Saídas possíveis

 

Visualizamos várias saídas possíveis, todas elas tendentes a trazer o país para uma situação de razoabilidade, que no fundamental traga de volta o ambiente criado até ao início da guerra pós-eleitoral, em 1992, no que diz respeito à instituição de um Estado verdadeiramente democrático e de direito e em que as prescrições jurídico-políticas no plano institucional se ajustem minimamente às práticas dos dignitários do Estado; em que se rejeite de forma categórica e clara a subordinação de um país vasto, multiétnico e multicultural aos interesses de um grupo minoritário e à volta de um pretenso líder dito clarividente, que se socorre de um partido garantidamente maioritário, tendo ao dispor todos meios legítimos e ilegítimos de influência sobre a sociedade, para a salvaguarda de seus interesses pessoais e familiares.

É preciso que se sublinhe: não é por mero capricho que defendemos essa ideia com toda a nossa energia. É que sabemos por factos passados e presentes que sem isso não é possível manter uma sociedade pacífica e de forma sustentada.

 

O papel do Presidente da República em funções

 

Uma dessas saídas possíveis é que, enquanto ainda lhe sobra algum prestígio e capacidade de manobra, o actual Presidente em funções ultrapasse certos complexos adquiridos durante o longo consulado de 32 anos de poderes efectivos (e ultimamente quase de dimensão ilimitada) ou mesmo determinados aspectos do seu próprio carácter pessoal, para se colocar acima dos seus interesses pessoais e de família, bem como do seu próprio partido (se é que ainda sobraram alguns) para assumir o papel de principal agente de devolução do poder ao(s) povo(s) de Angola. Seria mais fácil, na nossa opinião, para mobilizar e dar credibilidade a esse processo, que o Presidente transformasse o Conselho da República numa estrutura de apoio para a realização dessa tarefa ou que criasse um órgão alternativo que, pela sua autoridade moral e representatividade, conferisse essa credibilidade.

Essa tarefa tem de passar necessariamente pelos seguintes aspectos essenciais:

-promover um debate nacional, o mais possível despersonalizado e despartidarizado, para a clarificação de uma agenda nacional sobre a conclusão do processo transicional assente nos princípios universalmente reconhecidos como indispensáveis para o estabelecimento de Estados progressivos e de paz sustentável, já que neste momento funcionamos na base de uma agenda aparentemente secreta e pessoal ou de grupo minoritário, e por isso potenciadora de desconfianças que podem redundar em situações de conflito.

-naquele âmbito, elaborar, nem que sejam algumas linhas mestras (já que não sobrará muito tempo para pormenores, tendo em conta a aproximação das eleições de 2012) de um compromisso solene de todos os actores relevantes e representativos da sociedade angolana, no sentido de construímos, sem discriminações abertas ou disfarçadas, um Estado de boa governação, aberta e transparente, onde os direitos fundamentais, o respeito à propriedade pública e ao património histórico-cultural sejam realmente matéria encarada com toda a seriedade.

O actual Presidente da República em funções terá certamente dificuldades acrescidas, porque a maior parte dos aspectos problemáticos a resolver neste contexto afectam-no directa ou indirectamente. No entanto, não vemos uma saída alternativa, em que ele próprio se saia de forma airosa, tanto que pelo cansaço de tantas adversidades desde a independência do país, há ainda uma grande predisposição de franjas importantes da sociedade, incluindo partidos políticos, que estariam dispostas a colaborar nesta empreitada, mesmo quando certos sectores começam já a extremar posições.

Eventual papel construtivo do MPLA

Outro agente relevante que em alternativa ou em conjugação com os esforços a desenvolver no sentido acima exposto pelo actual Presidente da República, é o próprio partido actualmente maioritário (MPLA), hoje por hoje remetido essencialmente ao papel de escudo defensivo das excentricidades cometidas pelo grupo a volta do poder presidencial, mas que continua a ser uma marca de grande peso na sociedade, sendo o único partido capaz de garantir a unidade política de todos os sectores da sociedade angolana, na sua complexa diversidade. Por iniciativa dos seus mais prestigiados dirigentes, o MPLA deveria sacudir-se das grilhetas em que está amarrado, para retomar o papel de líder da mudança que se impõe, sem temer de nenhum modo o seu futuro como organização histórica e marcante da História de Angola.

O problema é que a defesa do prestígio de uma organização política da importância do MPLA não pode de ser feita, de modo algum, à custa da subserviência ou subordinação de todos os outros agentes político-partidários que devem disputar consigo o poder, dentro de princípios éticos mínimos, condição essencial para a garantia de uma sociedade de justiça e paz sustentáveis. Enquanto membros da direcção do MPLA, foi sempre esta posição que defendemos com toda a energia, dentro das estruturas da organização, como pode ser atestado por testemunhas vivas.

É de algum modo entendível que, como partido no poder, em situação de profunda fragilidade da sociedade civil (esta verdadeira salvaguarda do poder soberano dos povos) os membros dirigentes e de base no MPLA se sintam de certo modo extasiados, para aproveitar até ao máximo as benesses desse poder. O problema é que o presidente do partido, aproveitando a sua qualidade de Presidente da República nunca legitimado pelo voto popular, em tempo de democracia moderna, tem levado a organização a níveis tais de perversidade que está já nos limites do aceitável, colocando em perigo a sua própria história, trazendo-nos facilmente à memória lembranças como as do MPR de Mobutu ou os recentes destinos dos partidos de Mubarak do Egipto ou Ben Ali da Tunísia.

Nós não temos a mínima dúvida que a persistir este ambiente de “pessoalização” do MPLA, com falsas aclamações ditadas pela salvaguarda de benesses passageiras, o MPLA corre o risco de, mais cedo ou mais tarde, desaparecer do cenário político de Angola, nas piores circunstâncias que poderiam acontecer para todos os sectores da sociedade política angolana. Não estamos a falar da simples perda de eleições, que para nós seria de encarar com toda a normalidade, como tem acontecido um pouco por toda a parte. Estamos a falar de situações semelhantes ou piores que as que observamos hoje no mundo árabe e muçulmano.

Não é possível que alguém que pense com alguma objectividade e independência no futuro do MPLA nestes tempos da História da Humanidade, esteja de acordo com a colagem do Engº José Eduardo dos Santos ao destino eleitoral desse partido da maior grandeza e responsabilidade histórica. Não acreditamos nisso de modo algum. E esperamos que este equívoco seja ultrapassado quanto mais cedo melhor.

 

É verdade que há problemas complexos a resolver, mas não vemos alternativas, se queremos acabar bem ou ao menos deixarmos um legado a altura das nossas responsabilidades e da nossa capacidade de liderança política.

 

Uma reflexão atenta sobre as particularidades de Angola, no contexto da luta de libertação assumida pelo MPLA, leva-nos a observar que, sem descorar a questão da personalidade de diversa índole dos seus dirigentes históricos ao longo das diversas fases da sua existência, elas (essas particularidades) foram determinadas pela sua localização geopolítica estratégica e pelo carácter prioritário dado por Salazar ao seu projecto de “portugalização” desse território.

 

Provavelmente, o Presidente e os seus homens ainda não se deram conta que, com as devidas adaptações, estão a seguir a mesma teimosia salazarista ao decidirem-se tão animadamente pela “eduardização” de Angola, transportando para o recentíssimo XXI métodos passadistas dos anos 50 e 60, cuja validade já se vem perdendo desde os anos 70 do século passado. Há que ressaltar, para acentuar a preocupação, que a Salazar e Caetano não estava associado, de modo algum, a imagem degradante de corrupção e do carácter corruptivo do regime actual em Angola. E o MPLA, completamente renovado desde há 20 anos, está a ser atrelado a esta imagem desastrada e desastrosa de que se tem de livrar o mais rapidamente possível, nos marcos de uma acção enérgica, embora moderada e pacífica, enquanto isso for possível.

 

Mesmo como partido dominante que poderá ser por longo tempo, à semelhança dos seus congéneres continentais como o ANC, a SWAPO ou a FRELIMO, o MPLA só poderá continuar a ser útil à Angola se, como aqueles outros partidos, passar a impor a alternância interna como algo normal; se se articular ao funcionamento de um sistema moderno de Estado que elimine, quase que automaticamente, os factores negativos que surgem com toda naturalidade e a todo o momento; se abandonar a obsoleta faceta do culto gratuito e despropositado ao líder dito clarividente, de cujos gestos exclusivos têm de partir todas as iniciativas importantes e de cujo estilo tudo tem de se ajustar.