Lisboa - Têm sido recorrentes nos meios de comunicação social angolanos, relatos que descrevem o que é considerado traduzir-se numa profunda inquietação: o esbulho de que são vítimas as viúvas, por parte dos familiares do falecido, quando, muitas vezes, os bens que o defunto detinha em vida, e prontamente reivindicados pelos seus consanguíneos, resultam de uma longa vida em comum, de duros sacrifícios partilhados pela companheira, e fruto do trabalho árduo de ambos, factos que são por vezes descartados no processo violento de vitimização da viúva.

Fonte: Club-k.net 

Para a opinião pública em geral, tal comportamento é sinónimo de uma perversidade e arbitrariedade intoleráveis, motivadas pela ganância desenfreada dos familiares do falecido, tendo acrescido impacto mediático nos casos em que a viúva é também a mãe biológica dos filhos resultantes da união de facto. A imagem de uma mulher e seus filhos espoliados dos seus bens, primeiro violentados e depois abandonados pelos familiares do falecido, é chocante à luz dos nossos padrões morais e, por isso mesmo, causa-nos não somente revolta, mas também uma natural repugnância e inequívoca condenação.

O enquadramento jurídico.

Não raro, nestes casos, são igualmente evocados argumentos jurídicos em defesa da viúva e dos filhos, pois que nas uniões da facto e sem compropriedade declarados, figura jurídica na qual se enquadram a maioria dos casais angolanos, deverá ser garantido ao cônjuge sobrevivente o direito ao usufruto de alguns bens, nomeadamente a casa de morada de família e o seu recheio, em alguns casos, por um determinado período de tempo.

 

Assim, sob o ponto de vista do Direito privado, a alienação compulsiva das prerrogativas da viúva pelos familiares do falecido, constitui-se numa grosseira e dupla violação, uma vez que, por um lado, gera uma situação de manifesta violência, e, por outro, lesa os direitos consagrados pelo ordenamento jurídico vigente. Os cidadãos que assim se comportam, atropelam os dispositivos legais da república e os mais elementares direitos humanos, pelo que não deve ser-lhes reconhecida qualquer legitimidade para assim procederem.

 A objectividade sociológica.

Porém, se o esbulho se repete, apesar de reprovado pela moral e da condenação a que a lei inequivocamente o remete, como explicar então tal fenómeno? Dever-se-á esse comportamento ao desconhecimento da lei por parte dos prevaricadores, ou à sua perversidade de carácter?

- De forma alguma.

Serão as autoridades insensíveis a situações socialmente degradantes, como é o caso do esbulho das viúvas?

- Poucas ou nenhumas dúvidas nos restam.

Melhor do que constatar um facto, é tentar aceder à sua objectividade, pois se alguma vez pretendermos compreender a fenomenologia do esbulho das viúvas e órfãos, assim como a de todo o processo de que o fenómeno se reveste, teremos que nos distanciar definitivamente das considerações de ordem ética.

 

 A necessidade de uma abordagem sociológica.

 

A maior parte dos casos de despejo arbitrário de viúvas de que temos conhecimento, são protagonizados por gente humilde do povo. Não significa isso que o conflito de herança esteja ausente nas outras classes sociais, nomeadamente a violência física.  Contudo, entre as classes em que a urbanização está mais enraizada, o conflito reveste-se de características diferentes, envolvendo, por norma, valores incomparavelmente superiores, além de que o litígio é, na maioria das vezes, dirimido nas salas dos tribunais.

 

No caso de esbulho das viúvas e órfãos, este fenómeno é exclusivamente popular, e comporta características sociológicas específicas: trata-se de migrantes oriundos do interior o país, camponeses em extrema pobreza, de pessoas de muito baixo nível de escolaridade, por norma analfabetos ou, no limite, iliteratos, abandonados à sua sorte, profundamente cépticos em relação às autoridades governativas, administrativas e judiciais, que os perseguem implacavelmente e se aproveitam das suas fragilidades e insuficiências. São pessoas para quem a mais humilde das casas é o único conforto que lhes é permitido aspirar.

 

O fenómeno do esbulho das viúvas e órfãos, tem especificidades que o caracterizam, e a seguir mencionamos, e que se constituem em elementos de definição do conceito e devem ser considerados fundamentais numa abordagem sociológica a empreender pelos que têm o dever de lidar com o problema, e propor soluções efectivas:

            a) o meio físico degradado em que os migrantes vivem, pelo facto de habitarem quase exclusivamente as zonas marginais e híper-marginais, decadentes e insalubres, das periferias urbanas;

            b) o meio social caótico das periferias sub-urbanas, com manifestações de acentuada promiscuidade, como é o caso da pobreza extrema, da delinquência juvenil, da prostituição e alcoolismo, e o uso de estupefacientes;

            c) o facto dos elementos de análise mencionados em a) e b), serem exponenciais, ou seja quanto mais acentuada for a degradação dos meios social e físico, mais o fenómeno do esbulho das viúvas se manifesta com crescente violência, maior intensidade e frequência;

            d) os factores acima mencionados, que uma vez conjugados, contribuem para o crescendo em espiral das doenças infecciosas (HIV, tuberculose, etc.), crónicas (pneumonias, desnutrição, diarreias, paludismo, etc.), sazonais (paludismo, gripes, etc.), sociais (marginalidade, miséria, analfabetismo, delinquência, prostituição, conformismo, uso de drogas, etc.), e outras, nomeadamente do foro psicológico e psiquiátrico;

            e) o desemprego, que em Luanda é superior a 80%, é um factor de stress social importante, causador de instabilidade emocional, e catalisador de conflitualidade;

Um outro elemento de análise muito importante, é o facto das comunidades de migrantes de uma determinada comunidade rural tenderem a reproduzir, nas cidades, e especialmente nas promíscuas periferias dos grandes centros urbanos, os traços culturais distintivos das suas sociedades de origem, que outrora os definiam como seres distintos, singulares, humanos, solidários. Porém, o meio urbano inóspito e agressivo age no sentido contrário, promovendo irremediavelmente a erosão dos valores culturais padrão da sua região natal, tornando impossível a recriação da identidade perdida.

 

Assim, constata-se que a devassa associada às condições sociais e físicas que os migrantes encontram na periferia da cidade, é também a causa principal da corrupção dos laços de solidariedade que outrora uniram os membros de uma determinada aldeia, e que, até então, se constituíram na trave-mestra, no elemento fundamental e estruturante da sua identidade colectiva.

 

A vida suburbana das nossas cidades promove o individualismo castrante e sem rumo, ao mesmo tempo que aniquila sistematicamente os ancestrais códigos de identidade, fomentando o egoísmo em detrimento da solidariedade, sem que, em compensação, ofereça, tanto ao indivíduo como à sociedade, qualquer alternativa de resgate dos valores perdidos.

 

As sociedades tradicionais angolanas e o descalabro da urbanização.

 

Constata-se assim, que o fenómeno do esbulho de viúvas ocorre predominantemente nos meios urbanos ultra periféricos, social e fisicamente degradados, o que o relaciona, por um lado, à rápida e descontrolada urbanização das populações migrantes campesinas e sem cidadania, e, por outro, à ausência de perspectivas de melhoria das suas condições de existência, o que vem a demonstrar a vanidade dos argumentos legalistas, subjectivistas ou funcionalistas. Esta constatação é plenamente sustentada pelo facto de estar amplamente verificada a inexistência de esbulho de viúvas na sociedade tradicional, no seio da qual nenhum conflito atingiria as dimensões de autêntica catástrofe social de que o mesmo fenómeno simultaneamente se reveste e reflecte entre os migrantes.

 

 A realidade.

 

Tal como no paradigma colonial, as sociedades tradicionais em Angola, são, na terminologia ideológica oficial neo-colonial, consideradas "atrasadas". O epíteto pateta, que é alegremente reproduzido por alguns auto e institucionalmente proclamados intelectuais da praça angolense, constitui não só uma parvoíce como também significa, o que é mais grave ainda, o desbaratar de uma oportunidade de aprender e apreender certos valores e concepções de vida social, económica, jurídica, científica e intelectual, desenvolvidos e cultivados ao longo de milénios pelas sociedades tradicionais, cujo estudo contribuiria, sem qualquer margem de dúvida, para a construção de uma sociedade moderna mais justa e autêntica, e, porventura, mais feliz.

 

As sociedades tradicionais são complexos geradores de compromissos e reciprocidades sociologicamente sofisticados, que têm por objectivo a inclusão, que é a afirmação da reciprocidade, e nunca a exclusão, que á negação da solidariedade. Nas sociedades tradicionais os próprios Antepassados, os mortos, não resistem à inclusão. Elas consagram a plenitude do indivíduo, como ser único, autêntico, e a comunidade como a entidade criadora de civilização e cultura. Na sociedade tradicional, ninguém é excluído da circuncisão ou de participar no ritual da puberdade feminina. Ninguém é órfão!

 

Ora tudo isso se esvaiu no difuso néon das cidades, nas "venidas de alcatrão"!

 

Os indivíduos quando perdem os seus referenciais culturais, e são simultaneamente desumanizados pela miséria atroz dos bairros de lata, cedem a solidariedade ao egoísmo, a identidade ao individualismo, e o que eram instituições plenas de vigor e significado na aldeia, dá lugar à manipulação de uma realidade fragmentada, distorcida, sinónimo de exclusão irremediável, de tensão endémica e de solidão letal.

Conclusão

Neste contexto, a falta de sensibilidade das autoridades corruptas do "império", contribui para que se acentue a exclusão dos milhões de camponeses que demandam às cidades, outrora em busca da paz, hoje também à procura de pão, abandonando-os a um destino sem esperança, enquanto que o legislador, cliente do poder, teima ainda em ignorar a realidade cultural da maioria, produzindo leis quantas vezes destituídas de sentido para as populações africanas migrantes, com as suas idiossincrasias tão próprias.

 

É também evidente que a miséria que grassa nos bairros de lata de Luanda, fruto do egoísmo exacerbado dos dirigentes do nosso país, que sugam insaciáveis os recursos do povo, só contribui para que os conflitos sociais se perpetuem e se agudizem, expondo à arbitrariedade a maioria esmagadora dos angolanos, e sobretudo os mais vulneráreis da nossa decrépita sociedade: as mulheres, viúvas ou não, e as crianças.