Luanda - A Música Popular Angolana regista, ao longo dos períodos mais importantes da sua história, tentativas de renovação, cruzamento e diálogo com outros géneros e vertentes estilísticas. Sabe-se que uma das características da generalidade da música popular, cultivada no espaço urbano, é a sua facilidade de diálogo, abertura e permeabilidade a múltiplos estilos e sonoridades.


Fonte: JA


O duplo CD "Marcas de Angola", lançado em 2010, responde a um projecto ousado, consubstanciado numa leitura renovada pela geração mais jovem de intérpretes angolanos, que revisitou clássicos e temas referenciais da Música Popular Angolana. Baseado na liberdade interpretativa, e na infinita plasticidade da música, o CD "Marcas de Angola" reconfigura melodias, potencia harmonias e propõe um universo variado de malhas rítmicas de canções consagradas.


Em Angola, cantores e compositores como André Mingas, Filipe Mukenga, Waldemar Bastos e, mais recentemente, Totó, Jack Kanga, Kanda e Sandra Cordeiro, estabelecem uma simbiose entre as raízes da tradição da Música Popular Angolana, e as variantes técnicas e estilísticas assentes nos padrões do afro-jazz.


Os níveis de transfiguração, comparativamente aos temas originais seleccionados, denotam uma elevada magnitude criativa, revelando uma desmedida paixão dos intérpretes, pelas canções interpretadas.

 

Tradição e ousadia da renovação

 

Este duplo CD, para além de revisitar, com um olhar renovado, momentos ímpares do passado musical angolano, tal como a rebita, e um clássico da música contemporânea, "Manhã de domingo", do género kizomba, da autoria de Ricardo D’Abreu e Ruca Van-Duném,  vai marcar, decerto, uma época da modernidade historiográfica do disco angolano.


No passado, a afluência dos músicos angolanos às zonas urbanas e a evolução da tecnologia musical ocidental, influenciaram, a nível da sonoridade, a estrutura canónica do semba tradicional.


 Hoje, com o CD "Marcas de Angola", trilhando uma perspectiva de continuidade, temos uma música inovadora na dissonância dos acordes e nas flexões vocais de inspiração jazzística.


Contudo, importa reter que é na tradição da Música Popular Angolana que reencontramos a raiz que condicionou os motivos de evasão e ruptura, para outros andamentos e universos de sugestão, deste ímpar e singular momento discográfico da história da Música Popular Angolana. O duplo CD "Marcas de Angola" é, pela magnitude da transfiguração plástica das canções, uma autêntica revolução musical, concretizada numa saudável e inequívoca ousadia de renovação estética.

 

Os limites da transfiguração

 

No  CD "Marcas de Angola", os  autores ou autor das letras e das músicas estão referidos, na sequência ordinal, letra e música, ou seja, primeiro o autor da letra e só depois o autor da melodia.


Nos casos em que não houve parceria, a letra e música pertencem a um só  compositor. As canções "Angola no coração" e "Minha terra, terra minha", em que ocorre uma transfiguração total da melodia original, a recriação foi atribuída a um dos intérpretes com mais propensão para a composição, a pedido do compositor Filipe Mukenga. A revisão da autoria foi baseada numa investigação profunda, sobretudo nos temas do cancioneiro popular, de autor não identificado, em que as criações pertencem, normalmente, e de forma pacífica, às comunidades identificadas.

 

De referir que houve intervenção directa dos legítimos compositores, nos casos em que ocorreram dúvidas e imprecisões, relativamente à autoria ou co-autoria das canções.

 

A musicalidade de Coréon Dú

 

Herdeiro de uma genealogia musical proveniente da canção de intervenção política, Coréon Dú interpreta, no CD "Marcas de Angola", as canções "Kibolobolo" e "Felicidade", a última um clássico do Kuduro, da autoria do Sebem, inaugurando, de forma revolucionária, um processo de introdução de harmonias típicas do jazz, num género musical essencialmente rítmico, o kuduro. 

 

Em "Kaputo muá ngolê", Coréon Du revive a época das canções da guerrilha do tempo do seu pai, o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, durante o processo da luta anti-colonial, quando integrado no agrupamento "Nzaji", com Maria Mambo Café, Brito Sozinho e Mário Santiago. 

 

A musicalidade de Coréon Dú, concretizada, efectivamente, no seu primeiro álbum, "The Coréon Experiment", traduz a personalidade de um artista sem fronteiras estilísticas, e inclusivo na concepção e absorção de múltiplas tipologias musicais, de um cantor e compositor aberto ao mundo.

 

A propensão para o canto, descoberta aos 13 anos de idade, e a participação no coral universitário, como segundo tenor da Loyola Univeristy New Orleans durante a frequência do seu curso de Comunicação Social e Gestão, explicam a personalidade musical de Coréon Dú, cuja criatividade e potencialidades artísticas se estendem desde o teatro, televisão, música, dança, na condição de produtor, e moda como designer e director criativo.

 

O convite dos cantores e compositores André Mingas, a dupla Filipe Mukenga e Filipe Zau, DJ Manya, Matias Damásio, Simmons Massini, Wyza, Heavy C e Jeff Brown, para a concepção do CD "The Coréon Experiment", denota  que estamos perante um cantor que se preocupa com a qualidade do texto e dos arranjos instrumentais, e pela inserção internacional e multiplicidade estética da sua música, que vai desde a Pop, Semba, Jazz, Funk, Bossanova, Rock, Afro-beat, Lounge e ritmos Latinos. Coréon Dú foi o responsável pela direcção criativa, selecção do reportório, e produção executiva do "Marcas de Angola, Angolan Sound Experience".

 

A versatilidade do Walter Ananás

 

Embora tenha tido uma recepção, de certo modo apreensiva, pelos "puristas" da música angolana, nos casos em que as canções originais foram totalmente transfiguradas, sobretudo a nível das melodias, facto que reconhecemos a legitimidade na apreciação e opinião, a verdade é que um dos grandes méritos deste CD resvala no respeito pela geração mais jovem de intérpretes, pelo passado musical da Música Popular Angolana, representada pelos seus mais dignos compositores.                

 

A versatilidade, plasticidade e poder expressivo do canto de Walter Ananás ficou demonstrada na interpretação da canção "Manhã de Domingo", um clássico original da Kizomba, com letra e música de Ricardo D’Abreu e Ruca Van-Duném. Realce para a percussão de Dalú Roger, o baixo fretless de Wando Moreira, o Violão de Walter Ananás, a guitarra de Dodo Milisse, o piano de Nino Jazz, o trompete de Gesiel Nascimento, o sax alto e flauta de Luizão Ramos e o trombone de Bira, inequivocamente um dos momentos altos do "Marcas de Angola".