Brasil - Desde a Tunísia, estopim da primavera árabe, passando pela agora célebre Praça Tahrir do Cairo, no Egipto, verdadeiros vulcões sociais entraram em erupção este ano. Varreram do mapa longevas ditaduras que teimavam em desafiar o mundo, sufocando liberdades fundamentais dos seus cidadãos e enriquecendo vergonhosamente pequenas elites e famílias à custa da miséria e sofrimento da maioria. Na Líbia, as manifestações degeneraram numa verdadeira guerra civil que, com o auxílio da OTAN, pôs fim ao regime abominável de Kadhaffi. Assistimos, ao vivo, as horripilantes imagens da execução do ditador líbio, num verdadeiro show de horrores.


Fonte: makaangola.org

A Síria parece seguir mais o percurso da Líbia do que da Tunísia e do Egipto, mas as condições particulares daquele país são substancialmente diferentes das existentes até então na Líbia e tudo aponta para um desenvolvimento diferente.

 

A crise económica que sacode a Europa e os Estados Unidos também fez das suas e trouxe para as praças das grandes cidades milhares de manifestantes. Na Grécia e Itália as manifestações assumiram contornos dramáticos, em Espanha determinaram uma viragem à direita no governo. No entanto, o movimento “Ocupem Wall Street” foi o que mais espaço ocupou na grande mídia, levantando questões que devem levar a reflectir profundamente sobre o papel do Estado e os efeitos deletérios de um capitalismo levado ao extremo. Agora, em Dezembro, milhares de cidadãos russos tomaram de assalto as ruas de Moscovo e outras cidades para protestar contra eleições supostamente fraudulentas e, como consequência, contra Putin e o seu partido.

 

Em Angola o ano foi também de manifestações. A revisão constitucional de 1992 consagrou o direito de reunião e manifestação, enquanto a lei ordinária passou a regulá-las através do poder descricionário dos governos provinciais. Mas estes sempre colocaram obstáculos ao pleno exercício desse direito com recurso aos mais absurdos argumentos. A estratégia de intimidação de potenciais manifestantes foi sendo implementada, quer trazendo à memória das pessoas acontecimentos trágicos como a guerra, os massacres de 27 de Maio de 1977, ou mesmo por meio de ações repressivas seletivas muitas vezes complementadas com ações judiciais manipuladas. Os jovens do PADEPA foram uma verdadeira cobaia de ensaio destas estratégias, que resultaram na implosão daquele aguerrido partido antes das eleições de 2008.

 

Nesse mesmo ano, após uma vitória eleitoral, no mínimo conturbada e que consagrou uma maioria de 81,64% ao MPLA, o seu governo de imediato assumiu uma postura autoritária. Alterou o calendário eleitoral que previa a realização de eleições presidenciais em 2009, sem qualquer consulta à sociedade, privilegiando a aprovação de uma Constituição a seu jeito (atípica como o próprio Presidente José Eduardo dos Santos fez questão de salientar).

 

Do ponto de vista económico, a política do regime, não obstante o vigoroso crescimento do PIB e a recuperação de infra-estruturas, resultou em ganhos sociais incipientes com a consequente prevalência dos elevados índices de pobreza e miséria. Também, e de forma sistemática, a gestão dos recursos do Estado favoreceu o enriquecimento ilícito de uma casta cuidadosamente selecionada ante a criminosa complacência do poder público.

 

Os conflitos de terra multiplicaram-se e assistimos a cenas indescritíveis de desalojamento de populações sem contrapartidas condignas: os zangos e tchavolas (áreas de reassentamento forçado) são prova de que as promessas eleitorais de 2008 foram, no essencial, rapidamente engavetadas e, em alguns casos, substituídas pelo cassetete e pelo trator demolidor.

 

As kínguilas continuaram a ver a sua vida dificultada por polícias e fiscais que, longe de salvaguardarem a ordem pública, estavam mais preocupados em açambarcar os seus micro-negócios para proveito próprio. Enfim, criou-se um caldo apropriado para uma efervescência social que em 2011 viria a emergir.

 

A primeira manifestação em Angola foi convocada pelas redes sociais para 7 de Março de 2011 e deixou o Governo em estado de barata tonta. As reações dos governantes foram totalmente desproporcionais e expuseram de resto, a natureza autoritária do regime e toda a sua carga de arrogância. A estratégia adoptada foi claramente a da exaltação do medo, fazendo crer que a realização de tal manifestação significaria o retorno à guerra e, para variar, atribuindo a autoria da manifestação a certos sectores da UNITA.

 

O ridículo da situação foi ao ponto da apreensão de um navio que transportava armas legalmente importadas pelo governo do Quénia, apresentado como prova de que alguém pretendia o retorno à guerra em Angola. As reacções ensaiadas pelas autoridades expuseram as suas profundas fragilidades para abordar estas questões e elas próprias foram responsáveis por conferir àquela manifestação uma dimensão que, como se veio a verificar a posteriori, não tinha. Na madrugada de 7 de Março de 2011 um punhado de jovens que atendeu à convocatória (menos de uma dezena) e dois jornalistas, foram detidos no Largo da Independência e Luanda conheceu um sábado atípico pois a maior parte da população, à cautela, preferiu permanecer no seguro dos seus lares enquanto um dispositivo policial descomunal tomava de assalto as ruas.

 

Apesar de abortada a manifestação, acabou sendo visível pois ganhou espaço na mídia pública e privada e até internacional e agitou intensamente as redes sociais. O sistema tinha, para todos os efeitos, sofrido um grande abalo e nada seria igual daí em diante. Isto mesmo ficou manifesto quando alguns dias mais tarde José Eduardo dos Santos se dirigiu, profundamente abalado, aos membros do Comité Central do seu partido. Arrasado pela onda crescente de contestação à sua figura veiculada, sobretudo, pelas redes sociais, JES produziu na ocasião um discurso completamente disparatado que atribuía a pobreza reinante em Angola ao passado colonial e insurgiu-se frontalmente contra as redes sociais. Mesmo os bajuladores de serviço tiveram dificuldades em sustentar aquele discurso e na abertura do Congresso Extraordinário em Abril o tiro foi parcialmente corrigido, mas os estragos já estavam lá e pouco mais havia a fazer.

 

Uma nova manifestação pela Liberdade de Expressão foi convocada para 2 de Abril. Desta vez, a convocatória não se ficou pela internet, pois um grupo de jovens assumiu a sua organização e cumpriu a formalidade de comunicar ao Governo Provincial de Luanda. Este, depois do triste espectáculo de 7 de Março, não foi capaz de estruturar argumentos válidos para impedir a manifestação e acabou anuindo. No dia previsto, cerca de 300 jovens reuniram-se no Largo da Independência, entoaram cânticos, muitos activistas como Makuta Nkondo usaram da palavra para exaltar a importância da liberdade de expressão, reunião e manifestação e manifestaram-se contra o caráter autoritário patente no regime de Eduardo dos Santos e a longevidade do seu consulado. Temas como a corrupção foram igualmente arrolados. A manifestação ocorreu sem incidentes de grande monta, mas, depois de desmantelado o PADEPA, esta foi talvez a primeira manifestação pública de contestação ao poder instituído. Este limitou-se a engolir sapos gordos e guardar a revanche para os próximos capítulos.


A 3 de Setembro os manifestantes voltaram à carga e desta vez o Governo preparou-se para não “levar desaforo para casa” e ensaiou uma estratégia de infiltração de agentes à paisana para provocar os manifestantes e assim gerar distúrbios que justificassem uma carga repressiva por parte da polícia caracterizada. Nesse dia, um jovem que se antecipou aos demais levando consigo alguns meios logísticos para a manifestação, Pandita Nehru, foi interceptado por agentes do SINFO e levado para local incerto. Por altura da concentração, mais uma vez, no Largo da Independência e já com o descomunal dispositivo policial “preventivamente” posicionado, os jovens foram informados do que teria sucedido a um dos seus colegas e os ânimos exaltaram-se. Uma parte dos manifestantes insinuou um avanço em direcção ao palácio presidencial na cidade alta e ofereceu o argumento que a polícia precisava para reprimir violentamente a manifestação e assim foi. Polícias armados até aos dentes com cães farejadores de imediato investiram com toda a violência sobre um grupo limitado de manifestantes tendo detido pouco mais de uma vintena de jovens e uma senhora um pouco mais idosa, de seu nome Ermelinda Freitas. O processo de detenção totalmente eivado de arbitrariedades culminou com a apresentação dos detidos a um tribunal para julgamento sumário cerca de três dias depois. O julgamento, também ele perpassado por inúmeras irregularidades, acabou condenando os manifestantes com penas de até três meses de prisão mas, tendo os advogados de causa recorrido ao Tribunal Supremo, este considerou inconsistentes as provas apresentadas e devolveu os condenados à liberdade cerca de um mês depois.


Irreverentes, inconformados, perseverantes e certos da justeza da sua causa, os jovens manifestantes acabados de sair da cadeia encontraram na condenação do jornalista e advogado William Tonnet o pretexto para mais uma manifestação naquela que, para mim, terá sido a manifestação simbolicamente mais expressiva de entre todas as dezenas que ocorreram ao longo do ano. Com efeito, condenado a pagar uma indemnização no valor de 100 mil dólares no quadro de um processo judicial por difamação e calúnia, processo considerado pela opinião pública totalmente injusto, extratos diversos da sociedade foram mobilizados a contribuir para reunir tal exorbitante valor e no dia 15 de Outubro uma manifestação se organizou com o propósito, entre outros, de reunir este dinheiro. As camadas da sociedade que têm sido os principais alvos da repressão policial sensibilizaram-se e mobilizaram-se e contribuíram para o efeito. A campanha permitiu reunir pouco mais de 70 mil dólares e recebeu desde contribuições que vão de simbólicos Kz. 5.00 (cinco kuanzas) até contribuições de cinco mil dólares, deixando assim manifesta a insatisfação de vários extractos sociais em relação à forma como o Estado trata os seus cidadãos. Entendo que esta manifestação terá sido o recado mais contundente enviado espontaneamente pela sociedade às autoridades sobre a forma como se encontram as relações entre governantes e governados. A única questão é saber se as autoridades terão sido capazes de interpretar adequadamente esse recado.

 

Por fim, a 3 de Dezembro, com a lição bem mais estudada, as autoridades abortaram mais uma manifestação com recurso à repressão por agentes à paisana deixando claro que não estão dispostas a conceder de ânimo leve esse direito ao cidadão e, sobretudo, deixando entender que o Governo e em particular seu timoneiro José Eduardo dos Santos nutrem profunda aversão por esse tipo de prática política, pois, muito provavelmente, abala profunda os fundamentos do Governo assentes, sobretudo, em acções de propaganda que visam convencer os angolanos da grandeza das suas realizações, ou seja, tentando convencer os angolanos que vivem num país de maravilhas mesmo quando a sua realidade quotidiana é demasiado áspera.


Pelo país afora muitas manifestações foram, entretanto, proibidas, sob a alegação arbitrária de “ordens superiores”. Nas sociedades democráticas estas “ordens” sem rosto não têm lugar porque não deve haver espaço para arbitrariedades. Entre nós, contudo, é ainda muito corriqueiro evocar tais “ordens superiores” para impor medidas totalmente arbitrárias e completamente ao arrepio da lei. Já é tempo de se pôr fim a estas atrocidades. Direitos fundamentais em situações de normalidade democrática não devem ser administrativamente impedidos como ocorre amiúde entre nós. Só o poder judiciário pode julgar situações em que estes direitos podem ser negados.

 

Portanto, para mim, as personalidades do ano em Angola são estes aguerridos jovens que desafiaram as forças repressivas do regime e ganharam as ruas enviando uma mensagem forte de que a sociedade não está mais disposta a aceitar de ânimo leve que se violem as liberdades fundamentais por sinal claramente consagradas pela Constituição de 2010 clamando por uma democracia plena e por um Governo atento às questões sociais que afligem a população. Jovens como Carbono Casimiro, Banza Hamza, Adolfo Luamba, Jong Nómada, Alexandre Dias dos Santos (Libertador), Alcebíades Kopumi e tantos outros que enfrentaram a repressão policial merecem com certeza ser referenciados como personalidades do ano. Ermelinda Freitas é indubitavelmente a nova Mamã Coragem pela forma como se bateu contra a exclusão social em Angola neste 2011 que se apresta a terminar.

 

Em 2012, ao que tudo indica, teremos eleições gerais no formato que a atípica Constituição de 2010 estabelece, que consagrarão também o novo Presidente da República. Para mim é quase certo que José Eduardo dos Santos será o candidato do MPLA. Apesar do índice de rejeição provavelmente alto que a sua figura desperta, a excessiva polarização política em Angola faz dele um candidato com muitas chances de se eleger Presidente da República. Não foi à toa, aliás, que ele se bateu contra tudo e todos para que a Constituição consagrasse este modelo de eleição “simultânea”.

 

Contrariamente ao que alardeou Paulo Kassoma, presidente da Assembleia Nacional, o acordo a que se chegou em relação à Lei Eleitoral não afasta, por si só o espectro da fraude. Em 2008, em violação flagrante à Lei Eleitoral, não foram publicados os cadernos eleitorais e, por esta via, transitaram muitas das irregularidades que mancharam as segundas eleições ocorridas em Angola. Para 2012 já recaem suspeitas sobre irregularidades no Ficheiro Central do Registo Eleitoral (FICRE) que deverá ser entregue pelo Ministério da Administração do Território (MAT) à Comissão Nacional Eleitoral Independente (CNEI). Seria importante tirar a limpo esta história com auditorias independentes ao sistema para afastar completamente o manto da fraude eleitoral. É que, com as lições retiradas em 2011 nas manifestações ocorridas pelo mundo fora, se este manto não for removido receio que as eleições possam ser contestadas nas ruas como acontece agora em Moscovo e na República Democrática do Congo. Não seria desejável reproduzir estes tristes exemplos em Angola.


Que 2012 seja, enfim, o ano da consagração da verdadeira democracia em Angola!