Bengula - 9 de Março de 2025. passaram , exactamente, quarenta anos da tragédia da baia de Santo Antônio. Ali morreram 67 camaradas das FAPLA. A medida que o tempo passa, uma pergunta persiste teimosa e sem resposta . Terá valido a pena tanto sacrifício e dor dos que acreditaram na causa?

Fonte: Club-k.net

Deixo outros assuntos para uma reflexão , no final do texto.

Este texto é especialmente dedicado para ti, John Chitumba, sobrevivente da tragédia referida e de outras, que aconteceram naqueles tempos complicados. Vim a saber que, afinal, morreste recentemente por uma simples doença.

Um dia nos reuniremos no inferno!
TUKUBAMA TUKALA .

(Homenagem aos 67 recrutas das Forças Especiais das FAPLA falecidos durante uma inexplicável manobra de instrução na praia de Santo Antônio,

Hoje, ninguém se lembra do caso. Mais uma vez, ninguém recorda da data. Hoje, dia 9 de Março de 2025, passaram exactamente 40 anos de um dos acontecimentos mais trágicos e macabros a que já assisti em 63 anos de vida.
O facto sucedeu em 1985, aqui em Benguela. Era uma passagem de Sexta-feira para Sábado e havia bailes programados na feira, para saudar a passagem do dia 8 de Março, consagrado como dia internacional da mulher. A nossa OMA estava pronta fazer as honras da casa, como sempre.

Entretanto, algo inusitado tinha acontecido naquele estranho amanhecer. Nós seríamos avisados do ocorrido, como sempre.

Manhã bem cedo, surgiu o alerta máximo, a nível interno. Tinha chuviscado e o céu estava de cor cinza chumbo. Rapidamente, fomos mobilizados para seguirmos para a praia de Santo Antonio. Ninguém explicava concretamente o que se tinha passado, se tinha sido ataque da UNITA ou que raio fosse, que tivesse acontecido naquela madrugada.

Nada sabíamos e ninguém questionava. Enquanto isso, nós nos íamos agrupando na delegação.

Naquela altura, na segurança, não se perguntava nem se respondia a nada. O nosso capitão, o Eduardo Octávio, era um dos homens mais sérios que tínhamos na cúpula militar. Havia ordens e elas tinham de ser cumpridas custasse o que custasse.
Nada sabiamos de ciência certa, muito menos que havia tropas do CIK em manobras de marchas finais, para a cerimônia do juramento de bandeira.

Os soldados tinham feito uma caminhada forçada durante 24h, até chegarem ao perímetro do Dombe- Grande. Depois disso, restaria apenas o regresso, pelos caminhos de cabra nos montes e escarpas da baía do Santo António, ligeiramente a Norte do Morro do Sombreiro..

Disseram, após se consumar a tragédia, que os soldados cantavam quando, armados com “kalashes” e com as mochilas de pedras nas costas, desceram a ladeira para a praia.

Eram comandos caçadores. Entraram decididos no areal e prosseguiram mar adentro. Estava tudo coberto pelo breu. Era madrugada. E eles Iniciaram a travessia da baia com a água pelo peito. Como mandavam os procedimentos, mantinham as armas icadas acima da linha de água. Os instrutores gritavam como se grita com quaisquer recrutas.

Eles avançavam sem medo, para onde quer que fosse, já eram Comandos. Repentinamente, foi quando rebentou aquela onda maldita que os cobriu a todos. Seguiu-se outra e depois mais mais outra, até se fazer sinistro silêncio.

Estava,assim, consumada a tragédia naquela maldita Sexta feira, Março de 1985. Num ápice, 65 instruendos e 2 instrutores estavam mortos. Soou o alarme nas comunicações militares.
Apenas o gesto maquinal de pegar na Kalashe, entrelacar a cartucheira ao peito, afivelar o cinto com a makarov e avançar. Encontramos dezenas de corpos estirados na areia, ensopados ao sabor do indiferente do vai e vem do rendilhado das ondas.

Havia oficiais instrutores do CIK empunhando armas, diziam em voz alta que deveriamos nos retirar do local. Isso não fazia qualquer sentido para nós!

Nos pareceu que eles estavam muito assustados com a presenca do oficial da Tecnica Operativa da Segurança do nosso grupo, munido de equipamento de registo operativo. Não queriam testemunhas da inconcebivel façanha que tinha provocado uma verdadeira tragédia na mesma praia atlântica onde, ao Domingo, as familias benguelenses gozavam os seus momentos de lazer.
Foi a estupefacção total!

Eles eram Comandos e já não faziam parte do mundo dos vivos! Afinal, como morreram estes companheiros? A maior parte deles eram recrutas oriundos de famílias de Benguela e do Cuanza-Sul. Vieram integrar os primeiros contingentes para o combate de quadricula que, entretanto, se iniciara contra a guerrilha que estava nas matas.

Ao meio do dia, os corpos comecaram a ser recolhidos e evacuados para o quartel do CIK, à entrada da cidade de Benguela. Disseram-nos que tinha chegado uma comissão de inquérito do EMG das FAPLA. Infelizmente, as conclusões de tal inquérito, até hoje não toram conhecidos. As famílias ficaram assim, sem informações oficias, o que foi mau.

O velório teve lugar no quartel do CIK. Foi um momento extremamente dramatico, com a chegada dos inconsoláveis familiares, vindos dos bairros de Benguela e do Kwanza-Sul. Era a pior desgraça que se podia imaginar. A desgraça estava a pairar no ar. Se não tivesse acontecido a tragédia, eles teriam partido no dia seguinte para o combate.

Comandos a morrerem assim a toa, isso ninguém esperava acontecer!

Fazia um calor infernal no interior das casernas. Alguns corpos foram postos no exterior deitados em esteiras. O cheiro adocicado das flores da morte pairava em toda a extensão das casernas cobertas de chapas curvas de fibrocimento.

Nessa altura, a totalidade dos cadáveres ja estava exposta do lado de fora das casernas por causa do calor. Havia uma luta desesperada para os familiares reconhecerem os seus, entre as dezenas de mortos.

As urnas e caixões tinham esgotado em todas as carpintarias da provincia. Havia que improvisar, com simples tábuas e esteiras. Pairava um pesado ambiente na cidade e um encantamento aparvalhado e febril tomou conta das pessoas. As pessoas estavam irreconhecíveis, todos indagando o simples o porquê daquilo!

Começou finalmente o longo cortejo, a partir do CIK rumo ao cemitério de Catengue, isso no inicio da tarde. Ainda estavam a chegar familiares aos gritos, andando pelo cortejo de viaturas, buscando a urna ou as tábuas que levam os seus entes. O momento era diabólico e indescritível.

Varias mamães choravam os filhos perdidos, cantando nas nossas linguas da Kibala e do Sumbe.

Só chegarmos ao cemitério de Katengue, a macabra vala comum surgiu estendida, como uma sinistra jibóia. Aquele monstro insaciável ia absorvendo a deposição dos corpos um a um. No ar, ouviam-se os choros lancinantes das mães e dos irmãos, associados ao pesar de todos nós.

Depois, para cumprir o protocolo estabelecido, começamos a ouvir um longo discurso do Comissário Kundi Payhama, naquela tarde aterradora e amaldiçoada era tudo estranho e febril.

“Vamos honrar os camaradas que estamos a enterrar, combatendo os nossos inimigos", gritou o camarada Comissário, com uma expressão indecifravel na face.

A sinistra retro-escavadora amarela, aguardava parada, uma nova chamada para operar nas entranhas da terra húmida. Esperava imóvel e tétrica, num dos topos da vala comum. Bastava que a chamassem e ela não se faria rogada.


De repente, sairam dos canos das kalashes da guarnição de honra, as salvas disparadas desordenadamente para o ar. Ouvem-se gritos buscando alguma razão para explicar tudo aquilo. Só podia ser obra do demónio.


Havia pessoas petrificadas, com as mãos levantadas para o céu, implorando a clemência do Todo-Poderoso.

Naquele cenário surreal e delirante, o camarada Comissário Payhama exortou-nos a manter a Fé na revolução que, afinal, buscava um socialismo científico de corrupção, alimentado com sangue inocente, fosse operário ou camponês.

Nos perguntávamos, afinal que socialismo era esse, e que revolução era essa, que ultrapassava os limites da razão subsistente? Eles eram tão jovens! Porque tinha de ser assim? Eles nem tinham sequer jurado a bandeira!

Camaradas!

O que eu escrevo aqui são relatos de verdadeiros, porque os presenciei e vivi.

Ao chegar, doente e quase em farrapos aos 64 anos de idade, vou deixando o orgulho de ter pertencido a uma gesta que dedicou os anos mais caros da vida em defesa de uma causa justa. Apenas nos vamos arrastando e mendigando, porque, apesar de termos estudado marxismo-leninismo ainda aprendemos a dialética

Muitos dos que lutaram por uma Angola livre e justa sentiram que os ideais que os moveram foram distorcidos ou abandonados depois da independência. A realidade do poder trouxe desilusões, corrupção e exclusão, quando o sonho era de um país mais justo para todos.

A luta pela independência era inicialmente movida por um sonho coletivo. Com o passar do tempo, esse ideal foi substituído pela superveniência de interesses individuais e pela consolidação de um poder que se foi paulatinamente distanciando do povo. A corrupção generalizada e a falta de sentido de Estado de alguns líderes traíram os princípios da “Geração da Utopia”, e comprometeram o futuro de Angola, com desigualdades e a marginalização de muitos dos homens que lutaram por este país.

Meio século depois, a questão que fica no ar é de sabermos se ainda há espaço para se resgatar algo desse legado ou o será que o inexorável factor tempo já consumiu todas as possibilidades de nos redimirmos?

Provavelmente, a maior tragédia da “Geração da Utopia” tenha sido seguir a crença de que o inimigo eram apenas o colonialismo, a UNITA e o apartheid, sem percebermos que as estruturas de dominação podiam ser recriadas internamente.

Paz às almas dos nossos que tombaram!

Catumbela, 9 de Março de 2025.