Luanda - No início de janeiro de 2025, o governo angolano confirmou o aparecimento de um surto de cólera em várias províncias do norte. Relatórios do Zaire e de Cabinda indicavam cerca de 150 casos suspeitos e dez mortes, na sequência de uma reunião de emergência do Conselho de Ministros presidida pelo Ministro da Saúde, Luís Sambo.
Fonte: Club-k.net
A 14 de janeiro, a primeira atualização da UNICEF revelou 332 casos confirmados, incluindo 20 mortes, em três províncias: Luanda, Bengo e Icolo e Bengo. A cólera é causada pela ingestão de água ou alimentos contaminados com Vibrio cholerae e desenvolve-se em áreas com saneamento deficiente e acesso limitado a água potável. Provoca um rápido aparecimento de diarreia grave e desidratação, que pode ser fatal se não for tratada.
No final de janeiro, o Ministério da Saúde de Angola tinha assegurado 948.500 doses da vacina oral contra a cólera, Euvichol, junto do Grupo de Coordenação Internacional. Entre 3 e 8 de fevereiro de 2025, foi lançada uma campanha de vacinação nas províncias de Luanda, Icolo e Bengo, que abrangeu 925.026 habitantes, uma taxa de cobertura de 86%. No entanto, apesar destes esforços, a cólera persiste, com uma média de 120 novos casos e cinco mortes por dia, o que sublinha o seu enraizamento em zonas de pobreza e de abandono das infra-estruturas. Um perito anónimo em virologia bioquímica manifestou a sua preocupação pelo facto de um surto tão generalizado não poder ocorrer naturalmente, mesmo durante a estação das chuvas. Sugerem que a possibilidade de contaminação deliberada não pode ser excluída.
O gráfico mostra como ocorreu um aumento súbito do número de casos da doença pouco depois da vacinação, no início de fevereiro.
Visto isoladamente, o atual surto pode parecer uma consequência trágica de desafios ambientais e sistémicos. No entanto, a experiência angolana reflecte um padrão histórico mais amplo de intervenções biomédicas ocidentais em África que ultrapassaram repetidamente os limites éticos e causaram danos generalizados. Em 1996, durante uma epidemia de meningite em Kano, na Nigéria, a Pfizer testou um antibiótico chamado Trovan contra o tratamento padrão com ceftriaxona sem a devida aprovação governamental ou consentimento informado. Onze crianças morreram - cinco no grupo do Trovan e seis no grupo de controlo - enquanto outras sofreram incapacidades para toda a vida. Mais tarde, um painel de peritos nigerianos considerou estes ensaios ilegais, dando origem a uma ação judicial por violação do consentimento informado. A Pfizer acabou por chegar a um acordo extrajudicial e retirou o Trovan devido à sua toxicidade hepática.
Em meados da década de 1990, investigadores americanos, financiados pelo CDC, NIH e OMS, realizaram ensaios com AZT em mulheres grávidas seropositivas no Zimbabué e noutros países africanos. Apesar das provas do estudo ACTG 076, que demonstrou que a zidovudina reduz em dois terços a transmissão do VIH de mãe para filho, muitos ensaios deram placebos a metade das participantes. Como resultado, estima-se que mil bebés contraíram o VIH, negando-lhes uma medida preventiva comprovada.
Na década de 1970, o Depo-Provera, um contracetivo mais tarde proibido em 1981, foi testado em mulheres negras na Rodésia (atual Zimbabué) em circunstâncias coercivas, incluindo a utilização forçada em explorações agrícolas comerciais. Recentemente, durante a pandemia de COVID-19, dois médicos franceses suscitaram críticas a nível mundial ao proporem ensaios de vacinas em populações africanas, invocando máscaras e cuidados de saúde inadequados, o que constitui uma recordação gritante do “colonialismo médico” em curso.
Estes episódios não são meras notas de rodapé históricas. Contribuem para a falta de confiança nas iniciativas de saúde pública e impedem as pessoas de receberem vacinas. Isto, por sua vez, agrava as disparidades no domínio da saúde. A atual crise em Angola, que se desenrola há décadas devido a intervenções externas motivadas pelo lucro e pelo paternalismo, exige uma responsabilização urgente das respostas humanitárias.
O governo angolano e os parceiros internacionais devem efetuar uma auditoria exaustiva a todos os actores privados e multilaterais envolvidos na resposta ao surto. Isto inclui a análise dos contratantes da qualidade da água e a supervisão da aquisição de vacinas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), UNICEF, Banco Mundial e Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Exige também a apresentação de relatórios transparentes sobre as operações clínicas. Só através de tal escrutínio, baseado na soberania e no consentimento informado, é que Angola pode recuperar o controlo sobre a saúde pública. As futuras intervenções devem dar prioridade à dignidade e aos direitos do povo de Angola.
Joaquim Fernandes