Luanda - Parece-me que, a sociedade angolana ainda não tem uma noção exacta do papel preponderante que os partidos políticos desempenham, na nossa sociedade actual, em busca do Estado Democrático de Direito, assente na liberdade, na cidadania, na legalidade, na justiça social, no pluralismo e na boa governação. Num sistema politico de Partido-Estado, do qual as funções e as competências estão centralizadas numa só pessoa, que se coloca acima de todos, e ditam as regras do jogo.
Fonte: Club-k.net
Segundo Baron Charles de Montesquieu, o Filósofo Francês, do Século XVIII, «para que exista liberdade é imperioso que, num Estado, os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial não estejam reunidos nas mãos da mesma pessoa e que se repartam por órgãos diferentes, para que cada um deles, sem que usurpe a função dos outros, possa impedir que os restantes ultrapassem a sua própria esfera de acção». Importa notar que, à luz da Doutrina do Baron de Montesquieu, o Conceito da «separação de poderes», na época contemporânea, assenta essencialmente nos principios de contrapeso, de controlo, de fiscalização e de interdependência entre os três Órgãos da Soberania do Estado.
Só que, torna-se imperativo perceber bem o papel que os partidos políticos desempenham neste sistema tripartite, de «checks and balances», dentro das sociedades, como factor determinante de governação, de mudanças e de progresso. Razão pela qual se tornam imperativos e essenciais à democratização profunda e real dos partidos politicos, sendo pilares principais do Estado Democrático de Direito.
No sistema político angolano, como é sabido, assenta na centralização de poderes numa só pessoa, que detém influências enormes sobre os três Órgãos de Soberania do Estado, inclusive aos órgãos públicos e privados da comunicação social. Fazê-lo através da «maioria qualificada» na Assembleia Nacional, que se resulta da manipulação do sistema eleitoral, através do Conselho Nacional Eleitoral, do Tribunal Constitucional e do Ministério da Administração do Território, que controlam e administram os processos eleitorais. Por esta via, a atribuição de Mandatos no Parlamento é o mero exércicio administrativo. Na prática, os resultados eleitorais não reflectem a vontade real, expressa nas urnas, pelos eleitores. O exércício eleitoral, neste caso, serve apenas de instrumento da legitimação politica.
Logo, havendo uma «maioria qualificada», acima de dois terços, o princípio da separação de poderes, defendido por Baron de Montesquieu, fica inviabilizado. Pois que, o poder legislativo, que é o fundamento da democracia plural, depende essencialmente do equilíbrio existente no Parlamento, entre as forças politicas principais, para que o voto tenha a qualidade legislativa, e sirva de factor-chave do diálogo e do consenso entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, bem como entre os Partidos na Oposição e o Partido no Poder.
No caso específico do Parlamento Angolano, o desequilíbrio existente, em que uma força politica possua mais de dois terços (67%) de Assentos, inviabiliza, por completo, o principio do Baron de Montesquieu, segundo o qual: «Cada Poder tem a faculdade de estatuir (faculté de statuer) sobre as matérias da sua competência, decidindo como julgar melhor; e também a faculdade de impedir (faculté d’empêcher) que os outros poderes pratiquem actos contrários ao direito, ou ao equilíbrio constitucional, paralisando a sua acção, quando exorbitem a sua competência, ou anulando os actos ilegais». Fim de citação.
A anulação de actos ilegais, por exemplo, tornou-se patente na aprovação da lei do repatriamento de recursos financeiros domiciliados no exterior do país. Suponhamos que, o MPLA não tivesse dois terços de Assentos na Assembleia Nacional, esta lei não teria hipótese de ser aprovada, conforme ficou concebida, tendo o objectivo final de proteger os actos ilícitos e os seus infractores.
Na verdade, o Presidente José Eduardo dos Santos adoptara a política da acumulação primitiva do capital, como factor estratégico, visando estabelecer uma Nobreza aristocrática, de capitalistas, como detentora do poder financeiro. Esta visão resulta da ideia de que, qualquer poder, democrático ou ditatorial, o poder financeiro constitui o «factor-chave» da Governação de um País.
Nesta base, referente ao sistema capitalista, à economia é liberalizada, é de livre iniciativa, e é regulada pelos factores do mercado, através da concorrência entre os produtores, de acordo com a lei da oferta e da procura. As Multinacionais, detentoras de grandes capitais financeiros e tecnológicos, procuram estabelecer o monopólio, no sentido de controlar o mercado e maximizar os lucros. Para dominar o mercado, os detentores de grandes capitais financeiros procuram influenciar o poder político. Dando a reprocidade de interesses e a interdependência entre os dois poderes, por serem parceiros estratégicos, em fazer funcionar a economia do país.
Não obstante, os factores do mercado, regulados por mecanismos próprios, têm capacidades de travar a influência monopolista das grandes empresas. Além disso, o sistema da economia do mercado, liberalizada e de livre iniciativa, tem capacidades enormes de dinamizar o mercado, como por exemplo: fomentar a concorrência; integrar no mercado as forças produtivas; atrair os investimentos; aumentar a produtividade; harmonizar as relações de trabalho; melhorar a qualidade de serviços; gerar rendimentos; e equilibrar o domínio das Multinacionais.
Ao passo que, no Sistema Socialista, do poder centralizado, num só órgão, os factores de produção são controlados e dominados por um grupo de políticos e de empresários partidários. Esta classe, com poderes absolutos, dita as regras do mercado interno; determina o modo de produção e de distribuição da riqueza; planifica a economia e determina o mercado de trabalho; e estabelece o monopólio sobre os meios de produção. A riqueza do país, neste regime político, fica concentrada nas mãos de uns poucos privilegiados, que fazem parte da «nomenclatura» do Governo e do Partido no Poder. Por isso, a política da acumulação primitiva do capital, não visa apenas o enriquecimento pessoal, como classe governante, mas sim, serve igualmente de instrumento da manutenção do Poder Politico.
A acumulação primitiva do capital tem diversas origens, dependendo do contexto e das circunstâncias concretas em que isso ocorre. No caso especifico de Angola, este fenómeno surge na fase de transição do sistema socialista, do partido único, para o capitalismo selvagem, multipartidário. No sistema anterior, do partido único, prevalecia à propriedade colectiva, a nacionalização dos meios de produção, e a planificação da economia. No sistema em referência, o Estado, em si, era assumido integralmente por uma nomenclatura partidária. Em nome da colectividade exercia o monopólio financeiro, como instrumento da manutenção do poder do Estado. Portanto, o que o Presidente José Eduardo dos Santos fez, foi apenas de converter a propriedade colectiva em propriedade privada, com vista a enquadrar-se no sistema capitalista, dominando os meios de produção, para sustentar a supremacia politica, como detentor do poder financeiro.
Portanto, o conceito do enriquecimento pessoal e da manutenção do Poder, está bem expresso no seu discurso do dia 11 de Novembro de 2015, alusivo às comemorações da Independência de Angola. Em função disso, interessa apresentar aqui, em baixo, o extracto deste discurso, que ilustra a sua visão estratégica, como segue:
(O modelo de economia centralizada foi há muito abolido e foram estabelecidas as bases jurídicas para a organização da economia social de mercado, em que o sector privado se afirma cada vez mais como a principal fonte de criação da riqueza nacional, da realização da actividade económica e da criação de emprego. Como foi ao longo da história, noutras latitudes, a transição do modo de produção anterior para o modo de produção capitalista, coloca como questão essencial a acumulação primitiva do capital. Angola está a desenvolver-se com base em regras gerais universalmente aceites, mas respeitando as suas especificidades e a sua história).
(Não podemos estruturar o sistema económico nacional sem a presença, no mundo do capital e do trabalho, de empresas e grupos económicos angolanos conscientes e fortes. Pois eles serão a garantia da nossa interdependência. Aos angolanos não podem ter só reservados espaços ao nível do micro, pequenas e médias empresas, e dos negócios financeiros. Tem, também, de ganhar terreno nos mercados globais e procurar competir, a seu tempo, de igual para igual). Fim de citação.
Neste extracto acima, do discurso do Presidente José Eduardo dos Santos, o Conceito da concentração da riqueza, nas mãos de uns poucos, através da acumulação primitiva do capital, é explicita. Pois, não deixa dúvidas nenhumas sobre a sua preferência estratégica. A tónica da doutrina, neste extracto, está assente na caracterização da classe capitalista forjada, como sendo «a garantia da nossa independência». Na lógica do Presidente José Eduardo dos Santos, a prioridade principal do seu Partido não consistia nos investimentos maciços nos factores internos de produção, a fim de gerar riqueza, promover o bem-estar da população, ampliar a classe média e erradicar a pobreza.
Pelo contrário, a sua preocupação principal, como factor estratégico, residia na criação, por via administrativa, de grupos económicos fortes e exclusivos, através de grandes empresas de carácter monopolista. Sendo os objectivos principais: estabelecer o regime de monopolio sobre os sectores fulcrais da economia angolana; concentrar os grandes negócios num só grupo de pessoas; colocar dinheiros avultados nos mercados estrangeiros; fomentar grandes empresas; ganhar terreno nos mercados globais; e competir-se, de igual para igual, com as Multinacionais.
A Liderança do MPLA, na pessoa do JES, não tinha a noção de que, o motor da economia reside nos pequenos produtores e nas empresas pequenas e médias, que dinamizam o mercado interno, na prestação de serviços; no aumento da produção; na criação de capacidades produtivas; na distribuição de bens e serviços; e no fomento de postos de trabalho. Ao contrário, as grandes empresas têm tendência de fundir-se em corporações ou carteis; de automatizar e robotizar a produção e serviços; de eliminar os postos de trabalho; de fazer «outsourcing» de capitais e serviços especializados ao mercado externo; e de maximizar os lucros, em detrimento de salários.
Portanto, a visão do JES visava somente a acumulação de capitais e a manutenção do poder, sem ter em conta a realidade social, económica e humanitária das populações locais e da classe média, saidas da guerra prolongada. Logo, os resultados nefastos desta politica megalomaníaca estão à vista de toda gente. Ou melhor, nenhuma Nação do Mundo, saida da guerra prolongada e devastadora, em condições de atraso e de pobreza extrema, como Angola, se dar ao luxo de apostar-se na criação de ricos, com dinheiro do Estado, em detrimento da maioria da população. Pois, o lugar do capitalista é alcançado por mérito pessoal, por sacrifício, por suor e por trabalho aturado e digno. Não é através de esquemas, de peculato, de corrupção, de tráfico de influências, de compadrio, de exclusão, de desvios do erário público, de fuga ao fisco e de branqueamento de capitais.
A verdade, que se diga, a Liderança do MPLA, através do Bureau Politico e do Comité Central, adoptou formalmente a Política da acumulação primitiva do capital, como Doutrina do Partido, no que diz respeito a gestão da coisa pública. Logo, é questionável a ideia da «imaculabilidade» que está sendo projectada amplamente. Não será uma cortina de fumo, que visa apenas ocultar a verdadeira estratégia do Partido no Poder?
Em função disso, sendo uma política assumida pelo Partido MPLA, como instrumento da manutenção do poder politico, dificilmente será tão fácil para o Presidente João Lourenço desarticular este esquema complexo, que envolve muita gente, de todos os sectores da sociedade angolana, a nivel das superstruturas. Importa dizer que, apesar disso, tem havido aguns passos positivos, que devem ser apreciados, reconhecidos e encorajados.
Em suma, a minha opinião sobre a conjuntura actual, consiste no seguinte: Se o Presidente João Lourenço pretender alterar significativamente o status quo, terá que proceder à Reforma Constitucional. Para criar um quadro juridico-legal diferente, assente numa nova Filósofia do Estado. Criando instrumentos eficazes e eficientes para combater a corrupção, apostar-se na cidadania, acabar com a partidarização da função pública, e investir massivamente na educação, na saúde, na agricutura, nas infrastruturas e na tecnologia avançada.
Repare que, a Constituição em vigor, de 2010, é atípica e assimétrica, com pendor excessivo da concentração de poderes. Assente num sistema eleitoral ambivalente e ambíguo. Porque, os eleitores não conseguem definir e dividir o seu voto único na eleiçao simultânea do Presidente da República e dos Deputados.
Por outro lado, a escolha dos poderes feitos nas circunstâncias actuais, da cabeça de lista, num voto único, não confere credibilidade; cria incerteza; viabiliza a usurpação de funções e de competências de outros órgãos; anula o equilibrio e a interdependência dos órgãos; inspira a prepotência e o delírio de grandeza; e deixa o poder absoluto mergulhar-se na corrupção, no desperdício, no abuso de autoridade, e na má governação, Interessa reiterar que, o objectivo estratégico do MPLA, da criação da classe capitalista, não visava apenas o enriquecimento pessoal, mas sim, a manutenção do poder. Razão pela qual, a lei do repatriamento de capitais financeiros, foi concebida e aprovada, como forma de salvaguardar e consolidar o monopólio financeiro da classe capitalista do MPLA.
Por isso, tudo que está sendo feito é apenas uma manobra de diversão para desviar a atenção da opinião pública. É por este motivo o Presidente João Lourenço não abdicar-se-á de salvaguardar os recursos financeiros desviados dos Cofres do Estado – em posse do MPLA.
Todavia, a prudência aconselha, o povo angolano está bem acordado, ciente, consciente e em transformações profundas, cujo conteúdo real deve ser bem percebido pela classe politica e pelas elites da sociedade angolana, por se tratar de uma revolução silenciosa – em plena marcha.
Luanda, 28 de Maio de 2018.