Luanda - "O Presidente da República foi à Assembleia Nacional com o propósito de cumprir um dever, mas não o cumpriu bem, por três razões: primeiro, porque foi lá com o propósito errado; segundo, porque deturpou a essência e o objectivo da democracia; terceiro, porque não retratou fielmente o estado da Nação", afirmou Isaías Samakuva, no dia 19 de Outubro de 2010, em Luanda.
Fonte: UNITA
O PR não explicou porque não convocou as eleições presidenciais
O MPLA governa Angola há quase 35 anos. Pensamos que este é o momento de se fazer um balanço sério e objectivo que permita apreciar o real sentido e valor do seu desempenho. É tempo suficiente para que não haja artifícios nem desculpas para afastar responsabilidades, mascarar insuficiências ou a esconder incompetências.
Os cidadãos angolanos, falam do desemprego, o executivo do Presidente José Eduardo dos Santos fala na governação electrónica; as pessoas queixam-se das dificuldades do dia a dia, ele fala de boa governação; as pessoas alertam para o aumento da insegurança nas ruas, ele fala na elevação de dados estatísticos de per si manipulados; as pessoas clamam por uma maior atenção aos transportes, ele fala na cidade administrativa; as empresas e as pessoas reclamam pelos reflexos negativos na economia da crise global que em muito, já se repercute no modus vivendi e no modus operandi dos cidadãos angolanos ele justifica-se e faz referências ao caos dos anos de guerra civil, anteriores a 2002.
O Presidente da República foi à Assembleia Nacional com o propósito de cumprir um dever, mas não o cumpriu bem, por três razões: primeiro, porque foi lá com o propósito errado; segundo, porque deturpou a essência e o objectivo da democracia; terceiro, porque não retratou fielmente o estado da Nação.
O discurso sobre o estado da Nação não é o momento para se fabricar legitimidade nem para se fazer campanha partidária. Nas democracias presidenciais, o Chefe do Executivo vai ao Parlamento com legitimidade própria, para falar em nome de todos e apontar os caminhos a seguir para o alcance dos objectivos da República e não para avaliar programas partidários. Ora, o Presidente Eduardo dos Santos não possui um título de legitimidade como representante eleito da Nação angolana e nunca consultou o Parlamento sobre os assuntos de segurança nacional ou de política externa, que engajam o Estado e comprometem o futuro da Nação. Enquanto Presidente da transição, o cidadão Eduardo dos Santos furtou-se ao cumprimento da Constituição provisória e não convocou as eleições presidenciais, marcadas para 2009. Hoje, dirigindo-se ao único detentor legítimo da soberania, o Presidente da transição não explicou porque não convocou as eleições presidenciais. Não explicou também porque é que reduziu o papel do Parlamento e do Governo como órgãos de soberania e concentrou em si próprio todos os poderes do Estado ao promulgar uma Constituição que não observou os limites materiais estabelecidos pelo poder constituinte material. Há pois um desfasamento entre os objectivos da República e os objectivos do cidadão Eduardo dos Santos. O objectivo fundamental da República de Angola é a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social. O objectivo do Presidente Eduardo dos Santos parece ser a hegemonia política e a perpetuação no poder. E porque o Presidente da República considera que terá vencido mais uma etapa na sua luta pela hegemonia e pela perpetuação no poder, utilizou agora esta ida ao Parlamento para exibir elementos da “vitória” do seu regime autoritário e de uma economia desintegrada, virada para o exterior e dependente do exterior. É por isso que concluímos que o Presidente foi ao Parlamento com o propósito errado.
Em segundo lugar, o Presidente deturpou a essência, a natureza e o objectivo da democracia. Afirmou que a paz e a unidade nacional são condições para o desenvolvimento da democracia. A ciência política e a história ensinam-nos o contrário: é a prática da democracia que promove a paz social. É o reconhecimento da diversidade, o respeito pelo pluralismo e pela igualdade entre os homens que garantem a unidade das nações multiculturais. A democracia é um ambiente, um clima em que se desenvolvem as actividades sociais, políticas e económicas. Esse clima, inclui a valorização da vida e da dignidade humana, a liberdade, a justiça, a solidariedade, e a igualdade de oportunidades; inclui ainda a legitimidade das decisões tomadas por processos racionais, com o consenso de todos e reflectindo resultados de debates livres e tolerantes em lugar da violência e da brutalidade; inclui também o governo limitado, electivo e temporário e o controlo dos governantes pelos governados. Esse ambiente produz automaticamente uma imprensa livre e plural, uma economia aberta a todos, detida pela diversidade de elites e regulada por regras imparciais que protegem o ambiente, a concorrência e os consumidores. Esse ambiente de competição leal e de justiça produz automaticamente a paz política e social, porque impõe limites aos poderes, promove a solidariedade, denuncia sem medo as irregularidades, e, assim, previne e combate a corrupção. É por isso que se diz que a democracia é o regime político da paz. Quanto mais forte for a democracia mais forte será a paz. Não é a paz que consolida a democracia. É o fortalecimento da democracia que consolida a paz.
O Presidente disse-nos, finalmente, que ele pensa o contrário: que deve primeiro existir uma paz hegemónica, imposta por uma classe que se considera superior e que, por isso, teve primeiro de aprovar uma Constituição hegemónica e reforçar a capacidade do Estado para dosear e tutelar a democracia. E disse-nos que todos os tutelados devem ficar submissos, em paz, porque essa paz é condição para o desenvolvimento da democracia. Ele pensa, afinal, que é em torno desse Estado hegemónico, ou Partido/Estado, que se deve alicerçar a unidade nacional, e não em torno da competição igual no seio da pluralidade política e da diversidade da propriedade económica. E chamou a essa unidade partidária “unidade nacional”. Pensa também que é em troca da aceitação dessa paz da submissão e dessa unidade partidária, que os ricos vão largar umas migalhas e consentir aos pobres o exercício de mais alguns direitos. Ou seja, quem se conformar com essa paz submissa terá direitos políticos e económicos limitados e poderá fazer parte dos detentores da riqueza. Nisto consiste a tutela da democracia.
Se é esta a democracia defendida pelo Senhor Presidente da República de Angola, nós a rejeitamos. Rejeitamos categoricamente essa democracia condicionada e tutelada porque ela agride os objectivos da independência nacional e da igualdade entre os homens. Rejeitamo-la porque a democracia é uma conquista nobre dos angolanos e não uma dádiva. Foi conquistada a sangue e não pode ser negada por meras palavras, por dinheiro, por decreto nem por cooptação ou corrupção. Angola nunca poderá consolidar a democracia num ambiente institucional anti-democrático e de corrupção.
Em terceiro lugar, o Presidente da República não cumpriu bem o seu dever porque não retratou fielmente o estado da Nação. Vejamos alguns exemplos:
Ninguém pode falar do estado da Nação e não se referir às agressões à liberdade política, aos abusos da comunicação social, à delapidação do erário público e ao esbulho das terras a que os angolanos estão submetidos hoje. A política fundiária do Executivo, que promove o esbulho das terras ancestrais dos angolanos e protege latifundiários que não são capazes de trabalhar os milhares de hectares de terras que o Executivo lhes reserva, é um grave atentado ao Estado social de direito que o Senhor Presidente da República referiu ser o objectivo da República.
O Presidente referiu que em 2008, as reservas externas do Estado eram 18 biliões de dólares e que estas reservas baixaram para $12,6 biliões no final no último trimestre. Mas não disse onde foram parar os 6 biliões. Esta explicação é que os angolanos precisam. Já no passado recente, consultores do Governo e organizações internacionais denunciaram a fuga sistémica de capitais públicos, que o Executivo não foi capaz de desmentir. Agora, o Executivo também não foi capaz de explicar aos angolanos onde foi parar o dinheiro que é desviado do tesouro nacional.
O Presidente falou do crescimento da produção petrolífera. Isto já todos sabemos. O que não sabemos e gostaríamos de ouvir são as respostas às graves acusações de desvios e de corrupção ligadas ao petróleo. Os angolanos vêm os luxos e as fortunas da classe política exibidos todos os dias no país e no estrangeiro. E sabem que essas fortunas saíram dos cofres do Estado e que o Presidente é a única entidade que controla ou deve controlar os cofres do Estado. E ficaram decepcionados, porque o guardião dos dinheiros públicos não explicou o destino desses desvios.
Os angolanos apenas sabem que a riqueza de Angola no exterior do país cresce todos os dias mas a dívida pública também cresce todos os dias. Só que a riqueza no exterior está em nome de alguns, mas a dívida está em nome de todos nós. E o Presidente da República não informou aos angolanos as pessoas em nome de quem está registada fora de Angola a riqueza nacional.
Esta dívida que cresce todos os dias deve ser paga com o petróleo, cujas reservas também estão a diminuir à medida que se aumenta a produção. Se o petróleo vai acabar por volta de 2020, mas a dívida continua a aumentar, então o futuro está ameaçado. Reservar 100,000 barris/dia para reduzir a pobreza e a fome não basta, porque Angola produz cerca de 2,000,000 de barris/dia e o Presidente da República não explicou porque pretende utilizar apenas o equivalente a 100,000 barris para uma endemia tão séria que periga a digna existência da Nação.
Por outro lado, faz pouco sentido realçar o crescimento do PIB do sector não petrolífero, se as políticas do Executivo não garantirem que esse crescimento contribua para o aumento significativo das receitas fiscais, para o aumento da produção interna e a consequente redução dos preços dos principais produtos que as famílias necessitam. O Executivo não promove nem a integração nem a competitividade da economia real: exporta matérias-primas e importa produtos fabricados com as mesmas matérias-primas que exporta. Por não dar a devida atenção ao sector agrícola e não possuir sentido de Nação, o Executivo conhece mal o país, promove assimetrias territoriais e mostra-se incapaz de estruturar um sistema de educação e ensino que satisfaça as necessidades da economia real, que é o sector não extractivo.
Além disso, o principal cliente do sector estruturante da construção civil é o Estado. O principal pagador dos encargos da indústria hoteleira, da indústria imobiliária e dos encargos com o parque automóvel, é o Estado. Mesmo que os clientes sejam empresas petrolíferas ou diamantíferas, o último pagador das suas despesas é o Estado angolano. Nessa perspectiva, o crescimento do sector não petrolífero pode implicar o crescimento da despesa pública e o empobrecimento dos angolanos, porque crescem também as comissões, a sobre facturação e outros veículos utilizados para a fuga de capitais. Pode implicar também o enriquecimento sem causa de alguns, porque a maior parte dos empreendimentos geradores desse crescimento não paga impostos. Por isso, esse crescimento beneficia sempre as mesmas pessoas e não promove a coesão social.
Seria muito bom se o empresariado angolano fosse mesmo nacional, ou seja, plural. Mas infelizmente o nosso empresariado representa apenas um segmento da Nação, correspondente a um Partido político apenas. Por isso não temos ainda um empresariado nacional, no verdadeiro sentido da palavra. Sim, quem constitui hoje o empresariado nacional? Há algum empresário nacional de sucesso que não seja cliente ou partidário do regime? É possível obter licenças e créditos, na Angola do Presidente Eduardo dos Santos, se o indivíduo não pagar a gasosa ou não se associar a alguém que o regime indicar?
Um Estado que nega aos seus cidadãos oportunidades de competir em igualdade na indústria, no comércio, no petróleo, nos diamantes, nas telecomunicações e na banca, só porque não pertencem ao Partido político dos detentores do poder, não pode ser considerado um Estado democrático de Direito.
Sr. Presidente: não podemos falar de unidade nacional quando se pratica a exclusão social; não podemos falar de democracia quando se promovem as desigualdades; não se pode falar de boa governação quando fugimos à responsabilidade política e à prestação de contas.
Além disso, Senhor Presidente, não podemos falar de democracia e fugir às críticas. Em democracia, as críticas só são falaciosas se os criticados as refutarem e provarem que estão inocentes. Até agora, o Executivo ainda não provou que a classe política não enriqueceu com os dinheiros desviados dos cofres do Estado. Até agora, o Executivo ainda não provou que a Sonangol e a Cidade Alta não são o epicentro da corrupção em Angola. Ainda não provou que os titulares de cargos públicos fazem negócios consigo mesmo e que o nível dos preços está alto, porque isso beneficia a classe empresarial, que é a classe política. Portanto, enquanto o Executivo não provar o contrário, as críticas são justas e deveriam bastar para o Senhor Presidente da República, no mínimo, as mandar investigar.
É verdade que mais pessoas usam telemóveis, mas os preços que pagam são exorbitantes porque o Executivo não permite a livre concorrência para baixar os preços. Isto significa que o Executivo protege mais os donos da UNITEL e da MOVICEL do que o povo consumidor. E todos sabemos porquê. O mesmo sucede com os preços do cimento, os preços dos combustíveis, os preços das casas, os preços dos empréstimos bancários. As famílias angolanas não precisam de economistas para lhes dizer que há uma classe em Angola que ganha com o aumento dos preços, e que esta classe é a classe dos governantes ligada ao Partido que o Senhor Presidente da República dirige.
É verdade que a quantidade de alunos no ensino superior pode ter subido 42%, mas a qualidade do ensino superior deve ter baixado mais de 242%. É verdade que a quantidade de professores pode ter subido 36%; mas a sua qualidade deve ter baixado mais de 236%. Não há mérito algum em comprar mais camas para os hospitais e depois colocar dois ou três doentes na mesma cama para partilharem as infecções. A qualidade do ensino, a qualidade do ar, da água, da saúde, das obras, sim a qualidade é muito mais importante do que a quantidade.
Desta vez, o senhor Presidente esqueceu-se de apontar números para as casas. E ainda bem, porque os angolanos já ouviram muitas promessas que até as crianças sabem que não vão ser cumpridas.
O que se procura na boa governação não é a capacidade natural de o país saldar as suas dívidas, por causa de factores fortuitos como as reservas minerais ou as alianças militares. Esses factores interessam aos credores, que são meros comerciantes à procura de mercados. O que se procura na boa governação é o respeito pelas regras, a probidade, a não utilização de fundos públicos para benefícios pessoais; a transparência na gestão da coisa pública; a legitimidade das instituições e a imparcialidade das decisões; a investigação das denúncias e a prestação de contas. E nesse respeito, Angola baixa todos os anos no rating da Transparência Internacional como um dos países mais corruptos do mundo. O Presidente de Angola parece ter já reconhecido este facto quando afirmou que o país precisa de uma espécie de tolerância zero. Não pode, por isso, vir agora contrariar, dizendo que as críticas sobre a corrupção são injustas e falaciosas.
Por tudo isso, é nossa convicção que o Senhor Presidente da República foi ao Parlamento sem legitimidade democrática, não apontou os caminhos a seguir para o alcance dos objectivos da República de Angola e não retratou fielmente o estado da Nação.
Isaías Samakuva
Presidente da UNITA
Luanda, 19 de Outubro de 2010