Luanda - O Presidente da República de Angola, João Lourenço, decidiu distinguir dois gigantes da cultura nacional — José Adelino Barceló de Carvalho, conhecido como Bonga, e Waldemar Bastos — conferindo-lhes a mais alta condecoração da Nação, por ocasião do cinquentenário da independência. Este gesto oficial, solene e inédito, reveste-se de um alcance simbólico e cultural profundo para o país. É muito mais do que uma cerimónia protocolar: é um ato de reconhecimento nacional que se inscreve numa dinâmica de reconciliação, de memória e de orgulho reencontrado. Ao homenagear estes dois artistas maiores — um, tesouro musical vivo; o outro, saudoso cantor já desaparecido — o mandato do Presidente João Lourenço afirma-se claramente como um tempo de reparação histórica e de projeção para uma Angola nova, mais justa e mais orgulhosa das suas raízes.
Fonte: Club-k.net
Esta dupla distinção é histórica. Cinquenta anos após a independência, Angola celebra finalmente, de forma oficial, duas vozes que, cada uma à sua maneira, encarnaram a alma do país — nas suas horas mais sombrias e nas suas mais luminosas esperanças. É, ao mesmo tempo, emocionante e notável: emocionante, porque Bonga e Waldemar Bastos foram durante muito tempo consciências melódicas no exílio, cantando Angola de longe, quando esta os ignorava ou censurava; notável, porque esta consagração suprema da Nação a artistas outrora dissidentes ou marginalizados representa um gesto político de rara grandeza. É a prova de que o tempo da exclusão cultural chegou ao fim. Ao condecorar Bonga e Waldemar Bastos, o Presidente João Lourenço inscreve este reconhecimento no mármore da história nacional — um gesto que, sem dúvida, figurará no legado positivo do seu mandato.
Bonga: o génio musical da resistência angolana
Bonga, hoje com mais de 80 anos, é muito mais do que um cantor: é uma lenda viva, a banda sonora da resistência angolana. Desde os anos 1970, a sua voz rouca e generosa levava consigo os anseios de um povo em luta contra o jugo colonial português. Atleta de alta competição tornado músico rebelde, Bonga colocou a sua arte ao serviço da liberdade. À época, as suas canções ao ritmo do semba estavam cheias de mensagens cifradas, desafiando a censura e forçando o artista ao exílio. Cantava as verdades escondidas dos musseques de Luanda, a vida dos bairros populares e a dignidade dos seus, em contraponto à visão exotizante do Colono. Como escrevi outrora, “canta todas as belezas dos nossos musseques e também as da minha avó, da minha mãe e das minhas irmãs, mulheres negras como a maioria das angolanas e africanas, que nunca precisaram de “pintar o cabelo de branco”. Bonga sempre celebrou a beleza africana e o orgulho das raízes perante a opressão. Dotado de um raro sentido crítico da história, de um profundo sentimento de justiça e de uma solidariedade inquebrantável com os oprimidos, fez da sua música simultaneamente um ato de resistência e uma arte sublime.
O génio musical de Bonga reside nesta alquimia entre o consciente e o belo: Ele faz música inteligente, de resistência, e música bela. A sua música é rebelde e consciente. E assim, une naturalmente os corações e os espíritos. As suas melodias incitam à formação da roda da fraternidade e da angolanidade — uma roda fraterna em torno da identidade angolana. Por cantar alto e claro a dignidade dos oprimidos, alguns espíritos assimilados ou alienados preferiam (e ainda preferem) ignorá-lo — incapazes de absorver a força das suas palavras — mas o povo, esse, nunca se enganou. Em Angola, o povo sempre adorou Bonga, compreendendo as suas ironias finas e as mensagens codificadas sobre a condição do país. E em todo o mundo, melómanos de todos os horizontes foram tocados pela universalidade da sua voz. Bonga soube enobrecer o kimbundu e oferecê-lo em partilha ao mundo, de tal forma que, na Europa como nas Américas, jovens e velhos se erguem para comungar em coro com os seus refrães vindos de Bengo. Mesmo os observadores mais cultos do Ocidente renderam-lhe homenagem: longe de o confinarem ao folclore, Le Monde ou o New York Times reservaram-lhe as suas melhores páginas, conscientes de estarem perante um artista de primeiro plano. Bonga não é um simples cantor de variedades tropicais: é uma ícone da world music, ao lado de Miriam Makeba, Manu Dibango ou Youssou N’Dour, e por vezes comparado a Cesária Évora ou até a Georges Brassens, pela alma de poeta comprometido. Ele é, volto a escrever sem hesitar, um digno sucessor daqueles negros que inventaram toda a música e todas as danças do século XX. A sua obra inscreve-se na linhagem das grandes vozes africanas e da diáspora negra que mudaram o rosto da música universal.
Durante muito tempo, Bonga permaneceu uma voz rebelde à margem do reconhecimento oficial. Durante a guerra civil pós-independência, chegou mesmo a ser malvisto pelo regime: o seu nome estava associado à UNITA, o campo adversário, o que o condenava ao exílio e ao esquecimento na sua própria pátria. Vê-lo hoje condecorado pelo Chefe de Estado, do MPLA, é, por isso, um poderoso símbolo de reconciliação nacional. Já em 2018, Bonga recebera uma primeira medalha do Presidente João Lourenço — uma Medalha de Bravura e de Mérito Cívico e Social — que acolheu com profunda emoção, considerando-a “o símbolo mais importante” da sua carreira e “um sinal das mudanças” em curso em Angola. O cantor disse então que este reconhecimento da Nação representava, para si, um culminar pessoal e familiar, celebrado com orgulho por milhares de angolanos da diáspora. Agora, em 2025, é a consagração suprema: Angola, pela voz do seu Presidente, exprime a sua gratidão eterna àquele que, pela sua resiliência e longevidade artísticas, carregou a voz do povo durante décadas. Tal como já tive ocasião de escrever: “Nós, a nova geração de angolanos [...] estamos orgulhosos e gratos pela sua resiliência e resistência, orgulhosos da sua longevidade e generosidade. [...] Devemos-lhe uma gratidão eterna por ter estado lá antes de nós, por ter unido a sua voz à dos indignados com os nossos males e por ter sabido expressar as nossas esperanças”. Hoje, essa gratidão interior torna-se oficial. Ver Bonga elevado à categoria de herói nacional é mais um passo em direção a uma Angola reconciliada consigo mesma, que reconhece finalmente o valor dos seus artistas de combate.
Waldemar Bastos: a voz da alma angolana, da dor à esperança
Se Bonga é o clamor das lutas passadas e presentes, Waldemar Bastos é a oração fervorosa e a alma consoladora. Uma década mais novo, Waldemar Bastos (1954–2020) cresceu no estrondo da descolonização e nas guerras fratricidas que se seguiram. A sua voz, simultaneamente doce e poderosa, acompanhou os tormentos de uma Angola independente — desde os primeiros impulsos de esperança até às desilusões da guerra civil, e finalmente até ao renascimento após 2002. Cada canção sua parecia conter uma parte da dor do povo e uma parte da sua fé num amanhã possível. Arauto de uma espiritualidade universal, Waldemar cantava o amor, a pátria e a humanidade com um timbre comovente que lhe granjeou audiência muito para além das fronteiras angolanas. Condecorado a título póstumo pelo Presidente João Lourenço, juntamente com Bonga, figura agora ao lado do seu irmão mais velho no panteão cultural da Nação — reconhecimento supremo para quem muitos consideram “um gigante da música mundial”.
A trajetória de Waldemar Bastos é emblemática da dor e da resiliência angolanas. Em criança, em Mbanza Kongo, viu “a sua avó”, a velha Chica, marcada pela colonização, proibir-lhe que falasse de política — por medo. Mas Waldemar, testemunha das injustiças, já sentia a revolta a germinar dentro de si: aos 17 anos, foi preso pela PIDE. Após a independência, enfrentaria uma nova decepção — a deriva autoritária do novo poder. Nos anos 80, a ditadura pós-colonial forçou-o ao exílio. Longe de se calar, Waldemar transformou esse exílio num canto de amor incondicional à sua pátria. Incapaz de viver em Angola, passou a escrever-lhe cartas sob forma de álbuns — verdadeiros discos-carta que documentam a história turbulenta do país: Estamos Juntos (1983), Angola Minha Namorada (1989), Pitanga Madura (1992), Preta Luz (1997), Renascence (2004), Love is Blindness (2008) e Classics of My Soul (2012). Menino prodígio tornado grande senhor da canção, Waldemar foi o cronista sensível da alma angolana, o mensageiro da sua dor, o escultor da sua esperança. Musicalmente, ancorava-se nas raízes do Kongo e do semba, dialogava com o fado e a morna, e sussurrava ao ouvido da soul, do gospel ou da bossa nova. A sua música era simultaneamente profundamente angolana e radicalmente universal.
A sua influência pan-africana vê-se nas colaborações que fez e no reconhecimento internacional que obteve — inclusive nos Estados Unidos e na Europa. E no entanto, como muitos artistas que dizem verdades, também ele foi silenciado: em plena guerra civil, o seu disco Pretaluz foi pura e simplesmente banido das rádios nacionais. Mas nada disso impediu a sua luz de brilhar noutros lugares: Waldemar Bastos continuou a ser ouvido, aclamado e amado — mesmo quando a sua pátria ainda hesitava em o abraçar.
Só na viragem dos anos 2010, com a eleição de João Lourenço, é que Angola começou finalmente a reparar essa injustiça. Em 2018, Waldemar recebeu o Prémio Nacional de Cultura e Artes — distinção que ele considerou a mais íntima da sua vida. Na altura, escrevi que este prémio figuraria “na história de Angola como um dos pontos positivos do bom legado deste Presidente”. Essa profecia cumpriu-se: em 2025, Waldemar Bastos é, enfim, consagrado herói nacional. E esse gesto sela a sua reabilitação histórica. O que o povo sabia há muito — que Waldemar era um dos seus melhores filhos — torna-se agora reconhecimento de Estado. E esta Angola, que já não deve perseguir os seus artistas por pensarem livremente, é uma Angola mais digna. Escrevi também: “Esperamos que nunca mais haja perseguições a nenhum filho de Angola – isso é obra de cobardes e de mundos ultrapassados. É o debate, com vozes contraditórias, que faz a sociedade avançar”. Ao distinguir Waldemar Bastos, Angola honra o artista, repara o erro e afirma um princípio.
Um gesto forte para uma Angola que avança
Para além das pessoas de Bonga e Waldemar Bastos, é toda a Nação angolana que se sente engrandecida por este acontecimento. Estas condecorações presidenciais são bálsamos sobre as feridas do passado e clarões no caminho do futuro. Dizem aos antigos resistentes: “A vossa entrega não será esquecida”. E dizem à juventude: “Reconciliamo-nos com a nossa história para construir um país mais unido”. Angola avança quando celebra os seus artistas que ergueram a sua voz e os seus valores. Durante muito tempo dividida, a nossa comunidade nacional junta-se hoje em torno de figuras que fazem unanimidade no coração do povo. A cultura serve de ponte onde a política cavou fossos. Ao colocar as medalhas da Nação sobre o peito de Bonga e na memória de Waldemar Bastos, o Presidente João Lourenço envia uma mensagem de unidade e de orgulho. Uma mensagem que diz: ser angolano é, tanto quanto honrar os combatentes da liberdade, reconhecer os poetas e músicos que fizeram dançar a esperança nos corações.
No plano simbólico, este ato reforça a imagem de uma Angola orgulhosa da sua diversidade e fiel à sua identidade própria. Bonga e Waldemar Bastos, cada um à sua maneira, encarnam a alma africana de Angola, longe dos espelhos coloniais. O primeiro ritmou as nossas lutas de independência e cantou, em kimbundu, a beleza das nossas mães negras. O segundo sussurrou as nossas orações na língua do coração e elevou as nossas dores em melodias universais. Condecorá- los, ao mais alto nível do Estado, é proclamar que estas vozes fazem parte do património nacional tanto quanto os nossos heróis políticos ou militares. É reconhecer que a música, a poesia e a espiritualidade são pilares fundamentais na construção de um país mais justo e mais consciente de si.
Finalmente, este gesto oficial reflete-se na própria imagem do Presidente e do seu mandato. João Lourenço prometera uma Angola mais aberta e inclusiva; com este ato, dá corpo à sua palavra. Após reformas económicas e combate à corrupção, mostra também saber ouvir a alma da Nação. Ao homenagear Bonga e Waldemar Bastos, reconhece o valor da memória cultural como parte essencial do processo de reconciliação nacional. Inscreve o seu mandato na continuidade dos ideais de paz e unidade nacional que Waldemar cantou em Renascence e na fidelidade às raízes que Bonga representa há meio século. Poder-se-á dizer, ao avaliar este ciclo político, que João Lourenço não governou apenas com leis e investimentos: estendeu a mão aos corações feridos e reparou injustiças simbólicas. Isso será parte honrosa do seu legado. Ao celebrar Bonga e Waldemar Bastos como o faz, o Estado angolano realiza um ato simultaneamente poético e histórico. Poético, porque estes dois poetas da canção fizeram dançar e chorar gerações inteiras com o seu génio — tocaram em cada angolano algo de intangível: uma mistura de dor e orgulho, de saudade e de esperança. Histórico, porque nunca antes tinham recebido tão alta distinção em vida; foi preciso tempo para que o Estado se juntasse ao povo na admiração que ele sempre lhes votou. Agora, está feito. E este momento ficará gravado na nossa memória coletiva.
Um país que reconhece os seus poetas é um país que se reconcilia com a sua alma. Angola, ao honrar estes dois filhos prodigiosos, reconcilia-se consigo própria. Já era tempo de lhes dizer obrigado — obrigado em nome de toda a Nação. Com esse “obrigado” oficial, a Angola de hoje compromete-se a não mais corar do seu passado, mas a tirar dele lições e orgulho para construir o futuro. E não há dúvida de que, algures, a voz enrouquecida pelo caminho e pela resistência de Bonga, e a voz luminosa e transcendente de Waldemar Bastos, continuarão a guiar este percurso rumo a uma Angola mais unida, mais justa e mais orgulhosa de si.
Ricardo Vita é headhunter e observador pan-africanista