Luanda - É uma questão incompreensível na mente do cidadão comum. É certo que, existem questões de técnica jurídica, questões processuais e legais, que só os profissionais do direito, mormente os mais ligados ao fórum, Juízes, Procuradores e Advogados percebem e dominam, sem descurar os técnicos de justiça, assim como os especialistas do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e porque não incluir também os agentes e oficiais da Polícia Nacional ligados ao Departamento de Investigação de Ilícitos Penais (DIIP).
Fonte: Club-k.net
Outrossim, é dever de cidadania para aqueles que sabem e podem, contribuir para o elevar da literacia dos seus concidadãos. O que está na moda entre nós, é o discurso da literacia financeira, do empreendedorismo, do empoderamento das mulheres. Não somos contrários a esta dialéctica, aliás apoiamos e incentivamos mas, não devemos esquecer que, o desenvolvimento social e humano é transversal. E se hoje estamos a levantar a bandeira da literacia financeira, fundamental para a melhoria da condição de vida do nosso povo, é prudente colocarmos ao mesmo nível, as bandeiras da literacia jurídica, literacia cultural, literacia ética e moral, literacia deontológica no exercício das profissões e funções públicas principalmente, tudo isso contribui para o desenvolvimento humano de um povo.
Enquanto operador do direito (advogado) e docente da cadeira de Direito Processual Penal, honra-me o dever de contribuir para o elevar da consciência, da cultura e da literacia jurídica dos nossos concidadãos menos esclarecidos, menos instruídos e menos alfabetizados. A Constituição da República de Angola (CRA, 2010), que academicamente designamos por Lei Mãe, Lei Fundamental, Lei Principal, Lei Maior, Lei das leis ou Carta Magna, reconhece a todos os cidadãos, no rol dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei (artigo 72.o), no caso de alguém ser acusado ou ser suspeito do cometimento de um crime. À reboque desta norma constitucional, o “pacato” cidadão tem legitimidade de fazer a seguinte pergunta, subdividida em três: Porquê que, uns são julgados no mesmo dia ou no dia seguinte ao cometimento do crime? Porquê que, alguns são julgados muito mais tarde, aguardando julgamento na cadeia? Porquê que, outros são julgados também mais tarde, mas aguardam o julgamento em casa?
A suspeita ou evidências do cometimento de um crime, pressupõe que a denúncia ou queixa (dependendo da natureza do crime), deva ser feita junto de uma Esquadra ou Comando de Polícia onde existe um órgão de Polícia Criminal, na nossa realidade, o SIC. Junto deste órgão está sempre um representante do Ministério Público (que as pessoas vulgarmente conhecem por Procurador), cuja função é receber as participações dos cidadãos, dando seguimento a um processo, instruindo, recolhendo provas, até determinar-se se houve de facto crime, quem terá cometido, como, quando, onde e outros elementos probatórios que levam a que o Procurador tome uma das seguintes decisões: remeter o processo ao Tribunal para o julgamento do indivíduo e/ou indivíduos suspeitos; arquivar o processo caso as perguntas ora descritas não forem respondidas na totalidade ou na maior percentagem. A todo este procedimento processual denomina-se instrução preparatória.
A instrução preparatória acontece durante todo o período que o processo fica no SIC, sob direcção e fiscalização da Procuradoria da República, onde o Procurador, com o auxílio dos especialistas do SIC (instrutores, investigadores, técnicos forenses, psicólogos e outros peritos, se necessário), juntam provas para que, o juízo de suspeita sobre a queixa ou denúncia, evolua para juízo de probabilidade e, se o processo for remetido à tribunal, o juiz possa aceitar julgar (porque concorda com as provas recolhidas e apresentadas pelo Procurador) e o julgamento possa correr e ser concluído com êxito.
Todos estes actos em sequência, tecnicamente designamos por formação do corpo de delito, acusação, pronúncia, julgamento e decisão, que pode resultar numa condenação ou absolvição do arguido (o suspeito de ter cometido o crime levado a julgamento). Este é o procedimento normal, que é desenvolvido na chamada forma de processo comum, que é a forma regra, estabelecida e desenvolvida no Título II da Lei n.o 39/20 de 11 de Novembro, Lei que aprovou o Código de Processo Penal Angolano.
O que as pessoas devem perceber é que, os estabelecimentos prisionais, as cadeias foram instituídas para servirem de “internamento” para aqueles cidadãos já julgados e condenados por um tribunal criminal, para aí cumprirem pena de prisão, que pode ir de 3 dias (duração mínima) a 25 anos (duração máxima), nos termos do artigo 44.o da Lei n.o 38/20 de 11 de Novembro, Lei que aprova o Código Penal Angolano. A regra é que, durante o período que corre a instrução preparatória no SIC (seja no SIC Geral, Provincial ou Municipal), que pode ir até 24 meses (2 anos), até ser remetido a tribunal, dependendo da complexidade do processo, o arguido – cidadão que está a ser acusado de ter cometido o crime em causa, fica solto, em sua casa e, se tiver que ser julgado, o será nesta condição: em liberdade provisória. Se tiver que ser condenado a uma pena de prisão, no mesmo dia em que o juiz proferir a sentença, será recolhido para a cadeia.
Também é importante saber que, esta liberdade provisória será limitada, na medida em que, ao arguido serão aplicadas algumas medidas que garantam e permitam que o mesmo esteja a disposição dos órgãos de justiça, sempre que for chamado no processo. São as medidas de coacção pessoal, constantes no número 1 do artigo 260.o do Código de Processo Penal, sendo as mais conhecidas pelo público em geral, o Termo de Identidade e Residência (TIR), a obrigação de apresentação periódica às autoridades e a caução.
Assim, fica claro que, aquela narrativa popular de que, o filho do vizinho que furtou a botija de gás, o taxista que atropelou mortalmente o peão, o intermediário que burlou 200 Mil kwanzas do negócio do terreno ou o namorado ciumento que agrediu a parceira, após serem detidos na Esquadra de Polícia, um ou dois dias depois foram soltos, “é porque já pagaram o Instrutor, o Chefe do SIC ou o Procurador”, até prova em contrário é falsa, pura falta de literacia jurídica. A regra é: enquanto durar a fase de instrução preparatória, o arguido aguarda julgamento em casa. Fora deste quadro, será excepção a regra, cuja explicação daremos na Parte II deste tema, onde responderemos a questão: Porquê que outros aguardam julgamento na cadeia?
José Coelho da Cruz
-Docente Universitário/Advogado-