaças às suas economias e procurem formas de diversificar as suas culturas, com realce para aqueles que tenham no mercado rendimentos mais elevados e com maior resistência às eventuais pragas e doenças. A consciência para a prática da agricultura itinerante prevista na nossa lei de terras, Lei 9/04 e o Regulamento Geral de Concessão de Terrenos é necessária.


As pessoas devem medir os passos e aprenderem a ler os contextos para que as suas iniciativas tenham algum grau de sustentabilidade. Hoje, muitas famílias perderam a cultura de cria de pequenos animais como cabritos e tantos outros. Acompanham o que mais dá dinheiro de momento e depois não têm mais pernas para andar. Na verdade, sabemos que existe um programa de combate à pobreza e uma estratégia nacional de segurança alimentar e nutricional. Esses instrumentos são úteis, mas pecam desde a base porque transcendem em muitos aspectos os valores e fundamentos sócio-culturais dos povos. Hoje, pouco serve importar determinados modelos de desenvolvimento rural. O que é urgente é desencadear estudos multidisciplinares e impor a cultura de maior diálogo, mais e diversificada informação e aproximação entre os decisores e as populações. Temos de aceitar com alguma tristeza que os maus hábitos de consumo estão a roubar-nos o que de melhor temos para a nossa segurança alimentar e não só. A ginguba, a semente de abóbora, etc. substituem o óleo vegetal, mas hoje, quase ninguém usa. A eleição do frango contra a nossa galinha é outro problema. As pessoas gastam, em muitos casos, dinheiros para coisas de que já dispõem.


3. Injustiça na Distribuição dos Rendimentos de Recursos Naturais


Outra questão que nos preocupa é a injustiça social e falta de transparência quanto aos recursos naturais e distribuição de seus rendimentos. Temos a produção do petróleo, exploração de diamantes, inertes e tantos outros recursos naturais; temos o crescimento da economia, mas os reflexos dessa realidade na economia de cada um de nós e da família estão ainda muito distantes. Tudo isso, põe em causa a segurança alimentar, mas temos fé que cada um tenha alguma coisa do rendimento desse país. Muitas famílias que usavam as suas terras tradicionais e ricas para o tipo de actividades que desenvolviam, mas hoje, andam em encostas de montanhas sem acessos para efeitos de escoamento de alguns produtos que vão produzindo.

 

De entre outros casos apontamos o da Aldeia Nova, aos soluços que obrigou e impediu, em muitos casos, o acesso e o uso de terras tradicionais das comunidades, no caso da Cela e o caso das Lundas em razão da exploração do diamante cujos benefícios para as populações em sede de segurança alimentar são remotos. Veja que a lei de terras impõe que as comunidades cujas terras são adjacentes aos sítios de exploração quer turística ou de outra natureza tenham o beneficio de parte das taxas de exploração. Ou ainda, que as populações que situem nas periferias de certos empreendimentos tenham acesso ao emprego. Tudo isso, na verdade contribuiria para o rendimento das famílias e por conseguinte servir, também, de base para a segurança alimentar. Porém, isso não acontece. A pobreza das grandes maiorias só se justifica porque a uns é dada uma grande porção milionária e a tantos outros uma porção de expectativas.

 

4. Fundo de Garantia/Crédito Bancário


O crédito agrícola que está a ser distribuído é bom, mas temos de ponderar muitos aspectos porque muitos sairão mais endividados ou sem terras. Dai que entendemos que se crie um fundo de garantia para as iniciativas das comunidades tradicionais. Explicamo-nos: o que se passa é que à semelhança de outros países africanos correm muitos contratos entre investigadores e não só cujos termos induzem a perdas de terras. E sabemos que muitas pessoas acedem ao crédito usando a terra como garantia. Infelizmente, nalguns casos, essas terras não têm títulos de superfície bastando para o efeito um croquis localização e um documento de um Administrador Municipal, ou ainda, são terras inscritas no domínio útil consuetudinário onde o direito à terra é colectivo nos termos da lei de terras. A perda dessas terras atenta contra a integridade e segurança alimentar de famílias comunitárias em meio rural carecidas, também, de um comprovativo formal de suas terras que é o título de reconhecimento, mas que têm a terra como a sua fonte de subsistência. Para tudo isso, o camponês fica inseguro e tímido nas suas realizações. Portanto, é importante, que as terras sejam qualificadas através de planos até porque, hoje, nem mesmo o governo sabe os limites do domínio privado do Estado, sobretudo, as terras urbanizáveis que estão na base da insegurança e conflitos entre as famílias e empreendedores.


*Activista P/ Direitos Fundiários e Director Executivo da Rede Terra