Luanda -  Há algo de solene na designação da data de formação dum partido político que não se coaduna com o ambiente festivo, de tertúlia ou de seja o que for relacionado com troca de ideias à volta da mesa dum café. Aí, expõem-se as ideias, confrontam-se os argumentos defensores de cada uma delas, lançam-se as bases do que virá futuramente a ser a linha de acção do partido que se pretende criar, mas não se cria partido nenhum. E é aqui, neste ponto preciso que a língua falada interfere a propagar confusão nas mentes, caso não se empreguem com o devido rigor os termos referentes a cada uma das diferentes etapas de formação de partidos políticos. Cre-se que antes de mais nada nasce a ideia de criar um partido político, com certeza no seio de um grupo de amigos que professam aproximadamente as mesmas convicções, tantas vezes, é verdade, no decorrer de conversas de café. Seguem-se as discussões à volta dessa ideia: mas como é que vai ser esse partido?, de esquerda, de direita, que esquerda e que direita, sob que lema ou lemas directores, como, com que tipo de estrutura, qual organização interna e que nome lhe dar, etc., etc....
 
 
 
*António Setas & William Tonet
Fonte: Folh8
 
 
 
Depois de apuradas as ideias e postas de lado as que a maioria recusou, assentam-se as bases para a elaboração dos futuros estatutos do partido a criar, ordenam-se pois os seus elementos constitutivos e poder-se-á então proceder ao que se poderá designar por uma lenta “gestação” do partido. Finalmente, depois de muita saliva gasta e talvez alguns tinteiros deitados ao papel, e se por acaso a força das ideias ainda unir entre si os “membros fundadores” da primeira hora (o que é muito raro, pois a esmagadora maioria desses projectos morre no ovo) gera-se um estado de maturação tal que a dada altura se pode afirmar que foi fundado um novo partido, e isso acontece em geral no decorrer duma reunião agendada para esse efeito, ou de outra maneira menos formal, como, por exemplo, distribuição de panfletos (manifestos) anunciando a boa nova, uma declaração pública de um dos membros, designado para o efeito pelos seus comparsas, ou, por que não, a realização dum acto considerado, até nova ordem, de índole “terrorista”.

 

Assim, há um longo caminho a percorrer entre o momento em que nasce a ideia e a sua concretização. E se compararmos a fundação dum partido político ao nascimento de um ser humano, pode-se dizer que o nascer da ideia para criar o partido se pode equiparar ao nascer do desejo de praticar o acto sexual entre um homem e uma mulher que desejam ter um filho, que a discussão das ideias mestras da futura linha de acção desse partido, esse profundo e profícuo intercâmbio de ideias, tem algo a ver com a fabulosa força de comunicação que se estabelece entre dois seres humanos que praticam o acto sexual por amor, e enfim, que a ordenação dos elementos nascidos das ideias para proceder à concepção final do partido se pode comparar a coordenação das células do ser humano em formação, ou seja, a gestação de nove meses do feto no ventre da mãe e que a nascença deste último corresponde ao “nascimento” do partido. Portanto, no caso do PCA (Partido Comunista Angolano), depois de ter nascido a ideia de o criar, seguiram-se dois a três anos de gestação e, finalmente, o partido nasceu, por decisão unilateral dos seus membros fundadores, no dia 12 de Novembro de 1955.
 
 
A verdade histórica abafada pela política
 
 
 
No que toca à fundação do MPLA, “À tout seigneur, tout honneur”, vamos começar por citar Mário Pinto de Andrade. Para ele, a ideia de constituição dum partido (no caso pendente que englobasse todas as forças de libertação dos diferentes territórios ultramarinos de Portugal), despontou depois duma histórica reunião em Paris, em finais de 1957. Passo a citar, «(…) é em 1957, com a presença de Amílcar Cabral, Guilherme Espírito Santo, Marcelino dos Santos, Viriato da Cruz e eu próprio, cinco elementos apenas, que nós fizemos o primeiro balanço do estado, não do “estado” da Nação, mas do estado da luta – estádio, melhor – do estádio da luta em cada um dos nossos países se encontrava (...). Nessa reunião, que está designada na nossa história política como “reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português”, fizemos uma análise global sobre cada um dos nossos países e tomámos, evidentemente, grandes decisões (...). Essa é, de facto, a primeira reunião política de análise do conjunto dos nossos países. Decidimos criar um movimento de libertação global para a libertação das colónias portuguesas. Esse nome não chegou a ter concretização, transformou-se simplesmente num nome mais breve, mas pouco significativo, muito pálido, porque não reflectia a riqueza da nossa reflexão e tão-pouco a realidade dessa reunião. Chamou-se Movimento Anticolonialista (MAC) (entrevista à jornalista Diana Andringa na RTP, em 1988, citado por C. Pacheco na nota nº13 do seu livro “MPLA, um nascimento polémico”.


Tudo muito bem, mas ele não diz quando foi fundado o MAC, seria nessa reunião?...
Seja como for, é em nome do MAC que os futuros dirigentes do MPLA, Lúcio Lara e a sua esposa Ruth Lara, Viriato da Cruz e Hugo Azancot de Menezes, assim como Amílcar Cabral (representante de Cabo Verde e Guiné) e Marcelino dos Santos (Moçambique), tomaram parte na Segunda Conferência dos Povos Africanos em Tunis, em 1960.


O problema que se lhes deparou nessa altura resumia-se ao facto de a conferência apenas aceitar como participantes as delegações de um país determinado e não representações que viessem da parte de um conjunto de países, como era o caso do MAC, defensor dos interesses dos países colonizados por Portugal. Foi, portanto, necessário recorrer in extremis, ao artifício de substituir o nome do MAC pelo do MPLA, segundo proposta, não confirmada, de Viriato da Cruz.


Foi também no decorrer desta conferência que eles tiveram a oportunidade de conhecer pela primeira vez Holden Roberto, que tinha vindo participar em nome da UPA. Mas a aproximação que se anunciava entre as duas organizações capotou, apesar de ambas terem assinado um documento conjunto, assinado por “Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral (pelo seu partido, o PAI e também pela novel Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN), Viriato da Cruz e Lúcio Lara (pelo MPLA e FRAIN), Azancot Menezes (pelo FRAIN) e “José Gilmore” cognome de Holden Roberto (pela UPA e FRAIN).

 

O que determinou o seguinte comentário de Carlos Pacheco: «Tinha acabado de nascer o FRAIN, que, por evolução, sucedia ao MAC; e também o MPLA, preto no branco pela primeira vez, qual símbolo político até então desconhecido. Ambos curiosamente saídos do mesmo ventre da história e dados à luz em Tunis».
 
 

Os primórdios dos movimentos clandestinos
 
 
 
Tudo tinha começado, maneira de simplificar sem levar em conta todos os feitos heróicos que se passaram antes, nos primórdios dos anos cinquenta do século passado, precisamente entre 1952 e 1953, numa altura em que Viriato da Cruz começara a entabular conversações com outros nacionalistas angolanos - a primeira pessoa com quem ele entra em contacto é Ilídio Tomé Alves Machado, funcionário dos PTT de serviço em Luanda, íntegro e leal, tinha feito as suas primeiras armas políticas na Liga Nacional Africana (LNA) - com o intuito de lançar as bases de um combate político que tinha por alvo a auto-determinação e a independência dos povos africanos e de Angola.


Foi a partir desse encontro que, com a adjunção de mais dois patriotas angolanos, António Jacinto e Mário António de Oliveira, foi criada a primeira organização política com um princípio de estrutura de luta contra o colono, o Partido Comunista de Angola (PCA).


O conhecimento da sua existência sob a forma de movimento nacionalista, deve-se em boa parte a Mário Pinto de Andrade. Eis o que ele revela num artigo publicado na revista francesa de esquerda, Démocratie nouvelle: «Um grupo de jovens marxistas começou por conceber a criação de organizações políticas clandestinas e de carácter revolucionário. Era preciso desenvolver a actividade revolucionária no seio das massas populares e definir o objectivo fundamental da luta angolana, a conquista da independência. É neste quadro que nasceu o Partido Comunista Angolano».

 
Contudo, não faltam analistas que duvidam dessa versão, contestando não a existência e a data de formação do PCA, mas sim sua suposta autonomia. Essa é uma outra questão que não vamos abordar neste artigo, o que apenas retenho é que as origens do MPLA estão aí, no PCA de Viriato da Cruz que foi divulgando como pôde as suas ideias revolucionárias nos meados dos anos cinquenta do século passado Porém, por muito que Viriato da Cruz e os seus amigos se tivessem esforçado para dinamizar as actividades do PCA, a verdade é que a falta de entusiasmo e a fraca adesão que suscitava o comunismo, nos meios nacionalistas angolanos nos anos cinquenta, prejudicaram os projectos dos seus dirigentes A desordem decorrente da falta de organização foi o segundo ponto fraco do PCA. A maior parte das vezes, os membros podiam reunir-se em casa de um ou doutro militante, mas acontecia que algumas das reuniões tivessem lugar na rua. Quer dizer, a improvisação era corrente. Enfim, a pressão policial impedia o desenvolvimento e a expansão das acções dos dirigentes do PCA, os quais, não fosse o diabo tecê-las, serviam-se regularmente de pseudónimos. Assim, Viriato da Cruz torna-se Mona ya Mundu; Ilídio Machado era Paulo Costa; Mário António de Oliveira, José Nunes, e António Jacinto, Carlos Duarte.
 

Nestas condições, pobre e curta foi a vida do PCA. Sobreviveu de 1955 até ao Outono de 1957, que consagrou o seu colapso definitivo por intermédio de dois acontecimentos imprevistos: as inopinadas partidas de Mário António de Oliveira, por razões pessoais, e do seu principal animador, Viriato da Cruz, por razões de segurança (embarcou a 30 de Setembro de 1957 no paquete Uíge, sem se despedir e sem levantar o seu salário na Singer, onde labutava – C. Pacheco).

 

Porém, não se pode passar sob silêncio um primeiro, digamos, semi-colapso do PCA, cuja ocorrência se deve ao aparecimento no xadrez político clandestino luandense de um outro partido, o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUAA), cuja existência efémera serviu para camuflar a natureza comunista do PCA e agir como sua sucursal (C. Pacheco), na medida em que os seus membros fundadores eram os mesmos (de facto, dois dos quatro membros fundadores do PCA retirar-se-ão, só Viriato da Cruz e Ilídio Machado irão efectivamente militar no PLUAA. Ignoram-se as razões das reticências dos outros dois – JM Mbah- editora Mayambe).

 

Ora foi precisamente na sua qualidade de dirigente do PLUAA que Viriato da Cruz escreveu o famoso manifesto que veio a ser, mais tarde, considerado como sendo o Manifesto do MPLA, comemorando a efeméride da sua fundação - documento fundamental, mas recusado por todos os historiadores do mundo menos pelos que estão ao serviço do MPA.

 

Mário Pinto de Andrade revelou num artigo publicado pela revista Democratie Nouvelle em 1960, que a existência do PLUAA datava do início de 1956, fazendo-o aparecer como uma alternativa do PCA. Mas, dois anos mais tarde, o mesmo Mário Pinto de Andrade, num outro artigo publicado desta vez na revista Présence Africaine, já não situa a data de nascença do PLUAA em 1956, mas três anos mais cedo, ou seja, em 1953.

 

Segundo JM Mbah (tese de doutoramento na Sorbonne), esta nova versão será adoptada pelo grupo de trabalho do MPLA, que deixou de fazer alusão ao PCA, o qual, singela, e repentinamente deixou de ter direito a capítulo na história de Angola. E não é tudo, por se tratar nessa altura duma questão de vida ou de morte para o MPLA, confrontado numa luta sem mercê a partir de 1960 - Tunis – com a UPA, pelo reconhecimento das suas respectivas legitimidades por parte das instâncias internacionais, foram lançadas para o ar uma data de versões diferentes que, aumentando a confusão, dificultavam sobremaneira a sua refutação. Exactamente o que mais desejavam Viriato e os seus amigos, com o único objectivo de camuflar a realidade e poder impor a ideia de que o MPLA já existia alguns anos antes da conferência de Tunis e assim poderem se sobrepor ao movimento de Holden Roberto.

 

Com base nestes factos reais e de fácil comprovação, temos que o MPLA não poderia ter nascido em 1956, como a actual direcção pretende impingir ao país e ao estrangeiro, pois reza, também a história dos movimentos de libertação, que no ano de 1957, foi criada a FPLA (FRENTE PATRIÓTICA DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA), ou seja, três anos antes da fundação de facto do Movimento Popular de Libertação de Angola, por Guilherme Tonet. Se na realidade o MPLA existisse antes de 1957, este nacionalista, que falava com fluência Côkwe, Kimbundu, Umbundu, Nganguela, Português, Francês, Inglês e Espanhol. não fundaria a sua Frente Patriótica de Libertação de Angola, para não dispersar forças, uma vez definir-se, também, na altura, como defensor do marxismo.


A revolução chinesa era uma das suas paixões em termos de construção de sociedade de justiça social, para substituir a colonização portuguesa. Na Torre do Tombo em Lisboa, existem documentos da PIDE, que atestam o facto da existência da FPLA ser anterior à fundação do MPLA.
 
 
Manifesto do PLUAA e conclusão provisória
 
 
Depois disto tudo posto em cima da mesa, deixando de parte todas as outras criações de partidos que também intervieram de uma forma ou doutra no aparecimento do MPLA na cena política angolana, resta-nos concluir e responder essencialmente a duas questões: o MPLA foi ou não foi fundado em 1956, no dia 10 de Dezembro? Quem são os fundadores do MPLA?


O problema que se levanta nesta sequência de fundações de “partidos” angolanos nos anos cinquenta do século XX é que, se dermos à palavra fundar o significado de criar, instituir, estabelecer, é evidente que será complicado provar que o MPLA foi fundado em Dezembro de 1956. Basta ler um extracto do Manifesto referente ao tal amplo Movimento Popular de Libertação Nacional, do 10 de Dezembro de 1956, ipsis verbis:

 
«(...)Essa luta (pela independência), no entanto, só poderá alcançar a vitória final através duma frente unida de todas as forças anti-imperialistas de Angola, sem levar em conta a cor política, a situação social, as crenças religiosas e as tendências filosóficas dos indivíduos, no seio de um amplo MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA. O movimento, no entanto, só poderá nascer a partir duma aliança de todos os patriotas angolanos no seio de uma organização única. O movimento será o somatório das actividades de milhares e milhares de organizações (de três, ou mesmo de centenas de membros cada uma) que se formarão em Angola. O que significa que o povo angolano tem que se organizar através dessas organizações esparsas por todo o território nacional (...)”.
 

Repare-se, o texto está escrito em língua portuguesa, mas o que é difícil, melhor, dificílimo, para não dizer impossível de compreender, é a maneira como se possibilitou a transformação da interpretação do texto escrito no futuro (“o movimento só poderá nascer”) em prova de existência dum movimento popular de libertação nacional no presente, isto é, na altura em que o dito Manifesto (que era do PLUAA e não do MPLA) foi escrito! Note-se ainda, escrevemos “escrito” porque o Manifesto nunca foi publicado, e que se saiba o original não existe, há por aí umas cópias e viva o velho!


Portanto, para compreender os argumentos do MPLA a propósito da sua pretensa fundação a 10 de Dezembro de 1956, seria absolutamente indispensável alterar o texto, de modo a dar um mínimo de consistência aos argumentos que sustentam essa hipótese. Assim, por exemplo:
 


«(...)Essa luta (pela independência), no entanto, só pode (ou poderá, por se referir à luta) alcançar a vitória final através duma frente unida de todas as forças anti-imperialistas de Angola, sem levar em conta a cor política, a situação social, as crenças religiosas e as tendências filosóficas dos indivíduos, no seio de um amplo MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA. O movimento, no entanto, só pôde nascer a partir duma aliança de todos os patriotas angolanos no seio de uma organização única. O movimento é o somatório das actividades de milhares e milhares de organizações (de três, ou mesmo de centenas de membros cada uma) que se estão a formar em Angola. O que significa que o povo angolano tem que se organizar através dessas organizações esparsas por todo o território nacional (...)”.


Escrito assim, tudo no presente do indicativo, até dá para duvidar. Mas no futuro?... é quase inacreditável que se continue a dizer que o Manifesto, apelidado do MPLA, mas que nunca foi do actual MPLA (era do PLUAA), anuncie a formação do mesmo. E cremos que esta capacidade fenomenal de recusar a realidade perdurará até ao dia em que se registe o passamento físico do último militante do MPLA implicado neste entremez histórico.

 

Coisas da nossa terra. Provavelmente mais normais de que enormes, como queremos fazer passar a mensagem, pois a data falsa da sua fundação tem um antecedente famoso, a data de nascimento de Jesus Cristo, que alguns defendem que jamais em tempo algum nasceu a 25 de Dezembro. Portanto consideremos que o 10 de Dezembro é o dia Natal dos "camaradas"!


Quanto à pergunta de quem são os fundadores do MPLA, nós respondemos assim: em primeiro lugar, Viriato da Cruz e Mário de Andrade, um em Angola, o outro no exterior; depois Lúcio Lara, José Rodrigues Miguéis, Hugo de Menezes e Eduardo Macedo dos Santos, mas também todos os líderes que transitaram pelos diferentes movimentos de libertação nacional, obreiros incansáveis e fervorosos dos alicerces do que tanto se desejava e de que Viriato foi o único a exprimir claramente, “um amplo Movimento Popular de Libertação de Angola”, a começar, por mérito próprio, por Ilídio Machado, e só depois os outros, André Franco de Sousa, Pedro Benge, toda a cúpula do MINA, que aceitou afastar-se para deixar entrar o MPLA empurrado pelos ventos da história, aspecto que não abordamos aqui por falta de espaço, Higino Aires, evidentemente, e muitos outros, anónimos e não anónimos (a lista não caberia aqui), que sacrificaram as suas vidas ao ideal da liberdade da Pátria e que se não tivessem marcado presença do momento certo, no lugar certo, talvez o rumo da história de Angola tivesse sido outro…e sem um grande partido, como hoje é o MPLA.