Mudanças em curso e à vista

 

O carácter despiciendo e até dispersivo da convocação para a excogitação da natureza ditatorial ou não do regime angolano actual é tão evidente quanto, determinado pela situação dos chamados “Ventos do Norte”, os sectores mais activos desse regime, com o Chefe de Estado à cabeça, entraram num frenesim de actos e acções contraditórias, em que os habituais gestos e discursos intimidatórios cedem, aparentemente, perante gestos de magnanimidade e vice-versa, o que pode confundir ainda mais aqueles que tanto se preocupam com os aspectos formais do verbo e de gestos para conceberem e concederem nomes aos casos e às coisas.

Na persistente táctica do pau e da cenoura, entrou-se numa das fases do espreitar da cenoura pelas frestas palacianas.

Estamos inteiramente convencidos que se não houver uma acção concertada e inteligente dos agentes interessados na construção de uma sociedade verdadeiramente aberta em Angola, que é a única a poder coadunar-se harmonicamente com a edificação coerente de um Estado democrático e de direito, assente na nossa realidade, este regime dificilmente abdicará de accionar os mecanismos para fazer prevalecer o statu quo que vivenciamos.

O papel da juventude no advento de novos tempos em Angola

Como tem acontecido em todos os momentos decisivos da História de Angola, é mais uma vez a juventude a dar o pontapé de saída, na reacção contra a anormalidade.

Desde que se vem procedendo à perversão do regime democrático que encetamos como um todo nacional e que acima descrevemos de forma sintética, que sucessivas vagas de jovens são subliminarmente colocadas perante fantasmas do passado, como as guerras étnico-partidárias de 1974/75 e de mais adiante, os acontecimentos do 27 de Maio de 1977, entre outros aspectos que haviam tido lugar nos antigos cenários determinados pela desaparecida e internacional Guerra-Fria e reflexos da sua inércia. Esses intimidadores dos mais jovens, a partir do estarrecido da generalidade dos mais velhos, já entrados nas idades do conformismo e dos “gatos escaldados que até de água fria têm medo”, esqueceram-se dos ensinamentos que os tempos trazem. Bastou estalarem os acontecimentos da África do Norte e arredores, para se darem conta que afinal já há um número considerável de pessoas que, pela sua faixa etária, começam a descortinar que aqueles acontecimentos do passado já não lhes dizem muita coisa, quando relacionados com os seus actuais e palpitantes problemas.

Entre uma explosão revolucionaria e a conclusão da mudança transicional

Pensamos que estamos mais uma vez perante uma encruzilhada em que ter-se-á que optar, entre manter este regime iníquo, e nos aspectos mais flagrantes, assimilável aos regimes actualmente contestados no âmbito das revoluções no Norte de África e noutros cantos do mundo árabe e muçulmano, com consequências altamente negativas para as respectivos Estados e nações, que se não irão resolver a toque de mágica; ou assumir-se uma posição realista e retomar o percurso de construção de um regime de democracia transparente e em benefício de todas as camadas sociais do país e de todas as suas regiões com toda a sua diversidade e riqueza.

Com efeito, nessas circunstâncias, a História, a Ciência Política e a Ciência Jurídica (Direito Constitucional Comparado), anotam duas formas essenciais de saída: ou revoluções, nas mais das vezes violentas e devastadoras em relação mesmo a aspectos positivos mantidos no “ancien régime”, desembocando num redemoinho de acções e reacções emotivas que chegam a ser incontroláveis e com reparação de difícil espectro; ou mudanças transicionais, por iniciativa, nas mais das vezes, partidas de sectores mais moderados do próprio regime ou de áreas mais activas da sociedade civil aceites pelos lados aparentemente extremados da conflitualidade política em eminência de explosão.

Noutras circunstâncias, situação semelhante se nos apresentou em finais dos anos 80 e princípios dos anos 90.

O regime de Partido-Estado de cariz socialista marxista-leninista estava esgotado. A guerra fratricida entre angolanos, configurada no esquema formal governo-rebeldes da UNITA, se por um lado deteriorava ainda mais as condições sociais do povo, por outro lado disfarçava as verdadeiras razões da ineficácia governativa de um sistema sem soluções, mesmo a partir das suas próprias “Mecas”, como o eram a poderosa União Soviética ou a avançada RDA. Foi dessas “Mecas” do chamado “socialismo real” que partiu o tom autocrítico de personalidades visionárias e corajosas como Gorbachov, que não se esconderam em evasivas, perante a evidência do fracasso de um sistema que se enredara sobretudo no próprio veneno da ausência de transparência na condução dos assuntos do Estado.

Perante a queda do Muro de Berlim, símbolo maior do fim da chamada Guerra-Fria, e já no epílogo das conversações entre o Governo e a UNITA que pareciam intermináveis, mas que viriam a ser facilitadas pelo advento de um novo quadro internacional, com a assinatura de Acordos de Paz de Bicesse de 1991, colocou-se, na altura, ao MPLA-Partido do Trabalho no poder a questão de se saber se deveríamos manter o Partido-Estado, expondo-nos perante a possibilidade de uma explosão revolucionária, com os estragos que lhe são inerentes, ou, ir-se pela via sensata que estava a ser seguida por boa parte de regimes africanos e não só que, perante os então chamados “ventos do leste”, convocaram todas as suas sociedades a participar nas mudanças requeridas.

Nós, no seio da direcção do então partido no poder, embora, de forma anónima para o público em geral, como era apanágio nesses tempos ainda de sistema fechado, defendemos sem tibiezas a segunda alternativa, porque a achamos realista e sobretudo porque fundamental para a consolidação da paz que haveria de ser alcançada. Foi assim que, adoptada a nossa posição, facilitada pelo ambiente que se vivia na época, foram sucessivamente elaboradas e aprovadas pela então Assembleia do Povo, as leis constitucionais de 1991 (para abrir o país à democracia pluralista) e a de 1992, que contou já com a apreciação da UNITA e de uma Conferência Multipartidária, com partidos ditos não armados, antes da sua aprovação formal.

O que fundamentalmente faz assimilar o actual regime aos regimes normalmente designados de ditatoriais ou, no mínimo de autoritários, é justamente a perversão desse caminho que havíamos iniciado há mais de vinte anos. É isso que acrescido às dificuldades conjunturais que em situação de legitimidade e transparência de um regime não passariam de questões entendíveis, embora sempre difíceis (a fome em países do terceiro mundo, os problemas da saúde, da habitação, educação, etc. etc.), nos coloca, mais uma vez, perante uma situação de escolha: persistir nas manipulações para sustentar a insustentabilidade e propiciar o aprofundamento de uma situação revolucionária ou retomar o caminho da consolidação das mudanças interrompidas por guerras de vários tipos?

É isso que, bem ou mal, sob o estímulo do que se passa noutras paragens, onde os regimes não lêem as lições da História, traz os jovens angolanos para a rua; sobretudo nas ruas da capital, onde de uma forma geral estão representadas todas as regiões do país e praticamente todas as sensibilidades, colocando a estremecer todo um sistema que de tão arrogante começava já a ultrapassar os limites da razoabilidade, até no plano internacional, como aquela peregrina ideia de exportar a “teoria dos Presidentes Constitucionais”.

É sobre isso que alertamos atempadamente, aquando do processo da aprovação da nova Constituição e do adiamento despropositado das eleições presidenciais que já haviam sido indicadas para 2009. E fomos tidos por frustrados inoportunos.

Na verdade, as consequências da fuga à razoabilidade chegaram mais cedo do que nós próprios pensávamos, fruto da velocidade dos acontecimentos, nos tempos actuais.