Luanda - A visita oficial (26/09/2023) do Secretario de Defesa dos Estados Unidos da América, General Lloyd James Austin III, à Luanda, levantou a poeira sobre a Política Externa do Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço. Pois, como é sabido, o MPLA é o Aliado histórico e estratégico da Rússia em África desde os primórdios da luta anticolonial, passando pela Guerra-Fria, até ao final da Guerra Civil – em 2002.
Fonte: Club-k.net
Neste respeito, convinha sublinhar que, desde 1975 até 2017, Angola ocupou o lugar cimeiro na estratégia geopolítica da Federação Russa na África Subsariana. A partir de 2002, quando a guerra civil terminou, começou a registar-se o incremento na cooperação económica entre Angola e China. Neste período, a China fez investimentos maciços avaliados em USD-45 mil milhões na construção e na reabilitação das infraestruturas que ficaram afetadas pela guerra prolongada. Os Caminhos de Ferros de Benguela (CFB) e de Moçâmedes (CFM), por exemplo, ficaram paralisados.
Note-se que, apesar de grandes investimentos da China no mercado angolano, mas isso não foi suficiente para afectar a aliança estratégica entre Luanda e Moscovo. Na verdade, Angola tivera sido transformada num Estado Satélite da União Soviética, com a presença massiva de efectivos militares do Pacto da Varsóvia, que se apoiaram no Exército Expedicionário Cubano, que assumiu o fardo da Guerra-Fria até a celebração dos Acordos de Paz de Bicesse, a 31 de Maio de 1991.
Para dizer que, as transformações ocorridas na parceria económica entre Angola e China não tiveram impacto nenhum sobre a doutrina político-militar do Estado Angolano. Conquanto, desde 2017, quando Presidente João Lourenço assumiu o poder em Luanda, o quadro da parceria estratégica começou a sofrer algumas alterações, embora não tenha sido de ordem orgânica. Observou-se, desde então, uma mudança gradual da diplomacia económica angolana, marcada por sucessivas deslocações do Presidente João Lourenço ao Ocidente, afirmando diversos Acordos de Cooperação Bilateral.
Durante este mesmo período verificou-se a abertura gradual às Instituições Financeiras de Bretton Woods, bem como, aos diversos Organismos das Nações Unidas, que se instalaram em Luanda. Seguiu-se o abrandamento discreto nas relações de cooperação bilateral entre Angola e Rússia. Constatou-se igualmente o afrouxamento gradual dos investimentos (créditos) da China em Angola, pese embora a Pandemia da Covid-19 que afectou sobremaneira a economia mundial.
A inclinação do Presidente João Lourenço ao Ocidente tornou-se mais saliente no decurso da invasão massiva da Ucrânia pela Rússia. Não obstante o facto de que no inicio da Guerra da Ucrânia a Cidade Alta estava, de modo implícito, do lado de Kremlin. Todavia, esta postura foi de curta duração. Creio que duas situações concretas influenciaram a mudança de posicionamento da Cidade Alta, nomeadamente:
(a) as deliberações das Nações Unidas que condenaram veementemente a invasão da Ucrânia por um membro permanente do Conselho da Segurança da ONU, violando a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional.
(b) O apoio efectivo da União Europeia e da NATO à Ucrânia; as sanções económicas punitivas aplicadas contra a Rússia, no âmbito da violação dos princípios da soberania, da integridade territorial, da igualdade e da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados.
Na minha observação pessoal acho que, a grande viragem da Política Externa do Presidente João Lourenço teve lugar durante a Cimeira EUA-África, em Washington, realizada entre 13 e 15 de dezembro de 2022. Na altura, Presidente João Lourenço reuniu em Washington com Secretário de Estado, Antony Blinken, e com Secretário de Defesa, General Lloyd James Austin III.
Nesta missão diplomática, Presidente João Lourenço anunciou formalmente, em Washington, nos seguintes termos: que ele tinha tomado a decisão de proceder à restruturação, à reorganização, ao reequipamento, à modernização e à adopção das forças armadas angolanas de novos conhecimentos técnico- militares ocidentais, sobretudo dos Estados Unidos da América.
Vejamos que, quem estiver dentro da filosofia política, facilmente entenderá que, a doutrina militar é parte integrante da doutrina política; são intrínsecos e inseparáveis. Aliás, o pensador e estratega prussiano, General Carl von Clauswitz (1790-1831) afirmava que, cita: “A guerra é a continuação da política por outros meios.” Fim de citação.
De facto, se analisar bem, percebereis que, a guerra é uma manifestação mais alta da «razão» e da «acção» que surge em diversas circunstâncias, exigindo a defesa de um conjunto de interesses, de princípios e de valores, tais como: a humanidade, o território, a nacionalidade, a cidadania, a identidade, a integridade, a liberdade, a igualdade, a justiça, a dignidade e o bem-estar. Por isso, a doutrina militar deve assentar-se em valores políticos para que ela não se transforme em mercenarismo.
Logo, a mudança de uma doutrina militar para a outra doutrina militar tem consequências sobre o sistema político de uma sociedade. Razão pela qual, para que um país seja membro da União Europeia ou da NATO deve preencher um conjunto de pressupostos muito antes de ser admitido como membro efectivo, de pleno direito.
Em função disso, a doutrina militar da NATO está enquadrada no sistema politico ocidental, assente nas instituições democráticas e na economia de mercado. Neste sistema, vigora a separação dos poderes e a subalternização do poder militar ao poder politico. Este último, tem a legitimidade politica que deriva da vontade expressa dos eleitores que o elegeram através de um processo eleitoral verdadeiro e transparente.
Porque, de facto, o poder politico emana da vontade dos eleitores, que são donos da autoridade pública, que têm a faca e o queijo na mão de delegar o poder e de retirar o mesmo poder quando for necessário. Nesta base, o poder militar e o poder politico, ambos têm o dever de respeitar escrupulosamente a soberania popular. Nessas circunstâncias, quando o poder político estiver agredido, cabe ao poder militar proteger o poder político, porque ele encarna a soberania popular.
Na minha óptica, esta é a essência da doutrina democrática que reside na legitimidade política e na legalidade constitucional, em que, o exercício da autoridade pública se manifesta dentro das normas jurídicas, que regulam a conduta das pessoas e das instituições. Pois, as normas constitucionais estabelecem os limites, os freios e os contrapesos, refletidos no princípio de checks and balances.
Quando o Secretário de Defesa norte-americano, Lloyd Austin, disse que, «a África não precisava de lideres fortes, mas sim, de instituições fortes e sólidas», ele estava a fazer menção da natureza autocrática dos regimes africanos. Como tal, os governantes africanos, de grosso modo, não governam na base da legalidade, mas sim, na arbitrariedade, violando sistematicamente a Constituição e o Direito Internacional.
Isso tem implicações muito graves sobre a governação e a estabilidade institucional, como tem vindo a acontecer no Sahel e noutras partes da África. Convinha ressaltar que, a doutrina da NATO, que encarna a doutrina dos EUA, assenta nos valores políticos da democracia pluralista, inspirados no capitalismo, na economia do mercado e na livre iniciativa.
Para ser mais preciso e explícito, a democracia pluralista reside no reconhecimento de que, «vários partidos políticos possuem igual direito ao exercício do poder político», segundo procedimentos eleitorais transparentes, claramente definidos, respeitados e cumpridos escrupulosamente. Esses valores, do pluralismo democrático, não estão dentro da cultura politica do MPLA, assente no partido-estado, caracterizado pela centralização dos poderes, com enfoque na manutenção do poder político por todos os meios.
Na doutrina da NATO, a cidadania é a fonte principal do poder politico, defendido pelo poder militar. Ao passo que, em Angola a fonte do poder politico é a militância partidária. As Forças Armadas Angolanas e a Policia Nacional estão ideologicamente doutrinadas nesta base, do conceito partidário, como elemento supremo da constituição do Estado.
É incrível notar que, o estado-partido angolano não assenta na cidadania africana, mas sim, no partido e na supremacia partidária, de matriz «supraétnica», assente na herança cultural lusíada. A antropologia cultural, em referência, é o antónimo dos valores culturais africanos, de matriz bantu, que originaram da Civilização Antiga Egípcia, que floresceu ao longo do Rio Nilo e em torno do Mar Mediterrâneo. Essa Civilização Africana enfrentou a expansão das outras Civilizações Antigas da Mesopotâmia e da Roma Antiga, que se cruzaram em torno do Mar Mediterrâneo.
Em síntese, qualquer restruturação e reorganização orgânica das Forças Armadas Angolanas devem tomar em consideração a doutrina política do Estado, que constitui o factor-chave que orienta e determina a doutrina militar. Infelizmente, parece-me que, a visão do Presidente João Lourenço não reside na democratização da doutrina do Estado Angolano.
Pois, existe o contraste abismal entre a abertura ao Ocidente e o Modelo de Governação, que ele pratica, e que assenta invariavelmente na partidarização do Estado e no agravamento da centralização dos poderes. Nota-se, neste âmbito, a domesticação dos Órgãos da Justiça que constituem um dos pilares principais do Estado de Direito e Democrático.
Portanto, esta postura de rapprochement ao Ocidente enquadra-se na estratégia geopolítica das potências mundiais em África. Pelos vistos, ela não está inspirada na promoção dos valores democráticos, mas sim, nos interesses geoeconómicos e geoestratégicos.
Todavia, este é um postigo que está semiaberto, e que deve ser bem acautelado para descobrir aquilo que está lá dentro, que nos permita fazer o juízo e abri-lo. No fundo, este é o grande desafio do povo angolano, confrontado por três potências mundiais, em plena disputa pelo domínio do poder global.
Luanda, 29 de Setembro de 2023