Luanda - Isso de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar a geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Vítor antes, para falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou depois, todos nós a um momento dado éramos puros e queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem previlégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois…tudo se alterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições parituclares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio.
Fonte: Angolacentral7311.net
20 anos depois do Pepetela escrever estas palavras, no livro que rapidamente se tornou num dos meus preferidos, a geração da utopia continua agarrada ao poder. Só que de lá pra cá, transformaram-se de utópicos para distópicos. Hoje são todos autênticos Malongos, a esfregar a cara do empregado nos ovos mexidos sem sal. Pensando que são melhor que tudo e todos. Passeando-se pela cidade nos seus carros luxuosos, four-wheel drive, vidros fumados, topo de gama, por cima de estradas esburacadas, de mansão em mansão, à apartamento luxuoso, passando pela casa da amante no caminho.
Faz hoje 1 ano desde que um punhado de jovens e dois ou três jornalistas se encontraram na Praça da Independência às 00h00 (sabe-se lá porquê que o famoso “Agostinho Jonas Roberto dos Santos” escolheu hora tão estranha) e foram prontamente atirados para carros policiais e encaminhados para a esquadra para lá passarem a noite. Reza a história que cometeram o crime de assustar o gigante de pés de barro, que com 5 milhões de militantes sentiu-se ameaçado por uns poucos rappers e poetas, sabe-se lá por que razão. Era suposto escrever sobre a data que deu o nome a este site e assim marcar o primeiro aniversário de uma data que me diz algo, mesmo não estando eu lá.
Mas não consigo.
Em vez disso, quero escrever o que me vai na alma. Talvez reencontre a inspiração do 7 de Março metida lá no meio.
Quero escrever de como, mais uma vez, a geração da distopia está a hipotecar o futuro dos seus filhos e netos neste autêntico carnaval que se tornou a preparação das eleições ao ponto de criar um tamanho impasse, que de tão perfeitamente evitável até dá vontade de chorar. Quero escrever sobre como foi possível os nossos melhores professores universitários, juristas e intelectuais elaborarem e depois aprovarem uma “constituição” que em vez de servir uma nação serve estritamente uma só pessoa outorgando-lhe poderes quase faraónicos. Gostaria de saber como encaram os seus filhos, como lhes olham nos olhos e lhes dão conselhos de vida, e com base em que exemplos; que aulas dão aos meus colegas, que jovens estão a formar, e com base em que critérios. Gostaria de perceber como é concebível defraudar assim as expectativas de uma nação inteira, e depois, e isto é o cúmulo, não conseguir honrar as tais leis que eles próprios nos impingiram.
Gostaria de olhar nos olhos da Mama Advogada da OMA que não é juíza e lhe perguntar…”porquê?” Quero escrever sobre que tipo de exemplo transmite aos seus filhos, um dos quais é meu amigo e chamo de primo. Gostaria de poder perceber em que ponto uma geração com tantos intelectuais e tanta promessa se degrada a este ponto, em que cada um tem um preço e quase todos estão disponíveis no mercado. Quero escrever sobre o facto de já não termos jornalistas que façam jornalismo, mas sim marionetas sem pensamento próprio. Todos temos que pensar da mesma forma e apoiar o mesmo partido e se não o fizermos, somos anti-Angola. Quando foi que chegamos aqui? Gostaria de poder falar sobre o facto que muitos de nós somos mais “camaradas” do que angolanos, pondo o partido acima da nação. De como pura e simplesmente negamos a realidade a nossa frente, num triste ritual de denial.
Quero escrever sobre como os jovens afogam as suas frustrações em maratonas e festivais “culturais” com o patrocínio de empresários sem empresas. Quero olhar na cara do ‘Godzilla’ que deu socos e atirou jindungo na cara do filho da outra, apenas porque este ousou exercer um direito constitucional: E se fosse o teu ndengue, ‘Godzilla’? Gostaria de poder escrever sobre a nossa fraquíssima fibra moral. Queria conseguir escrever sobre o chefe-mor, a sua família e os seus amigos que compram tudo, apoderam-se de tudo e roubam o resto, sem ter o mínimo interesse em diversificar a economia e dar uma oportunidades aos outros, igualmente capazes. Queria poder estudar, cientificamente, que sede de dinheiro é esta. Mais do que tudo, adoraria poder olhar a sociedade civil de frente, aqueles que ainda têm uma pinga de pensamento próprio, e lhes lembrar daquela frase do Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
Quero escrever sobre a falência intelectual das nossas universidades, em que a gasosa é mais importante que o conhecimento, e diplomas custam uma noitada com o professor. Em que corruptos formam corruptoszinhos. Quero escrever sobre a falência jurídica dos nossos tribunais, que julgam por encomenda e com base em ordens superiores. Quero escrever sobre a falência legislativa do nosso parlamento, que só serve simplesmente para carimbar os caprichos do chefe-mor.
Quero lamentar sobre o destino desta grande nação, que confunde betão com desenvolvimento e que se orgulha de banalidades por simplesmente não ter referências. Quero lamentar sobre a mortalidade infantil que continua na mesma e sobre o comentador da rádio que diz que quem fala mal de Angola não pode ser angolano, que se orgulha do corrupto que compra lojas em Portugal quando o parente dele no Bié morre de pólio. Gostaria de falar sobre os bilhões de dólares que desaparecem dos cofres do estado vez após vez, das fraudes e burlas, sem uma única pessoa ser responsabilizada. Quero escrever sobre como um colono foi substituído por outro, mais refinado, mais africano, mas que parte as casas dos refugiados da guerra para construir condomínios milionários sem antes oferecer as mínimas condições humanas aos desalojados.
O MC Criolo, de São Paulo, tem uma música melancólica chamada “Não Existe Amor em SP”; se o mesmo fosse angolano a música se chamaria “Não Existe Honra em Luanda.” Tudo está a venda mas as maiores comodidades continuam a ser pessoas e consciências. O MCK chamou o Jojó de incorruptível em Dezembro; em Fevereiro ele já tinha ido para o Real Madrid. Gostaria de escrever sobre como os jovens como eu têm pouquíssimas referências e exemplos no seu próprio país. Gostaria de poder falar sobre como a meritocracia foi substituída pela bajulação. Sobre como a corrupção substituiu o Kwanza.
Gostaria de escrever sobre tudo isso, e mais alguma coisa. Mas ficarei pelo 7 de Março. Parabéns a todos os angolanos de bem que se revêm nesta data, que conseguem pensar pela própria cabeça e não se deixam levar pelo status quo. Em breve seremos chamados para realmente reconstruir este país. Não os seus prédios, mas os seus cidadãos. O passar do tempo é o único constante na vida e a geração da distopia não estará no poder pra sempre.
E enquanto levarem bornos e jindungo nos olhos no dia 10 de março se decidirem ir a manifestação, lembrem-se duma coisa: só quem é fraco é que precisa de demonstrações de força.