Luanda - Apesar dos acontecimentos recentes e o carnaval do medo terem a tendência para fazer esquecer o dia 8 de Março, dia internacional da Mulher, não deixei de o assinalar. E reparei, como se tem repetido, desde há alguns anos, que em Março, para alguns, as mulheres saem dos guarda-fatos. Sacodem-lhes o pó, lavam-lhes a cara. Atrás delas vêm os seus algozes que sorriem, trazem flores e fazem discursos enfadonhos sobre a sua valorização. São as comemorações de Março-mulher que tendem à trivialização, concomitantemente do dia e das mulheres.


Fonte: Club-k.net


Mas há o grupo daqueles, no qual me inscrevo, para quem Março é sempre motivo de reflexão em torno das mulheres. Alguns privilegiam o ente querido, valorizando razões sentimentais, outros abordam a mulher como ser social, questionando sobre o seu papel na comunidade. Ouve-se então a repetição da velha retórica nacional de que a mulher sempre desempenhou o seu papel na sociedade. Na luta de libertação esteve ao lado dos seus companheiros, sempre esteve ao lado do homem. Algumas mulheres, garbosas, repetem, até a exaustão, que “por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher”.

 

Sempre considerei estas parangonas a viva denúncia da misoginia nacional. Uma misoginia associada ao narcisismo machista, que não consegue aceitar a ideia de que a mulher não se define em função de um centro que é o homem mas sim por ela própria. Vemos aqui uma continuidade do inquinado discurso sobre a emancipação da mulher. Alguns dos arautos deste discurso estão sempre a repetir que “a mulher sempre teve o seu lugar”, não se dando conta da contradição em que entram; pois, se a mulher sempre teve o seu lugar, então para quê promover um discurso de emancipação?

 

A emancipação da mulher precisa de um discurso, de uma racionalização, mas mais do que isto tem que ser uma acção concreta e constante. Para isto, tem que se libertar das suas próprias contradições. Na minha perspectiva a luta emancipadora da mulher (absolutamente necessária) está viciada por dentro, na medida que são as próprias mulheres, que tendo assimilado a ordem misógina, a reproduzem na família e na sociedade. Já o disse em relação a violência na família. Se as mulheres aceitam, praticam e reproduzem como natural a ordem hierárquica da violência, no interior da família, fazendo dos filhos ou outros menores suas vítimas disciplinadas, essa violência acabará, mais cedo ou mais tarde, abatendo-se sobre elas. Em relação ao papel preponderante que a mulher tem na sociedade costuma-se dizer que quando se educa um rapaz se educa um homem, quando se educa uma rapariga se educa uma sociedade. Na estrutura social que permanece, isto é bem verdade, para bem ou para mal, no sentido que é a mulher que tem um papel relevante na educação das crianças. Ora, é ela que educa de forma diferenciada os filhos e as filhas, reproduzindo a ordem misógina. 

 

 
É por estas razões que acho que a luta de emancipação da mulher, em vez de visar temas no abstracto, procurando mais uma acção legitimadora da ordem existente, devia procurar temas que pudessem questionar a ordem vigente e, nomeadamente, o autoritarismo. Não chega falar de boa governação, sem qualquer outro desenvolvimento intelectivo, sem que haja uma produção concreta de sentido, sem que o debate procure desmontar os pilares da velha ordem autoritária e misógina e alicerce o estabelecimento de uma nova ordem social, no interior das instituições, a começar por essa instituição de base que é a família. Quanto menos autoritárias forem as relações no interior deste núcleo de base, mais facilmente se poderá esperar que as demais instituições funcionem de forma mais justa.

 

E é também sobre justiça que se deve falar ao comemorar o dia 8 de Marco: Dia Internacional da Mulher. Parece que aqueles que comemoram este dia têm interesse em o afastar da sua origem. A consagração do dia foi feita em homenagem às mulheres que se bateram pelos seus direitos, por melhores condições de trabalho e direito ao voto. Hoje, mais de cem anos depois, pode entender-se como um direito de participação. Por isto, falar de mulheres em Março é também questionar a sua relação com o mundo laboral. Março mulher devia pois ser a ocasião para falarmos da estrutura de oportunidades do país, acabando com as desigualdades e, designadamente, as desigualdades sexistas, em todos os lugares e formas de realização da cidadania, falando da valorização do trabalho e, nomeadamente, do trabalho feminino e das suas condições concretas. Os movimentos de esquerda sempre associaram a emancipação da mulher à libertação social. Penso que a libertação social é uma condição necessária mas não suficiente. É preciso que haja a libertação de valores que coloque no seu centro a liberdade dos “Homens”. Março seria também a oportunidade para falar dos referentes simbólicos, da ordem epistémica, dos cânones sociais.

 

Festejemos a mulher, sem perder o sentido do belo. E, por isto, em cada Março, julgo interessante também festejar as mulheres (o seu dia) com poesia:
 

 

Manhã de frutas

Desperto debaixo desse sorriso
E murmurando teu nome, poiso leve
Um beijo meigo, na tua fronte

Falo de ti mulher
E não de outra
Ou da figura que transborda
Dos discursos acalorados

Nesta manhã de frutas,
Mãos limpas, céu leve
Janelas abertas e poesia,
Supremo reino: mulher,

Tu que encurtas o pecado,
Me enxugas o rosto,
Me adoças o café e o estar.

Falo de ti,
(minha Nginga anónima
Rainha, guerreira e bela)
Apenas balbuciando teu nome!

e. bonavena (Namibe, 1987)