Luanda - Quando iniciei a escrever este texto, a intenção era a de ser mais um comentário, igual àqueles que vinha fazendo, nos intervalos dos meus afazeres, para o portal “À MESA DO CAFÉ”, em www.marcolinomoco.com


Fonte: marcolinomoco.com

Angola: A terceira alternativa

Dessa vez o tema seria as precipitadas e sofridas detenções de jovens pacíficos manifestantes do dia 3 de Setembro de 2011, onde se falava, na altura de pessoas sem paradeiro determinado e de sevícias e ferimentos sobre alguns deles. Nessa mesma altura, alguém me colocava a proposta de poder ser constituído um “Conselho de Mais Velhos” que, junto das instâncias competentes, deveria apelar para o absurdo desse comportamento que se se tornava recorrente e sobretudo ominoso.

 

Mas quando reflectia sobre a pertinência dessa proposta (se não seria mais um vez desvirtuada pela diabólica máquina de propaganda do statu quo, iludindo cenários fora dos nossos objectivos), os jovens foram libertados por decisão do Tribunal Supremo. A decisão deste órgão superior de justiça estribava-se na falta de fundamentação jurídico-constitucional das detenções e prisões. Mas não ficou por notar que isso acontecia nas vésperas de uma mensagem sobre o Estado da Nação do Presidente da República à Assembleia Nacional, onde estes factos graves e outros relacionados com violações sistemáticas de outros direitos fundamentais de cidadãos, não mereceriam senão uma alusão indirecta.

 

Se, desde que venho fazendo intervenções de cidadania, há mais de uma década, quem esteve atento descobriu que me preocupo essencialmente com a natureza do regime político que o actual Presidente em funções imprimiu a partir de meados dos anos noventa, a coberto da guerra pós eleitoral, este episódio consolidou-se-me a convicção. De facto, pouco valerão os esforços de todos quantos estão autenticamente interessados na construção de uma sociedade aberta em Angola, se nos limitarmos a rondar atrás de factos casuísticos, quando há todo um sistema perverso gerador desses eventos nefastos.

 


Foi deste modo que me decidi a sintetizar tudo aquilo que no fundo já tenho dito, mas cuja estrutura algo casuística na forma de o afirmar, lhe tem retirado, provavelmente, o sentido de uma filosofia e perspectiva cívico-política no âmbito de uma contribuição para a consolidação da paz, da reconciliação e do progresso nacionais, na base da minha experiência e disponibilidade actual para a reflexão sobre os problemas nacionais e internacionais (sobretudo africanos).

 

Não diria que a elaboração de uma mensagem sistematizante e global tenha sido inteiramente conseguida. Na verdade, não pude deixar de ser influenciado, enquanto escrevia, por factos relevantes que foram acontecendo. Devo sublinhar, no entanto, que apesar de tudo, estes factos sempre se foram coadunando com a lógica do sistema do “cacete e da cenoura”, como o conhecemos desde que vai vigorando, embora com alguma refinação, que é compreensível. Não estivéssemos nós a viver no ano das manifestações contra a longevidade presidencial de José Eduardo dos Santos e sobretudo das práticas do seu sistema, algumas delas absolutamente absurdas.

 

Dentre os factos acima aludidos, por exemplo, a 3 de Dezembro, nova manifestação durante a qual os jovens voltarão a reiterar o seu carácter ordeiro e pacífico, em que aconteceram novas brutalidades contra si, e onde não faltou o requinte da infiltração de agentes de provocação. Por outro lado, a Ministra da Energia foi exonerada à moda antiga, para fazer o purgatório de políticas de “cavalos brancos” que está, em grande parte, na base da precariedade em que vivem as populações, em termos de energia e água, coisas que nada têm a ver com níveis ministeriais, pois todas as principais decisões são claramente concentradas no pólo presidencial.

 

Entretanto, Lopo do Nascimento, figura tutelar nas aberturas que aconteceram no país e dentro MPLA, a partir dos anos 80 e 90 do século passado, que connosco foi afastado da direcção desse partido no Congresso de 1998, numa situação nunca esclarecida, aparece a manifestar alguma aproximação com o presidente do partido. Algo que, aliás, já se havia notado meses antes, durante o ano que findou.

 

E, finalmente, na mensagem de Ano Novo, sempre no seu estilo “en passant”, o Presidente alude à necessidade de diálogo, consolidando aparentemente a ideia da superação dos métodos ríspidos anunciados no chamado “discurso da fome” de 15 de Abril de 2011, na sequência das “Manifestações do Norte” que logo se repercutiram em Angola, nas manifestações do dia 7 de Abril, comandadas pelo então invisível “Agostinho Jonas Roberto dos Santos”.

 

A talhe de foice, deve dizer-se que há quem, por razões óbvias, pretenda confundir as manifestações de jovens, especialmente em Luanda, com as que têm tido lugar um pouco por toda a parte, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Porém, esta confusão é desde logo desmentida pelos factos.

 

Com efeito, manifestações como as de certa altura na Grécia, Portugal e Espanha estavam e estão relacionadas com o que habitualmente acontece quando governos democráticos e absolutamente respeitadores da alternância política e outras regras democráticas são obrigados a tomar medidas antipáticas no domínio económico e social. Para a manutenção da ordem, muitas vezes alguns excessos encontram reacções algo severas de polícias. Houve e há outras manifestações, estas já de natureza mais global, que reflectem aquilo que temos chamado de discrepância entre o modelo político-institucional montado a partir do Século das Luzes e a evolução extraordinária do Mundo dos nossos dias, marcada principalmente pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informação, em que cidadãos do mundo se dão conta de gritantes incongruências no sistema capitalista. Nesta linha está, entre outros, o movimento “Occupy Wall Street”.

 

As manifestações de jovens angolanos estão claramente relacionadas com outra coisa, ou seja, a persistência em tentar-se instituir sistemas de lideranças pré-capitalistas (feudais-absolutistas) em Estados de estrutura moderna, com especial destaque para a África; por vezes, sob o inconsequente e por várias vezes já desmentido pretexto de que estas transições implicam a existência de regimes autoritários.

 

No mesmo sentido, o de aliviar a visível tensão que se vive no país, resultantes principalmente das arbitrariedades que acompanharam a elaboração da nova Constituição da República de Angola de 2010, bem como da anulação das antes anunciadas eleições presidenciais de 2009 que o deixaram sem legitimidade formal, o Presidente José Eduardo dos Santos procedeu a visíveis aproximações com a oposição, especialmente com a UNITA, bem como se desdobrou em gestos simpáticos em relação a certos sectores da sociedade civil.

 

Concluindo, este texto algo longo em termos de leitura electrónica (poderá brevemente ser reproduzido em opúsculo físico) é, como diz o subtítulo, um conjunto de ideias em que tento sintetizar e sistematizar as minhas reflexões sobre a necessidade do regresso à construção de uma sociedade aberta em Angola, tal como havia sido preconizado, há mais de duas décadas.

 



É uma proposta dirigida a todos os actores políticos e sociais nacionais e internacionais, para que abandonemos o método do arrastamento das coisas “com a barriga”, em defesa de nossos estreitos e contingentes compromissos pessoais ou de grupo, perigando todo um futuro nosso e, sobretudo, o dos nossos filhos e netos. É um estímulo para que os sinais de vontade de diálogo manifestados ultimamente no sentido de resolvermos, de modo novo, os problemas decorrentes dos nossos erros do passado, deixem de ser meros jogos tácticos para depois tudo continuar na mesma.

 


É também uma oportunidade para agradecer a muitos dos nossos compatriotas e amigos espalhados por todo o mundo, pela forma simpática e incentivadora como têm acompanhado este nosso esforço de contribuir para o progresso do nosso país, fora dos estritos marcos político-partidários, onde já se encontram distintas figuras, igualmente interessadas em substituir metodologias antigas por formas avançadas de abordagem política.

 

E para aqueles que se têm manifestado no sentido de nos verem regressados às tribunas político-partidárias, dentro ou fora do MPLA, esta é uma forma de retribuir-lhes a simpatia, deixando porém claro que este é o espaço que escolhemos, por enquanto. E que não faremos regressos nem ingressos desprovidos de uma clarificação pública de ideias, naquilo que se nos apresenta essencial.


O título “Angola: a terceira alternativa” foi-nos inspirado pela obra “ The 3rd Alternative-Solving life’s most difficult problems”, de Stephen R. Covey, um dos mais proeminentes pensadores dos tempos actuais, com uma proposta de nova abordagem na solução de problemas no mundo actual.


“Terceira alternativa” não deve ser confundida com a ideia de “terceira via”, que é um conceito, no âmbito da apresentação de programas político-partidários, que mesmo na Europa parece já se ter esvaziado perante as alterações profundas vividas nos dias que correm. Em África nunca vislumbramos terreno em que tal ideia pudesse assentar, a menos que se atribua um sentido diverso do que imaginamos.


Esta contribuição parte do princípio de que o problema de Angola, que se tem mostrado, de forma preocupante, muito retardatária em relação a certa evolução em África e no Mundo (embora tentando vender uma imagem diferente, à custa do petróleo) é um problema global de regime político, muito mais sob o ponto de vista material do que no plano formal. E isto está base de algumas ilusões que se tenta criar.


Não se trata, pois, de uma crítica à governação no sentido restrito da palavra, tarefa que em situações normais caberia essencialmente à oposição político-partidária. Nós pensamos, a partir de uma plataforma cívico-política legitimada pela ordem jurídica e sobretudo pelas assimetrias do regime, que a superação dessa situação passa pela necessidade de uma visão global que terá de levar-nos ao abandono de uma concessão pessoalizada do poder, para uma agenda verdadeiramente nacional com várias vertentes que se podem sintetizar em cerca de dez vectores, como se segue:


1-O respeito pelos direitos humanos fundamentais

2-O conceito de que governar é servir e não servir-se

3-O conceito de que Angola é uma unidade na diversidade

4-A urgência em despartidarizar o Estado-nação

5-A necessidade de eliminar fantasmas e enterrá-los juntamente com todos os outros “cadáveres psicológicos”

6-O respeito ao princípio republicano da alternância na ocupação de altos cargos de natureza pessoal, especialmente a nível da chefia de Estado e de governo

7-A descentralização e desconcentração efectiva do poder

fim pacífico da espoliação dos recursos nacionais e regionais por uma minoria

9-A libertação e democratização dos meios de comunicação social

10-O regresso ao respeito do princípio de separação formal dos poderes de soberania, com especial realce para a independência formal e efectiva do poder judicial.

 


Antecedentes e oportunidades perdidas para estabilizar o país

 

Angola viveu uma era trágica, por altura da proclamação da independência nacional, em 1975 e anos subsequentes.

 

Devia entender-se que esta foi uma situação praticamente inevitável, porque o Mundo estava dividido pela chamada Guerra-Fria e o colonialismo português desesperou os nacionalistas ao não aceitar qualquer negociação para a emancipação política de Angola, até o próprio regime ditatorial metropolitano ser, quase inesperadamente, derrubado pela Revolução de 25 de Abril de 1974. Isto, aliado à existência de três movimentos de libertação nacional que provinham de três plataformas socio-antropológicas diferentes, que não puderam amadurecer consensos na defesa do interesse nacional, pode explicar perfeitamente a natureza das tragédias vividas.

 

As coisas ficaram agravadas porque, com a desconfiança dos nacionalistas angolanos, agrupados nos três movimentos de libertação nacional, em relação à “componente branca” do país, ela foi excluída do concerto político-partidário, o que esteve na base do êxodo massivo de populações angolanas de origem europeia detentoras da quase totalidade do know-how empresarial e administrativo da Angola moderna.

 

Foi assim que a Independência de Angola foi formalizada no meio de tiros e muita confusão, numa proclamação unilateral pelo movimento vencedor de uma guerra fratricida que não era mais do que uma componente do conflito internacional que se vivia, na base da Guerra-Fria.

 

A primeira oportunidade de correcção surgiu em finais de 80 e princípios de 90 do século passado, quando perante o fim da Guerra-Fria, os angolanos, na sua componente política, deviam estabelecer mecanismos de verdadeira reconciliação nacional. Mas, infelizmente, as visões partidárias excludentes, incentivadas por pressões externas na busca de assentar seus interesses em Angola, fizeram com que o sofrimento de uma guerra fratricida se prolongasse até inícios de 2002, com a assinatura de acordos de paz entre o governo vigente de José Eduardo dos Santos e a direcção da UNITA que sucedeu a Jonas Savimbi, após a sua morte em combate.


Tudo parecia bem encaminhado e a José Eduardo dos Santos parecia estar destinado o papel de um verdadeiro conciliador nacional e homem da paz, apenas adiado por muito tempo pela suposta teimosia de Jonas Savimbi, sempre persistente na sua estratégia da tomada do poder pela força das armas.


Porém, aos poucos foi ficando claro que um rumo diverso estava a ser dado ao país, até chegarmos ao momento actual, em que novas nuvens agoirentas se adensam sobre os céus do nosso país.

 


Caracterização do momento actual e os perigos que comporta para o futuro

 

Como se disse, depois da assinatura do Protocolo de Paz entre o governo angolano e a UNITA, a 4 de Abril de 2002, esperava-se pela imediata normalização das instituições, em Angola, para o prosseguimento da consolidação da democracia pluralista ao mesmo tempo que se fortalecessem os processos de reconciliação nacional e se iniciasse a fase da reconstrução nacional.

O processo de reconciliação genuína passaria pelos apelos das lideranças no que diz respeito à importância do perdão entre os angolanos que, durante anos, especialmente estimulados por factores externos, ligados directamente ou por inércia ao anterior fenómeno da Guerra Fria, deveriam colocar uma pedra sobre as prolongadas desavenças no passado. Este desiderato foi conseguido, não tanto pelos apelos das lideranças políticas, poucos dadas a perder o seu tempo, com este tipo de proselitismo pacificador, mas especialmente porque o cansaço da guerra ensinou o próprio povo a olhar em frente, depois de sucessivas desgraças.

Quanto à reconstrução nacional, e no âmbito de uma pré-campanha eleitoral, foi notório um louvável esforço do governo, priorizando, correctamente, a abertura das vias de comunicação e a construção de escolas e hospitais um pouco por toda a parte.

É assim que, 6 anos depois do Protocolo de Paz, se realizaram as eleições legislativas, em Setembro de 2008, dentro de um pacote que previa as eleições presidenciais no ano seguinte (2009), garantia dada pelo Presidente da República, que por imperativos da situação (início e prolongamento inesperado da guerra civil, em 1992) se manteve nestas funções sem nunca ter sido sufragado pelo voto popular.

Surpreendentemente, logo a seguir às eleições legislativas que, a atestar a vontade de consolidação da paz e reconciliação nacional, decorreram sem incidentes de monta e deram uma esmagadora maioria ao partido no poder – o que devia ser lido como a vontade do povo em contribuir para o prosseguimento, em ambiente de estabilidade, de todo um processo com os consensos fundamentais já estabelecidos – aparece o Presidente da República a introduzir novos elementos de instabilidade institucional.

Estes elementos de instabilidade institucional podem desdobrar-se em vários tipos de actos e atitudes subsumíveis em duas espécies, sendo uma de natureza formal e outra de natureza material.

Como elemento de natureza formal mais desconcertante pelo seu carácter irresponsável e inusitado, recorrendo a métodos sofisticados de manipulação sócio-política, José Eduardo dos Santos alterou a nossa Constituição histórica. Nessa alteração acabou com os aspectos simbólicos e reais da separação dos poderes que caracterizam os regimes democráticos e formalizou, na nova Constituição, as práticas irregulares de concentração desmedida do exercício de poderes estaduais na sua mão com a consequente anemia das instituições administrativas centrais e locais. Tudo isso, como se disse, foi feito contra todos os consensos então alcançados num âmbito nacional, sendo que alguns deles estavam salvaguardados por cláusulas pétreas na Constituição então vigente.

José Eduardo coroou toda essa insensatez exigindo à Assembleia Constituinte e ao Tribunal Constitucional o prosseguimento do seu longo consulado por mais quatro anos, na altura já com 30 anos de duração, sem ter sido eleito formalmente pelo Povo de Angola.

O tempo foi clarificando qual era o objectivo da introdução daquele elemento formal: consolidar o elemento material de instabilidade que, no fundamental, se pode resumir no seguinte:

1-Ganhar tempo para reforçar a organização da sua eternização no poder, através de si próprio e ou de seus próximos.

2-A custa do erário público enriquecer uma minoria de gente a sua volta, só merecendo a honra de pertencer ao grupo restrito, quem tenha demonstrado total subserviência àqueles objectivos absolutamente discriminatórios e perigosos em relação a um país de diversas camadas sociais, na sua diversidade regional e étnico-cultural.

Quanto ao elemento formal, ele naturalmente cobra os seus custos, especialmente através de uma camada mais culta da sociedade que nunca entenderá como, num país que tinha tudo para andar estavelmente, no plano institucional, se chegou ao ponto de se impor um verdadeiro golpe constitucional por vontade de uma pessoa, seja qual tenha sido o seu papel histórico, nos últimos anos de Angola.

Mas o elemento que está na base do maior mal-estar no país está relacionado com o aspecto material, conjugado com as comparações que se fazem, naturalmente, com os regimes que estão a ser agora depostos por revoluções internas, apoiadas ou não por interferências externas.

Com efeito, e especialmente a partir de 1998, com o afastamento da direcção de figuras importantes do MPLA no seu Congresso desse ano, por algo que só pode ser apelidado de artes mágicas, a par do abandono da linha de diálogo na vertente das abordagens com a UNITA de Jonas Savimbi, o Presidente José Eduardo dos Santos foi fortificando estruturas a si afectas, com carácter absolutamente anómalo num regime democrático.

Deve sublinhar-se que essas estruturas nem sequer existiam no sistema de Partido Único, aliás, caracterizado pela existência de órgãos colegiais de direcção. E deve dizer-se também, que elas nasceram de forma inesperada e sorrateira. Por esse motivo, mesmo com alguma estupefacção, foram sendo toleradas por círculos do partido no poder que, teoricamente, não deviam hostilizar o seu próprio líder num momento de concentração nas tarefas dos processos de guerra e paz interna.

Por outro lado, a sociedade debilitada pela sua inexperiência de vivência em regime democrático e transparente e, sobretudo, traumatizada por uma guerra fratricida desnecessariamente prolongada, nada podia fazer para reagir contra esse tipo de anormalidade institucional.

Assim nasceu e cresceu a FESA (Fundação José Eduardo dos Santos) uma estrutura de natureza híbrida, de inacreditável existência, para ser afecta a um Presidente no activo, onde meios do Estado são mobilizados para a glorificação pessoal de quem exerce a sua função mais nobre. Assim nasceu, cresceu e se fortificou o chamado “Movimento Espontâneo”, afecto ao Presidente do MPLA e da República sem qualquer enquadramento plausível dentro das instituições do Estado democrático e de direito. É esse o “movimento” que tivera como sua acção mais lembrada a organização de uma manifestação secretamente preparada, contra um membro da própria direcção do MPLA, acabado de ser exonerado do cargo de Primeiro-Ministro, num acto aparentemente de normal refrescamento governativo, em período difícil de processos de guerra-paz e construção democrática.

Essas instituições anómalas, acrescidas depois de outras como a AJAPRAZ, alegadamente criada para o abjecto social de acudir retornados da Zâmbia, mas que rapidamente se transforma num elemento do presente sistema de glorificação programada de José Eduardo dos Santos, Presidente da República, passam a ser elevadas a categoria de Instituições de Utilidade Pública, com direito a utilização formal de fundos do Estado através do OGE. A par disso, e funcionando dentro deste mesmo mecanismo de natureza pessoal, embora equivocadamente atribuído a toda estrutura do MPLA, surgem fenómenos como a existência de “empresários sem empresa”, que com a complacência de todas as instituições do Estado de natureza fiscal que fecham os olhos a todos os seus actos de despesismo de origem suspeita, também o fazem a coberto do culto à personalidade de José Eduardo dos Santos.

O Presidente José Eduardo dos Santos e as pessoas que o cercam estão claramente a incentivar uma cultura de desrespeito aos princípios de um Estado democrático e de direito, subvertendo violentamente a interpretação dos mais importantes preceitos constitucionais, aproveitando-se do prestígio que lhe é legítima e politicamente atribuído por, depois de um longa guerra civil, aparecer como o grande promotor da paz e reconciliação nacional e pelo alcance de uma aparente estabilidade do país, depois da assinatura do Protocolo de 4 de Abril de 2002.

O aparente e nunca desmentido enriquecimento sem causa de elementos próximos do Presidente por laços de parentesco ou de subserviência política, efectivado através de um aparente e autêntico assalto ao património económico-financeiro nacional, onde não são poupados elementos do acervo histórico-cultural e ambiental, especialmente da capital do país, a violação dos direitos fundamentais em tributo a esse enriquecimento, sob o pretexto da criação de uma burguesia nacional e de uma classe empresarial, atinge níveis de um descaramento que hoje dificilmente pode ser comparado com qualquer outro regime vigente.

Por esta mesma ideia, de veneração da perversidade, enveredam alguns líderes de organizações religiosas que vão perdendo toda a autoridade moral, ao se transformarem em autênticos louva-deuses de um regime que do “mobutismo” só difere pelo facto de fazer a mesma coisa debaixo de uma constituição nominalmente democrática, o que é deveras extraordinário sob o ponto de vista do cinismo com que se dirige o país.

Na mesma linha, partidos políticos da oposição estão completamente vulgarizados, a ponto de serem mobilizados para suportar causas que um dia antes não apoiavam, para no outro dia serem completamente abandonados à sua sorte, como aconteceu com a FNLA e o PRS que fizeram o favor de votar uma “constituição política” sem sentido, alterando a sua posição de um dia para o outro, para hoje não beneficiarem de nada desse grande favor aos desígnios “eduardistas”.

Na própria direcção actual do MPLA, figuras de um prestígio enorme, conquistado ao longo de décadas ao serviço dos ideários mais nobres, também foram transformadas em meros acólitos de ideias improvisadas por uma liderança caprichosa que cobra fidelidades ilimitadas, desgastando-se em longas prédicas dedicadas a um culto de personalidade cada vez mais raro, mesmo nas mais diversas latitudes do chamado Terceiro Mundo. E assim todo o Partido MPLA foi transformado numa autêntica armadura defensiva à mínima contestação das mais incompreensíveis atitudes do núcleo duro do agora chamado Executivo.

Na mesma senda, intelectuais, em todos os domínios, especialmente no mundo do Direito, dedicam-se ao papel miserável de sacristães do templo da decadência e do injustificável, defendendo teses indefensáveis no plano da ciência, da ética e de uma moral mínima, em busca de balofas e ocas notoriedades.

Por essas e outras razões, 36 anos depois da nossa independência, quando Estados com a mesma idade e que atravessaram problemas de natureza semelhante aos nossos, como Moçambique, ou até Estados mais recentes com problemas mais graves vivenciados como Timor Leste, começam a ter o seu dia-a-dia definido em todos os termos, nós continuamos a viver no país da imprevisibilidade em vários sentidos.

No plano institucional, não se sabendo, por exemplo, como vai ser feita uma sucessão presidencial no partido governante − o que em Estados normais não deveria trazer preocupações de monta, por tratar-se de problema interno de uma organização política − acaba por se criar uma situação quase dramática interna e internacionalmente, devido ao tabu que se imprime a um facto que já há muito deveria ser encarado como perfeitamente normal.

Isto repercute-se negativamente no plano económico e financeiro, onde investidores estrangeiros ficam paralisados ou hesitantes nas suas decisões; na mesma senda, endinheirados nacionais (não importa como) se precipitam com nervosismo inusitado a transferir para o exterior valores que deveriam ser investidos num país onde só o sector petrolífero (e, por vezes, o diamantífero) funciona, com prejuízos enormes para o nível de vida de amplas camadas da sociedade.

No plano político-administrativo e burocrático, a mesma tétrica imprevisibilidade, onde nunca se sabe se o Ministro, o Governador, o Administrador Municipal ou Comunal com quem tratamos um assunto hoje, não ouvirá o despacho da sua exoneração amanhã, à hora do almoço, em tributo a boa imagem, chamuscada por alguma razão, do seu superior hierárquico; onde a falta de acesso a um núcleo tão estreito de bafejados pela sorte de pertencer ao círculo presidencial, mesmo este por vezes tão movediço, não encoraja ninguém a participar no desenvolvimento do país, nos mais diversificados sectores da vida nacional e regional; onde tudo o que seja economicamente relevante gira sempre em torno das mesmas pessoas.

 

 


Estrutura de sustentação

 

Resumindo e concluindo, toda esta situação é sustentada por uma estrutura iníqua que apresenta todos os condimentos necessários para a curto ou longo prazo se criar uma situação idêntica a que se vivia ou se vive em países e Estados em situação revolucionária hoje e ontem, compreendendo basicamente os seguintes elementos:

-uma comunicação social que não apresenta os dados reais à comunidade cívico-política nacional e internacional, e, consequentemente, às próprias autoridades que só se deleitam em ouvir aquilo que lhes agrada, fazendo por ignorar a realidade material dos factos, impedindo a livre circulação de ideias;

-na sequência do funcionamento de uma comunicação assim condicionada, um barulho ensurdecedor para desviar as atenções nacionais e internacionais para as questões de curto prazo, enquanto as questões estruturantes são completamente negligenciadas ou silenciadas.

-um Executivo cujo principal responsável não responde perante ninguém (Parlamento, para quem se limita a emitir mensagens não discutidas; comunicação social toda montada para o adular e não o indagar sobre nada; população com quem não se condói nas piores desgraças);

- uma Segurança de Estado que é desviada da sua tarefa principal que é a de assegurar o Estado democrático que todos defendemos e proclamamos, para cuidar sub-repticiamente de incomodar quem apenas tenha ideias diferentes;

-uma distribuição de riqueza ostensivamente virada para condicionar a subserviência de tudo o que possa ser oposição independente, num país onde até alguma religião é mobilizada para o culto às honrarias materiais;

-um partido no poder que continua a ser apresentado pelos fazedores de opinião como a instituição dirigente do Estado e da sociedade (onde avulta a situação grave da subordinação do poder judicial) quando essa concepção já ficou formalmente superada pelas Constituições de há cerca de vinte anos para cá, depois das mudanças determinadas pela queda do “Muro de Berlim” e pelo fim do chamado socialismo real; e quando esse partido já não controla, mas é completamente subjugado pelo seu líder;

-uma situação de clara manipulação da estrutura étnico-regional do país, em que com as camadas sociais de todos os grupos étnicos sujeitas aos mais humilhantes eventos, sem excepção, se acena a determinados grupos populacionais, a ideia de sua pretensa superioridade sobre outros, para proteger os interesses da minoria que se apodera das riquezas de todos os angolanos sem distinção de raças, tribos ou regiões;

-uma protelação indeterminada da organização do poder local autárquico, onde o poder local dito desconcentrado é sujeito ao mais estrito poder discricionário de um concentrado e desorganizador poder central.

Natureza do regime em Angola

Com estes aspectos caracterizadores do actual regime angolano, tem-se colocado a questão de se saber se se trata de uma ditadura ou de regime de transição para a democracia que enfrenta algumas dificuldades naturais nesse tipo de fase.

As respostas são, naturalmente extremadas, indo desde os que afirmam a existência de uma verdadeira democracia em Angola, partindo da estrutura formal dos textos constitucionais e da maioria das leis ordinárias, no domínio da organização política do Estado, até aos que atribuem a esse estado de coisas a essência de uma autêntica ditadura apenas disfarçada com a aludida formalidade dos textos e do discurso dos detentores do poder.

Olhando para os aspectos materiais da situação, pondo de lado a preocupação de termos de referir, necessariamente, conceitos habituais num mundo actual de mudanças aceleradas, o que importa não é indagarmos se se trata de uma ditadura do tipo clássico (que hoje por hoje já não é possível reproduzir-se em Angola) ou não. O que importa, segundo acreditamos, é olhar para os efeitos práticos desta situação para o presente e, sobretudo, para o futuro do país, de que teremos de responder um dia, como geração actual.

Temos que convir que independente do nome de baptismo que se dê a esse regime, como uma questão meramente académica, o que nos deve preocupar é que se trata de um conjunto de práticas, quiçá habilmente orquestradas (aparentemente inspiradas nas endiabradas “ 48 Leis do Poder de Robert Greene e Joost Elfers”), cujas consequências em nada diferem das que resultam da acção de ditaduras típicas, cuja característica fundamental é a instilação do medo e do culto à personalidade ao declarado líder, a volta do qual se cria a ideia de ser insubstituível porque de qualidades supostamente inexcedíveis, pelo que tudo se lhe deve perdoar, inclusive as suas excentricidades contra a ordem estabelecida. Neste caso, deve presumir-se que o seu papel o exime de toda a culpa por essas excentricidades para que possa fazer prevalecer os interesses mais elevados da comunidade que de forma geral se traduzem na defesa de uma ideologia pretensamente revolucionária, religiosa ou humanista.

Talvez seja aqui que encontraremos o verdadeiro traço caracterisadr do regime “eduardista” angolano, que a si mesmo se intitula de “atípico” quando não se apresenta a justificar-se por impor qualquer tipo de ideologia.

Tivemos, como exemplo o “socialismo científico” para justificar o sistema de Partido-Estado socialista em Angola. Conhecemos o “mobutismo” que dizia defender uma filosofia chamada ”autenticité” na finada “Republique du Zaire”. Temos estado a acompanhar a saga do persistente sistema revolucionário ainda baseado no “socialismo científico” em Cuba ou na República Democrática e Popular da Coreia, não obstante, neste último caso, ter sido praticamente transformado numa dinastia monárquica sui generis. Há, hoje em dia, o “Bolivarianismo” formalmente referendado de Hugo Chaves na Venezuela. Temos ainda a interessante proposta “Um Estado e Dois Sistemas” da República Popular da China, que curiosamente evoluiu para a supressão da eternização dos seus líderes, desde Deng-Xiao-Ping.

O regime angolano, com as suas iniquidades, apenas existe, sem se justificar por qualquer ideologia especial que não seja a necessidade de condescendência com toda uma enormidade de incongruências e práticas de uma gravidade inaudita, cujos resultados esperáveis não diferem de nenhum modo dos que se esperariam no fim das ditaduras puras e duras.

Há cada vez mais gente a acreditar, como nós, que estamos perante um regime autoritário, com mal disfarçada roupagem democrática, cujo objectivo é o açambarcamento despudorado das riquezas nacionais e regionais, a favor de uma minoria aferrada ao poder, com consequências imprevisíveis para um futuro que pode não estar muito distante.

 


Mudanças em curso e à vista

 

O carácter despiciendo e até dispersivo da convocação para a excogitação da natureza ditatorial ou não do regime angolano actual é tão evidente quanto, determinado pela situação dos chamados “Ventos do Norte”, os sectores mais activos desse regime, com o Chefe de Estado à cabeça, entraram num frenesim de actos e acções contraditórias, em que os habituais gestos e discursos intimidatórios cedem, aparentemente, perante gestos de magnanimidade e vice-versa, o que pode confundir ainda mais aqueles que tanto se preocupam com os aspectos formais do verbo e de gestos para conceberem e concederem nomes aos casos e às coisas.

Na persistente táctica do pau e da cenoura, entrou-se numa das fases do espreitar da cenoura pelas frestas palacianas.

Estamos inteiramente convencidos que se não houver uma acção concertada e inteligente dos agentes interessados na construção de uma sociedade verdadeiramente aberta em Angola, que é a única a poder coadunar-se harmonicamente com a edificação coerente de um Estado democrático e de direito, assente na nossa realidade, este regime dificilmente abdicará de accionar os mecanismos para fazer prevalecer o statu quo que vivenciamos.

O papel da juventude no advento de novos tempos em Angola

Como tem acontecido em todos os momentos decisivos da História de Angola, é mais uma vez a juventude a dar o pontapé de saída, na reacção contra a anormalidade.

Desde que se vem procedendo à perversão do regime democrático que encetamos como um todo nacional e que acima descrevemos de forma sintética, que sucessivas vagas de jovens são subliminarmente colocadas perante fantasmas do passado, como as guerras étnico-partidárias de 1974/75 e de mais adiante, os acontecimentos do 27 de Maio de 1977, entre outros aspectos que haviam tido lugar nos antigos cenários determinados pela desaparecida e internacional Guerra-Fria e reflexos da sua inércia. Esses intimidadores dos mais jovens, a partir do estarrecido da generalidade dos mais velhos, já entrados nas idades do conformismo e dos “gatos escaldados que até de água fria têm medo”, esqueceram-se dos ensinamentos que os tempos trazem. Bastou estalarem os acontecimentos da África do Norte e arredores, para se darem conta que afinal já há um número considerável de pessoas que, pela sua faixa etária, começam a descortinar que aqueles acontecimentos do passado já não lhes dizem muita coisa, quando relacionados com os seus actuais e palpitantes problemas.

Entre uma explosão revolucionaria e a conclusão da mudança transicional

Pensamos que estamos mais uma vez perante uma encruzilhada em que ter-se-á que optar, entre manter este regime iníquo, e nos aspectos mais flagrantes, assimilável aos regimes actualmente contestados no âmbito das revoluções no Norte de África e noutros cantos do mundo árabe e muçulmano, com consequências altamente negativas para as respectivos Estados e nações, que se não irão resolver a toque de mágica; ou assumir-se uma posição realista e retomar o percurso de construção de um regime de democracia transparente e em benefício de todas as camadas sociais do país e de todas as suas regiões com toda a sua diversidade e riqueza.

Com efeito, nessas circunstâncias, a História, a Ciência Política e a Ciência Jurídica (Direito Constitucional Comparado), anotam duas formas essenciais de saída: ou revoluções, nas mais das vezes violentas e devastadoras em relação mesmo a aspectos positivos mantidos no “ancien régime”, desembocando num redemoinho de acções e reacções emotivas que chegam a ser incontroláveis e com reparação de difícil espectro; ou mudanças transicionais, por iniciativa, nas mais das vezes, partidas de sectores mais moderados do próprio regime ou de áreas mais activas da sociedade civil aceites pelos lados aparentemente extremados da conflitualidade política em eminência de explosão.

Noutras circunstâncias, situação semelhante se nos apresentou em finais dos anos 80 e princípios dos anos 90.

O regime de Partido-Estado de cariz socialista marxista-leninista estava esgotado. A guerra fratricida entre angolanos, configurada no esquema formal governo-rebeldes da UNITA, se por um lado deteriorava ainda mais as condições sociais do povo, por outro lado disfarçava as verdadeiras razões da ineficácia governativa de um sistema sem soluções, mesmo a partir das suas próprias “Mecas”, como o eram a poderosa União Soviética ou a avançada RDA. Foi dessas “Mecas” do chamado “socialismo real” que partiu o tom autocrítico de personalidades visionárias e corajosas como Gorbachov, que não se esconderam em evasivas, perante a evidência do fracasso de um sistema que se enredara sobretudo no próprio veneno da ausência de transparência na condução dos assuntos do Estado.

Perante a queda do Muro de Berlim, símbolo maior do fim da chamada Guerra-Fria, e já no epílogo das conversações entre o Governo e a UNITA que pareciam intermináveis, mas que viriam a ser facilitadas pelo advento de um novo quadro internacional, com a assinatura de Acordos de Paz de Bicesse de 1991, colocou-se, na altura, ao MPLA-Partido do Trabalho no poder a questão de se saber se deveríamos manter o Partido-Estado, expondo-nos perante a possibilidade de uma explosão revolucionária, com os estragos que lhe são inerentes, ou, ir-se pela via sensata que estava a ser seguida por boa parte de regimes africanos e não só que, perante os então chamados “ventos do leste”, convocaram todas as suas sociedades a participar nas mudanças requeridas.

Nós, no seio da direcção do então partido no poder, embora, de forma anónima para o público em geral, como era apanágio nesses tempos ainda de sistema fechado, defendemos sem tibiezas a segunda alternativa, porque a achamos realista e sobretudo porque fundamental para a consolidação da paz que haveria de ser alcançada. Foi assim que, adoptada a nossa posição, facilitada pelo ambiente que se vivia na época, foram sucessivamente elaboradas e aprovadas pela então Assembleia do Povo, as leis constitucionais de 1991 (para abrir o país à democracia pluralista) e a de 1992, que contou já com a apreciação da UNITA e de uma Conferência Multipartidária, com partidos ditos não armados, antes da sua aprovação formal.

O que fundamentalmente faz assimilar o actual regime aos regimes normalmente designados de ditatoriais ou, no mínimo de autoritários, é justamente a perversão desse caminho que havíamos iniciado há mais de vinte anos. É isso que acrescido às dificuldades conjunturais que em situação de legitimidade e transparência de um regime não passariam de questões entendíveis, embora sempre difíceis (a fome em países do terceiro mundo, os problemas da saúde, da habitação, educação, etc. etc.), nos coloca, mais uma vez, perante uma situação de escolha: persistir nas manipulações para sustentar a insustentabilidade e propiciar o aprofundamento de uma situação revolucionária ou retomar o caminho da consolidação das mudanças interrompidas por guerras de vários tipos?

É isso que, bem ou mal, sob o estímulo do que se passa noutras paragens, onde os regimes não lêem as lições da História, traz os jovens angolanos para a rua; sobretudo nas ruas da capital, onde de uma forma geral estão representadas todas as regiões do país e praticamente todas as sensibilidades, colocando a estremecer todo um sistema que de tão arrogante começava já a ultrapassar os limites da razoabilidade, até no plano internacional, como aquela peregrina ideia de exportar a “teoria dos Presidentes Constitucionais”.

É sobre isso que alertamos atempadamente, aquando do processo da aprovação da nova Constituição e do adiamento despropositado das eleições presidenciais que já haviam sido indicadas para 2009. E fomos tidos por frustrados inoportunos.

Na verdade, as consequências da fuga à razoabilidade chegaram mais cedo do que nós próprios pensávamos, fruto da velocidade dos acontecimentos, nos tempos actuais.

 


Saídas possíveis

 

Visualizamos várias saídas possíveis, todas elas tendentes a trazer o país para uma situação de razoabilidade, que no fundamental traga de volta o ambiente criado até ao início da guerra pós-eleitoral, em 1992, no que diz respeito à instituição de um Estado verdadeiramente democrático e de direito e em que as prescrições jurídico-políticas no plano institucional se ajustem minimamente às práticas dos dignitários do Estado; em que se rejeite de forma categórica e clara a subordinação de um país vasto, multiétnico e multicultural aos interesses de um grupo minoritário e à volta de um pretenso líder dito clarividente, que se socorre de um partido garantidamente maioritário, tendo ao dispor todos meios legítimos e ilegítimos de influência sobre a sociedade, para a salvaguarda de seus interesses pessoais e familiares.

É preciso que se sublinhe: não é por mero capricho que defendemos essa ideia com toda a nossa energia. É que sabemos por factos passados e presentes que sem isso não é possível manter uma sociedade pacífica e de forma sustentada.

 

O papel do Presidente da República em funções

 

Uma dessas saídas possíveis é que, enquanto ainda lhe sobra algum prestígio e capacidade de manobra, o actual Presidente em funções ultrapasse certos complexos adquiridos durante o longo consulado de 32 anos de poderes efectivos (e ultimamente quase de dimensão ilimitada) ou mesmo determinados aspectos do seu próprio carácter pessoal, para se colocar acima dos seus interesses pessoais e de família, bem como do seu próprio partido (se é que ainda sobraram alguns) para assumir o papel de principal agente de devolução do poder ao(s) povo(s) de Angola. Seria mais fácil, na nossa opinião, para mobilizar e dar credibilidade a esse processo, que o Presidente transformasse o Conselho da República numa estrutura de apoio para a realização dessa tarefa ou que criasse um órgão alternativo que, pela sua autoridade moral e representatividade, conferisse essa credibilidade.

Essa tarefa tem de passar necessariamente pelos seguintes aspectos essenciais:

-promover um debate nacional, o mais possível despersonalizado e despartidarizado, para a clarificação de uma agenda nacional sobre a conclusão do processo transicional assente nos princípios universalmente reconhecidos como indispensáveis para o estabelecimento de Estados progressivos e de paz sustentável, já que neste momento funcionamos na base de uma agenda aparentemente secreta e pessoal ou de grupo minoritário, e por isso potenciadora de desconfianças que podem redundar em situações de conflito.

-naquele âmbito, elaborar, nem que sejam algumas linhas mestras (já que não sobrará muito tempo para pormenores, tendo em conta a aproximação das eleições de 2012) de um compromisso solene de todos os actores relevantes e representativos da sociedade angolana, no sentido de construímos, sem discriminações abertas ou disfarçadas, um Estado de boa governação, aberta e transparente, onde os direitos fundamentais, o respeito à propriedade pública e ao património histórico-cultural sejam realmente matéria encarada com toda a seriedade.

O actual Presidente da República em funções terá certamente dificuldades acrescidas, porque a maior parte dos aspectos problemáticos a resolver neste contexto afectam-no directa ou indirectamente. No entanto, não vemos uma saída alternativa, em que ele próprio se saia de forma airosa, tanto que pelo cansaço de tantas adversidades desde a independência do país, há ainda uma grande predisposição de franjas importantes da sociedade, incluindo partidos políticos, que estariam dispostas a colaborar nesta empreitada, mesmo quando certos sectores começam já a extremar posições.

Eventual papel construtivo do MPLA

Outro agente relevante que em alternativa ou em conjugação com os esforços a desenvolver no sentido acima exposto pelo actual Presidente da República, é o próprio partido actualmente maioritário (MPLA), hoje por hoje remetido essencialmente ao papel de escudo defensivo das excentricidades cometidas pelo grupo a volta do poder presidencial, mas que continua a ser uma marca de grande peso na sociedade, sendo o único partido capaz de garantir a unidade política de todos os sectores da sociedade angolana, na sua complexa diversidade. Por iniciativa dos seus mais prestigiados dirigentes, o MPLA deveria sacudir-se das grilhetas em que está amarrado, para retomar o papel de líder da mudança que se impõe, sem temer de nenhum modo o seu futuro como organização histórica e marcante da História de Angola.

O problema é que a defesa do prestígio de uma organização política da importância do MPLA não pode de ser feita, de modo algum, à custa da subserviência ou subordinação de todos os outros agentes político-partidários que devem disputar consigo o poder, dentro de princípios éticos mínimos, condição essencial para a garantia de uma sociedade de justiça e paz sustentáveis. Enquanto membros da direcção do MPLA, foi sempre esta posição que defendemos com toda a energia, dentro das estruturas da organização, como pode ser atestado por testemunhas vivas.

É de algum modo entendível que, como partido no poder, em situação de profunda fragilidade da sociedade civil (esta verdadeira salvaguarda do poder soberano dos povos) os membros dirigentes e de base no MPLA se sintam de certo modo extasiados, para aproveitar até ao máximo as benesses desse poder. O problema é que o presidente do partido, aproveitando a sua qualidade de Presidente da República nunca legitimado pelo voto popular, em tempo de democracia moderna, tem levado a organização a níveis tais de perversidade que está já nos limites do aceitável, colocando em perigo a sua própria história, trazendo-nos facilmente à memória lembranças como as do MPR de Mobutu ou os recentes destinos dos partidos de Mubarak do Egipto ou Ben Ali da Tunísia.

Nós não temos a mínima dúvida que a persistir este ambiente de “pessoalização” do MPLA, com falsas aclamações ditadas pela salvaguarda de benesses passageiras, o MPLA corre o risco de, mais cedo ou mais tarde, desaparecer do cenário político de Angola, nas piores circunstâncias que poderiam acontecer para todos os sectores da sociedade política angolana. Não estamos a falar da simples perda de eleições, que para nós seria de encarar com toda a normalidade, como tem acontecido um pouco por toda a parte. Estamos a falar de situações semelhantes ou piores que as que observamos hoje no mundo árabe e muçulmano.

Não é possível que alguém que pense com alguma objectividade e independência no futuro do MPLA nestes tempos da História da Humanidade, esteja de acordo com a colagem do Engº José Eduardo dos Santos ao destino eleitoral desse partido da maior grandeza e responsabilidade histórica. Não acreditamos nisso de modo algum. E esperamos que este equívoco seja ultrapassado quanto mais cedo melhor.

 

É verdade que há problemas complexos a resolver, mas não vemos alternativas, se queremos acabar bem ou ao menos deixarmos um legado a altura das nossas responsabilidades e da nossa capacidade de liderança política.

 

Uma reflexão atenta sobre as particularidades de Angola, no contexto da luta de libertação assumida pelo MPLA, leva-nos a observar que, sem descorar a questão da personalidade de diversa índole dos seus dirigentes históricos ao longo das diversas fases da sua existência, elas (essas particularidades) foram determinadas pela sua localização geopolítica estratégica e pelo carácter prioritário dado por Salazar ao seu projecto de “portugalização” desse território.

 

Provavelmente, o Presidente e os seus homens ainda não se deram conta que, com as devidas adaptações, estão a seguir a mesma teimosia salazarista ao decidirem-se tão animadamente pela “eduardização” de Angola, transportando para o recentíssimo XXI métodos passadistas dos anos 50 e 60, cuja validade já se vem perdendo desde os anos 70 do século passado. Há que ressaltar, para acentuar a preocupação, que a Salazar e Caetano não estava associado, de modo algum, a imagem degradante de corrupção e do carácter corruptivo do regime actual em Angola. E o MPLA, completamente renovado desde há 20 anos, está a ser atrelado a esta imagem desastrada e desastrosa de que se tem de livrar o mais rapidamente possível, nos marcos de uma acção enérgica, embora moderada e pacífica, enquanto isso for possível.

 

Mesmo como partido dominante que poderá ser por longo tempo, à semelhança dos seus congéneres continentais como o ANC, a SWAPO ou a FRELIMO, o MPLA só poderá continuar a ser útil à Angola se, como aqueles outros partidos, passar a impor a alternância interna como algo normal; se se articular ao funcionamento de um sistema moderno de Estado que elimine, quase que automaticamente, os factores negativos que surgem com toda naturalidade e a todo o momento; se abandonar a obsoleta faceta do culto gratuito e despropositado ao líder dito clarividente, de cujos gestos exclusivos têm de partir todas as iniciativas importantes e de cujo estilo tudo tem de se ajustar.

 


O papel dos partidos de oposição (antes, durante e depois das eleições de 2012)

 

 

Já se acreditou no papel que os partidos políticos da oposição poderiam jogar, e agora de forma pacífica, para a reposição do sistema democrático pervertido em Angola. Com a assinatura de paz de 2002, logo a seguir a morte em combate de Jonas Savimbi, líder histórico e carismático dessa organização, pelos sinais iniciais dados pelos seus novos dirigentes, julgou-se que se entrava numa nova era. Numa altura em que a persistência em antigas condutas se mostraram claramente contraproducentes até para os próprios protagonistas.

 

Ledo engano. Não tardou que tanto a UNITA, assim como outros partidos com assento no parlamento, como resultado ainda das longínquas eleições de 1992, enveredassem pelo jogo do curtíssimo prazo, arrastados provavelmente pelas ciladas do chamado “maioritário”.

 

Pode dizer-se aqui, mutatis mutandis, que é da própria natureza dos partidos políticos agirem dessa maneira, pois o seu objectivo primordial é a tomada do poder total ou parcial. Porém, pensamos nós, que tanto a História da Humanidade em geral, como especialmente a própria curta mas amargurada História de Angola ensinam-nos que enquanto não se estabelecer, alguma dia, no plano material (se plano formal se poderia considerar a própria Constituição, não fosse o autoritarismo como foi aprovada com as perversões da constituição política nela incorporada) uma agenda verdadeiramente nacional, nenhuma entidade ou outra componente qualquer nacional poderá usufruir sossegadamente das benesses do poder.

 

O drama de Angola é que desde que se conhece como futura e actual nação moderna, nunca teve oportunidade de munir-se com uma agenda verdadeiramente nacional, com a abrangência que exigiria um Estado multirracial, multiétnico, multirregional e, em suma, multicultural; tornado nos últimos 20 anos também multipartidário. Sejamos claros. Se consideramos que as nações modernas africanas especialmente ao Sul do Saara, nascem com a elaboração do principio da ocupação colonial efectiva, a partir da Conferência de Berlim de 1885, ou mais concretamente ainda, com as últimas guerras coloniais de ocupação que só terminaram nas primeiras décadas do século XX, temos que Angola teve é uma agenda colonial até 1975; uma agenda ideológica unilateral do MPLA até 1991/92; uma agenda nacional tão efémera que nem conta para a História, durante talvez alguns meses nos subsequentes anos 90; para acabar actualmente, especialmente a partir de 2002, e com a actual constituição política, numa agenda pessoal do Eng. José Eduardo dos Santos#.

 

É no contexto desse raciocínio que pensamos que, nas circunstâncias actuais de Angola, cada partido político da oposição individualmente e em conjunto com os restantes, enquanto o MPLA, mobilizado pelo seu actual líder, se recusar a devolver a verdadeira soberania ao(s) povo(s) de Angola, devia empenhar-se na luta pela elaboração formal e material de uma verdadeira agenda nacional, restando apenas encontrar o melhor mecanismo para o fazer.

 

É perfeitamente esperável que se argumente que o sistema sufoca a oposição de modo inusitado, particularmente através da manipulação da comunicação social, sem falar do uso e abuso dos recursos económicos e financeiros do país. Mas aqui estamos mais uma vez perante a história de saber quem vem primeiro: o ovo ou a galinha. Para nós sempre se mostrou simples concluir que primeiro vem a galinha, sendo ela que põe os ovos e não o contrário. E nessa nossa equação metafórica, não temos dúvidas que a galinha é a agenda nacional. Crie-se, seja de que maneira que se imagine, uma agenda nacional, e logo, mais cedo ou mais tarde se acabam os abusos e antinacionalismos a que assistimos, quase impávida e serenamente, com o risco de amanhã o disco ser retomado por algum novo suposto ganhador.

 

Diferentemente do MPLA que − por razões da sua própria história e especialmente agora, pela sua condição de partido no poder, num momento de acumulação do capital à custa de saque quase generalizado do património colectivo − atrai à sua volta os mais diversos sectores da sociedade angolana; a quase totalidade dos partidos de oposição parlamentar ou extra parlamentar, emergem aparentemente, de franjas parcelares da sociedade. Contrariamente a uma ideia subliminar e por vezes mesmo ostensiva de que isso representa um aspecto negativo, até porque, também aparentemente, contraria o sentido de unidade nacional formalmente plasmado na constituição histórica da Angola, nós consideramos isso, no plano material, algo enriquecedor do nosso espectro político e reflexo positivo da nossa diversidade étnica, cultural e regional. A necessidade de diversidade partidária étnico-regional pode ser tão essencial quanto o partido governante prepondera com uma filosofia marcada e materialmente baseada num centralismo estalinista.

 

Por isso, é com apreensão que vemos os esforços (que nem sequer são velados) do regime em banir, a todo o custo, os partidos tradicionais de origem bacongo como aconteceu com o PDP-ANA no processo dos restos das eleições legislativas passadas, e com a histórica FNLA a finar-se no âmbito de uma disputa pessoal sem grande sentido.

 

Até aqui o PRS tem-se mostrado um pequeno baluarte, no espectro político angolano, na representação das populações espoliadas e praticamente abandonadas do Leste Angola, não obstante o contributo histórico dado à luta de libertação nacional, em torno de todos os então chamados movimentos de libertação nacional. Esperamos que o PRS não sucumba aos estímulos de destruição que, por vezes, se vislumbram e que os membros da sua direcção não caiam nas armadilhas da personalização das organizações políticas tão peculiar a quase todos partidos políticos angolanos, à imagem e semelhança do partido no poder.

 

Entre os partidos extra parlamentares, destaque vai, sem dúvida para o BD, como herdeiro das tradições do aguerrido FPD, representativo de sectores importantes da intelectualidade urbana, cujos esforços de tentativa de banimento contra si não passam despercebidos a ninguém. Sabe-se que se trata de ensaiar o silenciamento para sempre, da tradição que vem de elementos que desde os primórdios da luta de libertação nacional adoptaram sempre posições de vanguarda na defesa de uma democracia pluralista, no seio do MPLA, como os irmãos e primos Pinto de Andrade.

 

Refiramos também o recém constituído PP (Partido Popular) que se destaca aparentemente a partir do hinterland Luanda-Malange, o que conjugado com os esforços dos chamados POC´s, pode atenuar a ideia falsa, e diríamos mesmo subversiva de que quem não está com a clique no poder, é contra o MPLA e por isso necessariamente contra os povos quimbundo e crioulos. O que é indesmentível é que os esses povos são tão vítimas dos excessos e excentricidades desse regime anómalo, que a si mesmo se intitula de “atípico”, quanto acontece com os outros diversos povos de Angola, como já o assinalámos acima.

 

Last but not least, aludiremos ao papel fundamental que a UNITA pode jogar hoje no regresso a construção de uma sociedade angolana aberta e liberta, pelo que ela representa como segunda marca, depois do MPLA, no espectro político-partidário, não fosse ela, actualmente, o maior partido da oposição.


Emanação praticamente assumida e reconhecida do maior grupo étnico de Angola – os povos umbundo – com as novas direcções e após o acordo de paz de 2002 a UNITA já não deve ser encarada como “inimigo” mobilizador dos também chamados “ovimbundu” contra outros povos e sensibilidades de Angola. Persistir nessa ideia, como por vezes parece vislumbrar-se de alguns comportamentos ingénuos ou mal- intencionados, só pode contribuir para o rebuscar de ressentimentos que bem podiam ser agora enterrados para sempre.

 

O nosso desejo, por outro lado é que a UNITA, seja qual for a sua direcção, num esforço que deve ser feito como o temos referido, para despersonalizar as nossas organizações políticas, ajude no sentido de consolidar esse entendimento de que ela não é, de nenhum modo, um inimigo de morte para nenhum grupo social do nosso país.

 

A partir desta plataforma, a UNITA poderia liderar a oposição político-partidária, não apenas com o objectivo eleitoral de carácter imediato, mas sobretudo para contribuir para a elaboração da referida verdadeira agenda nacional.

 

Como antes o referimos, essa agenda é um pressuposto essencial para a existência de uma Angola onde, com todas as nossas diferenças, e sem temê-las de debaixo de tabus e estereótipos disfarçados, nos possamos sentir irmanados num Estado pacífico, porque justo e preocupado essencialmente com o seu elemento humano, independentemente dos grupos de diversa natureza a que pertençamos.

 

Contudo, as próximas eleições de 2012 poderiam constituir-se num tubo de ensaio dessa cooperação activa e positiva. Com efeito, poderia conseguir-se uma importante mais-valia se, formal ou materialmente coligados, os partidos da oposição obtivessem um resultado eleitoral que, pelo menos, atenuasse a supremacia esmagadora de um MPLA completamente empurrado para a iniquidade, pela sua actual direcção.


Por isso não podemos senão nos congratularmos quando, na Assembleia Nacional, no âmbito da aprovação do chamado pacote eleitoral, vemos os partidos políticos da oposição a tentar trabalhar em conjunto para impedir as manobras de consolidação de uma hegemonia diabólica que poderia ser mantida ou quiçá reforçada, nas anunciadas eleições de 2012. Simplesmente, achamos que haverá muito mais em que se trabalhar em conjunto, para se atenuar uma série de aspectos que poderão estar já a antecipar uma descarada fraude eleitoral, que a acontecer nessa dimensão, será mais um elemento negativo no sentido de fortificarmos o edifício de uma paz sustentada e sustentável, com reflexos positivos para o desenvolvimento humano e material em Angola.

 

 

 


O papel dos elementos da elite angolana em sectores importantes da vida nacional

 

 

 

Mais do que central, é o papel que deverão jogar as elites do país de todos os quadrantes sociais, nos diversos domínios da vida nacional, nessa luta pacífica de regresso à construção da Angola verdadeiramente democrática.

 

Temos dito, já há vários anos, porque assim o acreditamos depois de várias fases de acção política e reflexiva, em que reconhecemos equívocos e desacertos pessoais, que hoje por hoje não há modelo que se possa apresentar como alternativo à democracia avançada, concebida nos seus aspectos mais gerais no chamado Século das Luzes, no chamado Ocidente, após vários anos de maturação.

 

No entanto, não é difícil reconhecer também que este modelo, pelo seu carácter demasiado formal, nem sempre encontrou facilidade de aplicação directa nos países do chamado terceiro mundo no qual nos inserimos como Estado da África Subsaariana. Aliás, está a vista de todos que este carácter demasiado formal de representatividade da soberania popular começa a mostrar-se desajustado ao mundo actual.


Estamos convencidos que as mudanças de dimensão exponencial que tem tido lugar, e da forma geometricamente acelerada como acontecem, exigem uma revisão estratégica do modelo do Século das Luzes, não fossem as crises cada vez mais acentuadas no próprio Ocidente a atestá-lo todos os dias nos últimos tempos.


É daí que releva a importância das elites nacionais, que têm por obrigação, porque se supõem capazes e dotadas de qualidades para o efeito, para a todo o momento, e independentemente das funções exercidas pelos seus elementos, velarem pela elaboração, aplicação e adaptação das regras de harmonização da sociedade. Não se tratará de um acto de caridade para com ninguém. É que sociedades desregradas e tomadas pela arbitrariedade e pela contumácia acabam sempre por não beneficiar ninguém. E as elites de cada sociedade pelo seu alto nível de consciência social serão sempre as maiores vítimas dos eventos negativos.

 

A persistência do regime que temos estado a descrever, em que um MPLA completamente manietado pela “entourge” presidencial, exigindo-lhe uma adulação para lá dos limites, tende a criar um mainstream segundo o qual só pertence a elite angolana quem se ajustar a esses desígnios discriminatórios e “elitistas”, no sentido negativo.

 

Assim, para se pertencer a elite angolana, no quadro deste conceito perverso, tem que se pertencer ao partido dito maioritário, enquadrando-se nas suas organizações de massas como a JMPLA, a OMA e nos chamados comités de especialidade ou de locais de residência.


A volta desses comités utilizam-se expressões tão inusitadas nas práticas de Estados democráticos e de direito, como (comité dos) jornalistas do MPLA, juristas do MPLA, economistas do MPLA, quiçá arquitectos ou engenheiros do MPLA, empresários do MPLA, escritores do MPLA e daí por adiante (irónica ou seriamente já se fala em religiosos do MPLA!). Nada haveria de anormal se isso não aparecesse como um acintoso sistema de discriminação estadualizado. Numa situação em que os meios de comunicação social de mais amplo espectro estão descaradamente manipulados pelo poder, durante anos e anos de persistência desse poder, só indivíduos assim enquadrados e tornados meros reprodutores do pensamento dito “clarividente”, é que podem ver as suas intervenções objectivamente referenciadas ao nível nacional.


É uma situação de verdadeiro apartheid no sistema de comunicação, que apenas é atenuado, e de forma bem controlada, com a necessidade de alimentar aparências. É verdade que esta é uma situação que parece naturalmente herdada do sistema de partido único que alguns julgam dever perdoar-se. O problema é que em Angola, entre outras situações, vive-se, neste particular, uma situação bastante retardatária, se comparados a outros Estados, que praticamente na mesma altura, ou até mais tarde, partiram para a adopção de regimes de democracia pluralista, depois da persistência de regimes monopartidários.

A elite de uma sociedade, especialmente a de um país africano com grande peso de tradições autóctones diversas e de diversa proveniência, que devem ser todas consideradas para o bem da harmonia nacional, não pode ser medida pela pertença a uma única camada seja de que carácter for, muito menos pela aproximação ao partido que estiver no poder, cuja permanência em Estados democráticos e de direito tem de se considerar sempre temporariamente circunscrita. A elite de uma sociedade democrática deve ser medida pela sua capacidade de contribuição livre, acutilante e contraditória na elaboração do pensamento e das boas práticas nacionais, nos marcos da tolerância e do respeito mútuos.

 

Nada mais triste e confrangedor, por exemplo, quando perante despejos sem qualquer mandado judicial, requintados com demolições de uma desumanidade inimaginável no sistema de partido-único ou mesmo no período colonial, ouvimos juristas, investidos em funções de magistratura, nos virem dizer que “está tudo certo porque são orientações superiores do camarada chefe”!

 

Estamos a beira do ano 20 depois de 1992! Que triste quando mal se ouvem os murmúrios de jornalistas cujas entrevistas a entidades diversas são deitadas no caixote do lixo, contra todos os direitos e deveres que lhes são prescritos na constituição e nas leis ordinárias, com o argumento falacioso ou no mínimo ignorante, de que como funcionários de órgãos públicos e privados obedecem a ordens superiores!

 

A elite angolana, como aqui a definimos, deve romper este espartilho que lhe é imposto vergonhosamente, num país proclamado democrático e de direito, porque tem de cumprir a sua missão irrenunciável.


Para além da renúncia que se impõe a essa espécie de submissão incongruente e adormecente nos sectores fundamentais para a consolidação da democracia como na Justiça e na Comunicação Social, as elites angolanas em todos os outros sectores da vida nacional devem tomar consciência que a conivência com um conjunto de incorrecções que são inteligentemente geridas de cima, para a perpetuação do actual regime não beneficiará ninguém. É que diferentemente dos demais animais, o ser humano não circunscreve os objectivos da sua acção ao momento presente. Como ser social, a acção humana releva para além dos anos da sua vida respirada, rebuscando-se no passado e projectando-se no futuro. Mas, mesmo que propendamos para o egoísmo como geração actual, é preciso despertar par