Luanda - A reconciliação com a história merece um tratamento extra-partidário e extra-governo dos acontecimentos espoletados pela manifestação do dia 27 de Maio de 1977.

Fonte: Publico

Na era colonial a repressão das forças da ordem contra qualquer contestação do regime salazarista inspirou o escritor Luandino Vieira a escrever o romance A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, que daria origem ao filme de Sara Maldoror intitulado Sambizanga. O personagem Domingos Xavier foi morto sob tortura numa cadeia da PIDE, por envolvimento na luta clandestina pela libertação de Angola.


Depois da independência de Angola, verifica-se, porém, um abuso do monopólio da violência do Estado que representa o maior paradoxo das independências africanas: a distopia do nacionalismo revelada pela intangibilidade da repressão colonial, tal como, pela vigência do princípio Uti Possidetis. Ita Possideatis, a África subsariana conserva a intangibilidade das fronteiras e das línguas coloniais.

A melhor ilustração do paradoxo anti-nacionalista foi o julgamento, em Fevereiro 1976, pelo Tribunal Popular Revolucionário de Luanda dos 13 mercenários – 9 britânicos, 3 americanos e um irlandês – capturados no Norte de Angola. Outros cidadãos de nacionalidade angolana, considerados inimigos do Estado angolano, em 1977, foram sumária e inapelavelmente executados e os seus corpos evaporados da face da terra. Este acto da governação angolana representa a mais alta negação do nacionalismo na História de Angola.

Segundo o historiador John Dominic Crossan, no império romano, há mais de 2 mil anos, as três maiores penas eram a crucificação, a imolação pelo fogo e o circo dos leões. Crossan afirma que, para além da crueldade e da desonra pública, essas penas eram muito macabras, porque não podia restar nenhuma parte do cadáver para ser enterrada. Crossan classifica essas execuções como actos de terrorismo do império romano, que tinham a vantagem de evitar que o túmulo do condenado se tornasse local de culto e resistência.

O culto dos mortos

No dia um de Junho de 2019, a Universidade Católica de Angola organizou o encontro LIBERDADE E MEMÓRIA EM MESA REDONDA: O 27 DE MAIO EM ANGOLA. Nesse fórum público, o jornalista e jurista Francisco Jorge, cujo pai fora ex-preso político em São Nicolau, de 1969 a 1972, e que acabaria por desaparecer para sempre no fatídico Maio de 1977, deu o seguinte testemunho: “Eu acho que a discussão do 27 de Maio só não acontece com clareza porque há algum receio de se despromover Agostinho Neto. A essência do 27 de Maio, a sua discussão concreta está relacionada com a imagem de Agostinho Neto.

[...]. Só se vai conseguir o objectivo do esclarecimento do 27 de Maio se eventualmente houver a coragem de responsabilizar o Mais Alto Magistrado da Nação que, depois daquele dia sangrento, deixou que mais de um ano, as mortes continuassem a acontecer.”

Este esclarecimento sobre a verdade do 27 de Maio de 1977 parece muito difícil de acontecer. O dia 17 de Junho de 2023 ficou marcado em Luanda por uma sincronia histórica com o dia 27 de Maio de 1977. Tal como em 1977, houve uma manifestação de rua contra a subida do preço dos combustíveis, o fim da venda ambulante e o novo estatuto das ONG (embora desta vez em todo o país, violentamente reprimida pela polícia), e houve uma acusação contra o inimigo político (desta vez a UNITA), na sequência de um pronunciamento do Presidente João Lourenço, na véspera, trazendo à tona o esfarrapado fantasma do golpe de Estado. A sincronia reside no facto de, nesse mesmo 17 de Junho, enquanto decorria a manifestação nacional contra a carestia e a alta do preço da gasolina, o Presidente ter ido verificar o andamento das obras do novo aeroporto Dr. António Agostinho Neto. O regime de Luanda está a ressuscitar, desde 2018, o pensamento estratégico de Agostinho Neto, baseado na ditadura “democrática do proletariado”, que não admite o multipartidarismo real, nem a premissa básica da democracia: a alternância do poder. De lembrar que a Lei Constitucional da República Popular de Angola consagrava “o controlo total, unilateral e irreversível de toda a sociedade pelo MPLA.”


O que se passa, hoje, em Angola, é uma reprodução ampliada do pior dos passados: o regime de partido único e o cativeiro do povo angolano. Agostinho Neto já está entronizado como um deus na Terra, através do Memorial com o seu nome, digno de uma pirâmide do Egipto Antigo. Durante os dois últimos anos, a sua imagem foi reproduzida em todos os muros das ruas de Luanda. Multiplicaram-se os colóquios e palestras em glorificação da sua vida e obra, apresentando-o como um humanista de gema. Agora, com a inauguração do imponente aeroporto, o culto da morte de Agostinho Neto será de bradar aos céus. Do outro lado da História esquecida de Angola estão os milhares de vítimas inocentes, as pessoas que nem sequer eram do MPLA, algumas delas menores de 18 anos, algumas delas do sexo feminino, e cujas mortes não tiveram até hoje, nem terão jamais, o direito de serem cultuadas através do óbito pelos seus familiares, visto que, tal como no tempo dos romanos, não se deixou nenhum vestígio comprometedor das suas execuções.

Inércia e cativeiro

As discussões, debates e opiniões emitidas através dos meios de comunicação em Luanda ou Lisboa, pautam-se, a maior parte delas, por um equívoco de enormes proporções em relação à abordagem do 27 de Maio. A grande problemática do 27 de Maio de 1977 não está na entrega das ossadas de Nito Alves e dos principais líderes contestatários da liderança MPLA na altura, nem na teoria perfunctória do perdão sem confissão dos crimes praticados, dos quais se destacam não só os assassinatos, mas a tortura e a ocultação dos cadáveres. A grande problemática do 27 de Maio é a sua inércia no tempo da História a decorrer.

Segundo Isaac Newton, físico e matemático inglês, designa-se por Inércia a propriedade da matéria que indica resistência à mudança. Em termos metafóricos, o corpo físico do Estado angolano, na sua estrutura motora de Governo, exerce uma pressão de chave de grife política, situação de aperto férreo sobre o corpo social, derivada da trasladação para a independência do espírito de conflitualidade vigente no maquis, motor primário do movimento da inércia mitigada do sistema de repressão legitimado pelo 27 de Maio de 1977. Com essa poderosa chave de grife, o fenómeno político do 27 de Maio de 1977 moldou para sempre o paradigma do regime político e do sistema económico angolano pós-independência, tornando os povos de Angola cativos da vontade da minoria dirigente.


Este é o busílis da questão do 27 de Maio. Não são as ossadas de Nito Alves, de Sita Vales ou de José Vandúnem. Ninguém pode pedir perdão e entregar ossadas e querer que o 27 de Maio desapareça do discurso contemporâneo e do sentimento de revolta dos cidadãos actuais, se a marcha inercial do 27 de Maio não for travada: o Estado absoluto, a Imprensa manietada, a impunidade e a arbitrariedade das forças da ordem, que ocasionaram a hecatombe do 27 de Maio. A manter-se o regime absoluto encapotado de democracia está-se a perpetuar o 27 de Maio, na sua essência predadora e liquidificadora do homo angolensis. A cada ano, zungueiras (vendedoras ambulantes) são mortas nas ruas de Luanda, pela polícia. Ainda este ano foram assassinados pela polícia manifestantes jovens que exerciam um direito previsto na Lei-Mãe angolana.


Esta imoralidade política do Estado está a pôr em causa o desenvolvimento social e económico de Angola. Entregar ossadas por entregar, pedir perdão por pedir não terá nenhum resultado palpável para as vidas dos mais de 30 milhões de angolanos, dos quais 20 milhões estão no limiar da pobreza crónica e 4 milhões de crianças estão fora de um sistema de Ensino obsoleto. Qualquer mudança de paradigma no curso da História de Angola, nos dias de hoje, passa, incontornavelmente, pela abolição da crueldade institucionalizada, com foros de coisa normal, admissível. Políticos de renome da ex-potência colonizadora – potência essa com certas responsabilidades para com esta tragédia devido ao escandaloso processo de descolonização – como Paulo Portas, o próprio Presidente Rebelo de Sousa e deputados da maioria parlamentar fecham os olhos perante esta tragédia. Até mesmo as forças democráticas da União Europeia estão manietadas pelo confronto geo-estratégico das grandes potências pelo controlo dos valiosos recursos de Angola. A disputa a qualquer preço dos EUA contra a presença chinesa em Angola criou uma conjuntura desfavorável à solidariedade internacional para com a luta da juventude angolana pela afirmação da dignidade da pessoa humana.

 

Desde a captura do Estado em 1975, o MPLA foi-se consolidando como uma máquina de guerra, com o segundo maior exército da África Austral, ao qual se agrega a Polícia Nacional e os serviços de Informação e Segurança do Estado (SINSE). Como se todo este património público não lhe bastasse, o MPLA agregou-lhe o quarto poder, a Comunicação Social, hoje por hoje confundido com os próprios serviços de Informação do SINSE.

O que se constata em Angola, 47 anos depois da independência, é uma luta de classes completamente desigual, na qual a classe rica e dirigente repousa arrogantemente sobre a omnipotente máquina de defesa e segurança militar e para-militar que controla no âmago do sistema, os processos eleitorais e mantém a vigilância policial e as forças armadas sempre em prontidão combativa, tal como na Grécia Clássica, no tempo do general grego Temístocles, dez mil atenienses e espartanos dormiam e acordavam de espada à cinta e escudo na mão, para vigiar e coordenar o trabalho de 40 mil escravos hilotas.


Todo este paradigma necrófago de governação só é possível, porque se conserva, embora um pouco mitigado, pela lei da inércia política (adversa a qualquer mudança), o espírito do 27 de Maio de 1977.


A reconciliação com a história merece um tratamento extra-partidário e extra-governo dos acontecimentos espoletados pela manifestação do dia 27 de Maio de 1977, agregada à perpetuação dos nomes das 30 mil vítimas num mural que poderá ter um bom quilómetro de extensão.


Sem este pressuposto fundamental, a essência, a alma mater do 27 de Maio continuará, pela lei do movimento inercial do terror oficializado à Roma Antiga, vigente em Angola. Em África, devido à maldição do ferrete colonial, o abuso do monopólio da violência do Estado é incompatível e excludente da ideia de independência, na sua ontologia pragmática. É preciso abordarmos esta questão, que reputamos fundamental, sem mais subterfúgios, hipocrisias, nem ameaças aos intelectuais livres de Angola (afinal, um património humano que o Governo não quer reconhecer e que também recebe ameaças letais das forças securitárias) se quisermos honrar a luta de libertação e a própria História de África.