Luanda - REFLEXÃO DO JURISTA JOSÉ FARIA SOBRE A SUPOSTA DECISÃO DO PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA JUDICIAL QUE ANULA A DECISÃO DO TRIBUNAL DE COMARCA DE BENGUELA
1. Nota Prévia.
Após a divulgação do Despacho do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial que em síntese exarou o seguinte “...tomei conhecimento do processo em curso na Sala do Cível e Administrativo do Tribunal de Comarca de Benguela, devendo os autos seguirem os seus termos legais, porém, para salvaguardar a vida, saúde das populações e o interesse público, nada impede que as autoridades sanitárias de Benguela, confiram tratamento igual ao que tem sido dado aos demais cidadãos que têm morrido ou venham a morrer nas mesmas circunstâncias decorrente da pandemia...”, fui questionado em vários círculos de antigos colegas de faculdade, amigos e pessoas afins, sobre a apreciação jurídica que se impõe a fazer ao referido despacho, datado de 28 de Agosto do ano em curso, se o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial tem competência para anular, revogar ou reparar uma decisão do Tribunal a quo, no caso o Tribunal da Comarca de Benguela.
Enquanto amante do direito preocupo-me, simples e tão-somente com os aspectos jurídicos dos temas que me proponho abordar e no caso em tela, não será diferente. Assim sendo, deixo outras questões estritamente políticas para os políticos, processuais para os processualistas, profissionais e analistas afins.
2. Despacho.
2.1. Conceito.
Entende-se por Despacho o acto administrativo definitivo e executório proferido no uso legal de um poder discricionário. No caso em tela, tratando-se de um despacho de um Magistrado Judicial, enquanto Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, entende-se despacho aqueles que são determinados pelo próprio Juiz, livremente no uso do seu poder discricionário, ao abrigo de uma norma que lhe confira uma ou mais alternativas de opção, entre os quais o Juiz deve escolher, em seu prudente arbítrio e em atenção a certo fim geral, cfr A. Ribeiro mendes, Dir. Processual Civil, III, Recursos, ed. 1982-204, citando Castro Mendes, Recursos, 41.
Por seu turno define-se Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, o órgão singular (pessoa física) do Conselho Superior da Magistratura Judicial, que representa, convoca, fixa a ordem de trabalhos, preside as sessões plenárias e da Comissão Permanente, dirige os trabalhos e exerce superior direção das atividades dos órgãos técnicos e administrativos do Conselho, bem como exerce e coordena as demais funções administrativas do Conselho, vide artigo 35.º da Lei n.º 14/11, de 18 de Março – Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
Dito, em palavras claras, salvo opinião alheia, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial tem as suas funções administrativas e não jurisdicionais.
Todavia, o Tribunal de Comarca, define-se em regra, como o Tribunal Judicial de primeira instância, com jurisdição na área territorial da respectiva província, designado pelo nome do Município em que se encontra instalado.
2.2. Da Apreciação do Despacho com recurso a Resolução n.º 1/16, de 29 de Agosto.
Compulsada a Resolução n.º 1/16, de 29 de Agosto, verifica-se que a mesma é do Tribunal Supremo e não do Conselho Superior da Magistratura Judicial e como se não bastasse, a referida resolução no seu ponto único apenas se refere a aprovação de salário base, subsídios e regalias para os Juízes Conselheiros e demais funcionários do Tribunal Supremo, equiparado ao Tribunal Constitucional e nada fala sobre a intervenção directa do Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial nos processos que já foram proferidas decisões do Juiz do Tribunal de Comarca, portanto no Tribunal a quo (primeira instância), por um lado;
Por outro lado, salvo opinião alheia, a Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto, não prevê artigo 3.º, alínea l).
Admitindo que seja mero lapso de digitalização ao referir Resolução n.º 1/16, quando se pretendia escrever Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto, I Série n.º 160, ainda assim, parece-nos que, o referido diploma chamado a colação no despacho do Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, de igual modo, foi deliberado pelo Tribunal Supremo e não pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial. Assim sendo, a referida resolução é aplicável apenas ao Tribunal Supremo, por força do âmbito do artigo 1.º da aludida resolução.
3. Da revogação da Decisão do Tribunal de Comarca de Benguela.
O quesito essencial que se coloca é se o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial tem competência para anular, revogar ou reparar uma decisão do Tribunal a quo, no caso em tela, o Tribunal da Comarca de Benguela.
Prima facie, parece-nos que a própria resolução que o Presidente do Conselho da Magistratura Judicial lançou mão para exarar o seu despacho é bastante clara, na medida em que, elucida-nos que não constitui competência do referido Presidente anular, revogar ou reparar decisão dos Tribunais inferiores nem muito mais dos Tribunais Superiores (Tribunal da Relação e Tribunal Supremo), vide alínea l) do artigo 3.º da Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto, I Série n.º 160, não atribui competências.
Aliás, nem a Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial atribui tal competência, porquanto, as funções do Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial é meramente coordenativa e administrativa para facilitar a convocação de reuniões, fixar a ordem de trabalhos, presidir as sessões plenárias e da Comissão Permanente, dirigir os trabalhos e exercer superior direção das atividades dos órgãos técnicos e administrativos do Conselho, bem como exercer e coordenar as demais funções administrativas do Conselho, tal como estabelece o artigo 35.º da Lei n.º 14/11, de 18 de Março.
Nesta conformidade, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial não tem competências jurisdicional nem no processo, até porque não há hierarquia entre os Juízes, daí que, tal despacho, enquanto acto administrativo é inválido, que pode ser atacável, por via de impugnação administrativa, nomeadamente reclamação dirigida ao próprio órgão para corrigir o acto e repor a legalidade ou por intermédio do recurso contencioso – acção de Impugnação do acto Administrativo a ser intentada junto da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo, por força dos artigos 7.º, 9.º, 13.º, 14.º e 15.º, todos da Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro – Lei da Impugnação dos Actos Administrativos, conjugado com os artigos 1.º, 3.º, 4.º, 8.º, 34.º, 39.º e 41.º, todos do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril – Aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, combinado com os artigos 78.º, 79.º, 85.º, 94.º e 95.º, todos do Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro – Aprova as Normas do Procedimento e da actividade Administrativa.
Consequentemente, salvo opinião em contrária, tal acto é nulo, inconstitucional e ilegal, por ter sido praticado com usurpação de competência em clara violação da Constituição e da lei.
Finalmente, determina a Constituição que, as decisões dos Tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre quaisquer outras autoridades, ex vi n.º 2 do artigo 177.º da Constituição da República de Angola e artigo 4.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum.
Assim sendo, uma vez proferida a decisão pelo Tribunal de primeira instância, esgota-se todos os poderes do Juiz que a tomou. Logo, nem o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial tem poderes para anular, revogar ou reparar, porquanto, a via que lei estabelece para anular, revogar ou reparar uma decisão judicial, é através do recurso para o Tribunal Superior, cfr artigos 666.º e 676.º, ambos do Código de Processo Civil, veja também Castro Mendes, Recursos, 1980-81 e seguintes V. Sub-agravo.
4. Conclusão.
Aqui chegados, podemos responder telegraficamente à questões levantada no início:
O Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial tem competência para anular, revogar ou reparar uma decisão do Tribunal a quo, no caso em tela, o Tribunal da Comarca de Benguela?
A Constituição da República de Angola, Lei n.º 14/11, de 18 de Março – Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial, a Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum e a Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto, I Série n.º 160, não atribuem competências ao Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial para anular, revogar ou reparar uma decisão do Tribunal de primeira instância, nem tão pouco atribui poderes para revogar decisões dos Tribunais Superiores (Tribunal da Relação e Tribunal Supremo).
As funções do Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial é meramente coordenativa e administrativa, logo, não tem poderes para dar ordens aos Juízes dos Tribunais Superiores e Inferiores, pois, os Juízes não são subordinados do Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, actuam segundo a Constituição e a Lei, cfr artigo 179.º da C.R.A.
Ademais, a forma de impugnar as decisões judiciais é por via de recurso e reclamações e não por intermédio de orientação de um despacho administrativa, conforme ocorreu no caso em tela, consequentemente, o acto do Venerando Juiz Presidente do Conselho da Magistratura Judicial é inválido, cuja nulidade pode ser declarada a todo tempo e pode ser do conhecimento oficioso do Tribunal (Câmara do Cível e Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo).
O referido despacho do Venerando Juiz Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial atenta contra os princípios da separação de poderes e contra o Estado Democrático e de Direito.
“Amicus Plato sed magis amica veritas”
Bibliografia
A. Varela, Manual de Proceso Civil, 1.ª Edição-52; 2.ª Edição – 55.
J. a. Reis, Código de Processo Civil Anotado, 5.º - 211. V. Efeitos do Recurso.
Castro Mendes, Recursos, 1980,14.
A. Ribeiro Mendes, Dir. Processual Civil, III, Recursos, ed. 1982-204.
Legislação:
Constituição da República de Angola
Lei n.º 14/11, de 18 de Março – Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial
Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum
Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto, I Série n.º 160,
Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro – Lei da Impugnação dos Actos Administrativos
Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril – Aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo
Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro – Aprova as Normas do Procedimento e da actividade Administrativa