Lisboa - Nessa noite, chegou uma brigada da DISA, com uma lista de nomes, para entrarem numa ambulância. Todos sabiam o que aquilo significava. A viagem para a morte, sem julgamento, sem o mínimo direito à defesa.


Fonte: 27 de Maio


O Ademar seria assassinado nesse dia. Os seus verdugos, esses, continuam impunes, enquanto Angola aguarda o dia em que a reconciliação seja possível, com a assumpção de responsabilidades…


O ADEMAR: ALEGRIA DE VIVER


De uma certa forma, não há duas pessoas iguais. Todos somos diferentes, mesmo quando parecemos semelhantes. De nós os três, dos três irmãos – Edgar Ademar, Sita Maria e Edgar Francisco –, o Ademar era o mais alegre e extrovertido.


Tinha aquilo a que os ingleses chamam “joy of life” (alegria de viver). Fazia de tudo uma festa. Ate a penúria de alimentos, que existia em Luanda, em 1976, era para ele uma alegria, brincando com os pratos de arroz com arroz, e um cheiro de carne, improvisados pela Fátima, fiel cozinheira que transitou dos meus pais para ele. Era essa alegria de viver e carisma que o tornavam atraente, sobretudo para o sector feminino, em que era imbatível.


Choviam tantos telefonemas para ele que, a determinada altura, me pedia para atender o telefone e para fingir que era ele. Mas, para minha infelicidade, as interlocutoras apercebiam-se do diferente timbre de voz e não aceitavam a troca.


A ADOLESCÊNCIA


Quando chegámos a Luanda, depois do nascimento em Cabinda e passagem por Silva Porto (hoje Bié) e Benguela, o Ademar tinha, em 1961, 11 anos de idade. Fomos morar para o Bairro dos Serviços de Agricultura, um conjunto de casas dispersas junto aos viveiros dos Serviços de Agricultura e Florestas de Luanda. Por essa razão, também se chamava “Florestas” ou “Barrocas” (pela existência de declives em dois morros).


Havia poucas famílias: os Ceitas, Os Batalhas, os Pompeus… Designávamos os membros de cada família pelo apelido, embora chamássemos cada um pelo seu nome próprio. Lembro-me do Filomeno Ceita, a quem chamávamos o ” Filó”, e do “Tó” Batalha…


Pela própria natureza do solo, a zona onde vivíamos proporcionava a caça aos pássaros, com espingardas de pressão de ar (as mais conhecidas, de marca “Diana”). Mas o que mais o agradava eram os jogos de futebol, no campo improvisado junto ás oficinas. Tínhamos uma equipa que era conhecida por ” Floresta”. O Ademar era um bom avançado, embora não chegasse ao nível do Filomeno. Mas desporto desporto era, para os meus pais, a natação.


Por isso, quando ainda éramos pequenos colocaram-nos no Clube Desportivo Nun’Alvares, cujas instalações ficavam no princípio da ilha de Luanda, depois de efectuada a passagem pela ponte. Não sei se o clube ainda existirá, mas na altura, nos anos sessenta, era uma verdadeira escola, com aprendizagem de natação, remo e vela.


Por lá andaram o Carlos Nascimento (mais tarde conhecido por ter representado Portugal num dos festivais da Eurovisão), o Joaquim Pablo, o Fortes, o Carlos Pacheco, os Nolascos, enfim, tantos…


1966 foi um ano marcante para o Ademar. Foi seleccionado, juntamente com o Joaquim Pablo e o Luís Filipe Nolasco, para representar Angola nos campeonatos nacionais de natação, a realizar na então metrópole. No entanto, chegados a Lisboa, os jovens angolanos foram impedidos de participar, pois a Associação Desportiva de Natação de Angola não tinha pago as quotas devidas à Federação.


Na altura, os jornais propagaram este escândalo. Como era possível os jovens nadadores terem sido seleccionado e embarcado e, depois, devido a uma questão burocrática, não participarem nas provas desportivas?


A adolescência também foi o temo das “farras”. Nesse aspecto, o Ademar tinha o seu grupo. Raras eram as sextas-feiras ou os sábados em que não havia uma festa, em Luanda. Terminado o quinto ano do liceu, no velho Salvador Correia, era chegado o momento de escolher. O Ademar escolheu a alínea f), com o objectivo de seguir Engenharia Eletrotécnica, curso que existia na Universidade de Angola.


OS ESTUDOS


Depois do 6º e do 7º ano, ingressou na Faculdade. Sem ser um aluno brilhante, passou com facilidade as diversas cadeiras do curso.


Tinha um grande à vontade. Um dia, à noite, vimos um polícia branco bater, com o cassetete, num negro. O Ademar, com escassos 16 anos, deu ordens ao polícia para não bater, tendo este acatado a “decisão”. Poderia ter-se voltado contra o Ademar, mas, em vez disso, deu conta do que estava a fazer e cessou a agressão. Concluída a licenciatura, veio para Lisboa, em 1973. Na altura, tínhamos um apartamento arrendado em Lisboa, no Campo Grande, próximo do apartamento dos pais do Rui Coelho. Por isso, o Ademar veio viver connosco, sem saber bem o que o esperava. Começou a estagiar na CPPE, actual da EDP, em Moscavide. Estava entusiasmado com o estágio, que lhe tinha permitido conhecer pessoas como o Engº Gaspar Correia, que referia como uma sumidade. Mas o que esperava o Ademar no apartamento do Campo Grande?

O apartamento, situado na então Rua Projectada ao Campo Grande, lote 1, era um local pródigo em reuniões, um centro de agitação.


Bum determinado dia de Abril de 1973, a quietude matinal foi alterada pelo repetido toque da campainha. Eram 7 horas da manhã e uma brigada da PIDE, constituída por três pessoas, entre as quais a conhecida Albertina, irrompeu pelo nosso apartamento, no intuito de prender a nossa irmã Sita. Não a tendo encontrado, iniciaram um processo de busca, vasculhando as gavetas, livros e tudo o que estivesse à mão.


Terá sido, talvez, a primeira experiência política do Ademar, que o viria a marcar, revoltado como ficou com o desrespeito dos pides. Nunca tendo sido um “activista político”, a partir daí passou a colaborar activamente no “processo revolucionário”.


O CASAMENTO

Em Dezembro de 1973, casou-se em Luanda com a Isabel Penaguião (Bicha). O namoro durava há longos anos, praticamente desde o início da adolescência. A festa foi em nossa casa, na Floresta.  As mesas estavam colocadas nos vários canteiros, no jardim. Foi um dia feliz, para o Ademar e para a Isabel. As fotografias mostram-nos sorridentes…


Depois do casamento, foi a opção: viver em Luanda, Angola, ou ir para Lisboa, Portugal?
O casal decidiu-se por ficar em Luanda, onde viria a nascer, em 4 de Agosto de 1976, o Frederico…


A VIDA EM LUANDA


Mas a vida em Luanda iria sofrer uma alteração, com o 25 de Abril. O Ademar acabaria por ingressar no serviço militar, efectuando a recruta em Nova Lisboa (actual Huambo).


Esteve envolvido num processo de desvio de armas para o MPLA, arriscando-se a uma pena de prisão. Mas o processo acabaria por ser arquivado, naquele período conturbado. O Ademar iria ainda participar nas estruturas do MPLA, no sector intelectual. Após a independência, seria o responsável da indústria pesada no Ministério da Indústria. Os que com ele contactavam guardaram sempre a imagem do sorriso franco e aberto, o riso fácil, a alegria de viver, que foi uma constante da sua vida.


O 27 DE MAIO


Bom profissional, exercia as suas tarefas meticulosamente, privilegiando o diálogo e as reuniões de trabalho, ao invés dos longos relatórios. Quando se verificou o 27 de Maio, tinha a consciência totalmente tranquila de não ter participado em qualquer acção, por mais diminuta que fosse. Porém, tinha um pecado capital: o seu apelido era “Valles” e a sua irmã Sita estava a ser impiedosamente procurada e vilipendiada.


Por isso, por uma questão de segurança, resolveu “entregar-se” à DISA, procurando o seu padrinho de casamento, Zé Vale, então um dos responsáveis da polícia política. Entrou na prisão de S. Paulo num dos últimos dias de Maio de 1977. Esteve sempre confiante de que sairia em breve.


Elaborou um relatório sobre o seu trabalho profissional, à frente da indústria pesada no Ministério da Indústria, que demonstrava em que consistia o seu dia a dia. Na prisão, procurou manter o ânimo, dando explicações de inglês, francês e outras matérias aos que menos sabiam, num processo de transmissão de conhecimentos em que as cadeias são pródigas. Passou o ano de 1977 e tudo indicava que o Ademar sairia, em breve. Mas o dia 23 de Março de 1978 foi fatídico para ele.


Nessa noite, chegou uma brigada da DISA, com uma lista de nomes, para entrarem numa ambulância. Todos sabiam o que aquilo significava. A viagem para a morte, sem julgamento, sem o mínimo direito à defesa.


O Ademar seria assassinado nesse dia. Os seus verdugos, esses, continuam impunes, enquanto Angola aguarda o dia em que a reconciliação seja possível, com a assumpção de responsabilidades…