Estrutura de sustentação

 

Resumindo e concluindo, toda esta situação é sustentada por uma estrutura iníqua que apresenta todos os condimentos necessários para a curto ou longo prazo se criar uma situação idêntica a que se vivia ou se vive em países e Estados em situação revolucionária hoje e ontem, compreendendo basicamente os seguintes elementos:

-uma comunicação social que não apresenta os dados reais à comunidade cívico-política nacional e internacional, e, consequentemente, às próprias autoridades que só se deleitam em ouvir aquilo que lhes agrada, fazendo por ignorar a realidade material dos factos, impedindo a livre circulação de ideias;

-na sequência do funcionamento de uma comunicação assim condicionada, um barulho ensurdecedor para desviar as atenções nacionais e internacionais para as questões de curto prazo, enquanto as questões estruturantes são completamente negligenciadas ou silenciadas.

-um Executivo cujo principal responsável não responde perante ninguém (Parlamento, para quem se limita a emitir mensagens não discutidas; comunicação social toda montada para o adular e não o indagar sobre nada; população com quem não se condói nas piores desgraças);

- uma Segurança de Estado que é desviada da sua tarefa principal que é a de assegurar o Estado democrático que todos defendemos e proclamamos, para cuidar sub-repticiamente de incomodar quem apenas tenha ideias diferentes;

-uma distribuição de riqueza ostensivamente virada para condicionar a subserviência de tudo o que possa ser oposição independente, num país onde até alguma religião é mobilizada para o culto às honrarias materiais;

-um partido no poder que continua a ser apresentado pelos fazedores de opinião como a instituição dirigente do Estado e da sociedade (onde avulta a situação grave da subordinação do poder judicial) quando essa concepção já ficou formalmente superada pelas Constituições de há cerca de vinte anos para cá, depois das mudanças determinadas pela queda do “Muro de Berlim” e pelo fim do chamado socialismo real; e quando esse partido já não controla, mas é completamente subjugado pelo seu líder;

-uma situação de clara manipulação da estrutura étnico-regional do país, em que com as camadas sociais de todos os grupos étnicos sujeitas aos mais humilhantes eventos, sem excepção, se acena a determinados grupos populacionais, a ideia de sua pretensa superioridade sobre outros, para proteger os interesses da minoria que se apodera das riquezas de todos os angolanos sem distinção de raças, tribos ou regiões;

-uma protelação indeterminada da organização do poder local autárquico, onde o poder local dito desconcentrado é sujeito ao mais estrito poder discricionário de um concentrado e desorganizador poder central.

Natureza do regime em Angola

Com estes aspectos caracterizadores do actual regime angolano, tem-se colocado a questão de se saber se se trata de uma ditadura ou de regime de transição para a democracia que enfrenta algumas dificuldades naturais nesse tipo de fase.

As respostas são, naturalmente extremadas, indo desde os que afirmam a existência de uma verdadeira democracia em Angola, partindo da estrutura formal dos textos constitucionais e da maioria das leis ordinárias, no domínio da organização política do Estado, até aos que atribuem a esse estado de coisas a essência de uma autêntica ditadura apenas disfarçada com a aludida formalidade dos textos e do discurso dos detentores do poder.

Olhando para os aspectos materiais da situação, pondo de lado a preocupação de termos de referir, necessariamente, conceitos habituais num mundo actual de mudanças aceleradas, o que importa não é indagarmos se se trata de uma ditadura do tipo clássico (que hoje por hoje já não é possível reproduzir-se em Angola) ou não. O que importa, segundo acreditamos, é olhar para os efeitos práticos desta situação para o presente e, sobretudo, para o futuro do país, de que teremos de responder um dia, como geração actual.

Temos que convir que independente do nome de baptismo que se dê a esse regime, como uma questão meramente académica, o que nos deve preocupar é que se trata de um conjunto de práticas, quiçá habilmente orquestradas (aparentemente inspiradas nas endiabradas “ 48 Leis do Poder de Robert Greene e Joost Elfers”), cujas consequências em nada diferem das que resultam da acção de ditaduras típicas, cuja característica fundamental é a instilação do medo e do culto à personalidade ao declarado líder, a volta do qual se cria a ideia de ser insubstituível porque de qualidades supostamente inexcedíveis, pelo que tudo se lhe deve perdoar, inclusive as suas excentricidades contra a ordem estabelecida. Neste caso, deve presumir-se que o seu papel o exime de toda a culpa por essas excentricidades para que possa fazer prevalecer os interesses mais elevados da comunidade que de forma geral se traduzem na defesa de uma ideologia pretensamente revolucionária, religiosa ou humanista.

Talvez seja aqui que encontraremos o verdadeiro traço caracterisadr do regime “eduardista” angolano, que a si mesmo se intitula de “atípico” quando não se apresenta a justificar-se por impor qualquer tipo de ideologia.

Tivemos, como exemplo o “socialismo científico” para justificar o sistema de Partido-Estado socialista em Angola. Conhecemos o “mobutismo” que dizia defender uma filosofia chamada ”autenticité” na finada “Republique du Zaire”. Temos estado a acompanhar a saga do persistente sistema revolucionário ainda baseado no “socialismo científico” em Cuba ou na República Democrática e Popular da Coreia, não obstante, neste último caso, ter sido praticamente transformado numa dinastia monárquica sui generis. Há, hoje em dia, o “Bolivarianismo” formalmente referendado de Hugo Chaves na Venezuela. Temos ainda a interessante proposta “Um Estado e Dois Sistemas” da República Popular da China, que curiosamente evoluiu para a supressão da eternização dos seus líderes, desde Deng-Xiao-Ping.

O regime angolano, com as suas iniquidades, apenas existe, sem se justificar por qualquer ideologia especial que não seja a necessidade de condescendência com toda uma enormidade de incongruências e práticas de uma gravidade inaudita, cujos resultados esperáveis não diferem de nenhum modo dos que se esperariam no fim das ditaduras puras e duras.

Há cada vez mais gente a acreditar, como nós, que estamos perante um regime autoritário, com mal disfarçada roupagem democrática, cujo objectivo é o açambarcamento despudorado das riquezas nacionais e regionais, a favor de uma minoria aferrada ao poder, com consequências imprevisíveis para um futuro que pode não estar muito distante.