O circuito completo desta retrospectiva que percorremos, semanas atrás, na companhia da satisfeita Dra Júlia Machado (na foto), consuleza geral do nosso país em Nova Iorque e da historiadora norte-americana, francófila, Kathleen Hulser, uma das arquitectas do referido programa, permitiu-nos ler com paixão o impressionante livro.
Facto sintomático a importância da Expo da respeitada instituição do Central Park West, o catálogo restaurador estala-se sobre 403 páginas e foi editado por Ira Berlin e Leslie M. Harris, respectivamente, professoras nas Universidades de Maryland e de Emory.

Sob a assinatura de uma vintena de especialistas, a obra articula-se numa dezena de capítulos, em que eles analisam, minuciosamente, o passado, fatalmente, esclavagista da cintilante NYC, a grande cidade das finanças, do comércio e da diplomacia internacionais.

Os coordenadores da referida publicação, na sua introdução, reconhecem, naturalmente, o papel inspirativo, para o projecto de exposição que foi a descoberta, acidental, em 1991, no bairro de Manhattan, do velho cemitério de forcados africanos, utilizado, aproximativamente, entre os anos de 1690 e 1790.Esta necrópole, hoje conhecida mundialmente como o African Burial Ground, foi declarada, duplamente, pelo Governo federal, Sítio Histórico Nacional e Monumento Nacional.

Seguem-se, depois, várias análises sobre a escravidão, no início do século XVII, em Dutch New Amsterdam, da autoria do “angolano” Christopher Moore, investigador no famoso Schomburg Center for Research in Black Culture de Harlem, a evolução da exploração escravista neste território, que passara sob domínio inglês e que recebera o nome de Duque de Iorque, a partir de 1664, a longa e sinuosa interdição desta prática de trabalho primitivo, a emergência de uma cultura negra nos cinco boroughs nova-iorquenhos, a cristalização de uma elite melano-africana, o desenvolvimento de um comportamento verdadeiramente cívico e politicamente influente, a contribuição dos niger da cidade adjacente ao Hudson na luta pela abolição do cerco esclavagista nas conservadoras regiões meridionais da antiga colónia britânica e pela igualdade racial no conjunto federativo, a inserção dos negros alforriados nas iniciativas económicas da cidade nortenha, capital dos EUA, entre 1785 e 1790, a activa participação dos blacks da quase península na guerra civil (1861 – 1865) e a construção de uma Nova Iorque “preta” no fim do século XIX.

A obra do NHS e intercalada, naturalmente, de uma centena de reproduções fotográficas e iconográficas sobre, entre outros elementos, os muitos mediatizados trabalhos arqueológicos do African Burial Ground, estampas representando carregadores escravos no porto da Nieu Amsterdam, por volta de 1640, um mapa de 1639 da possessão holandesa, um documento de 1644 relativo à alforria de um escravo residente na baía de “Manatvs”, uma fotografia dos anos 1920 da casa de venda de escravos The Pieter Claesen Wyckoff House, vários documentos sobre o negócio, a transacção e fuga de escravos (anúncios, facturas, livros de contas, etc.), um mapa demográfico de NYC, em 1737, que prova que um ¼ da sua população era, nesta época, niger, a lista dos escravos que participaram na revolta de 1712, e registando dois angolanos, Mingo e Rodriguo, uma gravura retratando o famoso magnata esclavagista de tabaco Peter Stuyvesant e numerosas gravuras sobre várias vertentes de carácter económico, político, social e cultural da evolução da exploração esclavagista, mas igualmente, a longa luta, multirracial, pela abolição da escravatura na aglomeração atlântica, prática que acabara em 1865.

VAN ANGOLA

Na sua introdução, Ira Berlin e Leslie Harris confirmam que os primeiros contingentes, significativos, regulares, de cativos desembarcados na embocadura de Hudson o foram pela poderosa Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, empresa que beneficiou de uma mão-de-obra forcada congo e ngola, suplementar, na sequência da ocupação pelos holandeses, entre 1640 e 1648, da esclavagista São Paulo de Loanda.

Esses encontrarão no Long Island os pioneiros angolanos instalados aí, que foram capturados, segundo o tenaz casal historiador norte-americano, Linda Heywood e John Thornton, de um navio negreiro português, perto das ilhas caribenhas de Tobago pela fragata holandesa Bruynvis, em 1627. Eram 50 “mwangoles”, 20 homens e 30 mulheres.
São eles, alforriados, que ocuparão, como primeiros proprietários não índios, o actual famoso Washington Square Park, em Greenwich Village. Um deles ficou conhecido, - processo de crioulização luso-neerlandesa obriga – como Manuel de Gerrit de Reus.

Os contingentes de escravos, previamente convertidos ao cristianismo, que virão da ocupada Loanda, apresentarão ou nomes portugueses, tais como Paulo d’ Angola ou Francisco Cartagena, ou nomes holandeses, a exemplo de Jan Creoli ou de Christoffel Crioell. Outros ainda serão conhecidos com os seus nomes ingleses, a semelhança de Anthony Portuguese ou Simon Congo.

As duas investigadoras esclarecem que “ D’ Angola, meaning from Angola, changed to the Dutch Van Angola”.
Assim, registam-se nomes tais como Emmanuel Van Angola ou Claus Manuel Angola. Esses antropónimos perpetuar-se-ão, segundo as pesquisadoras, durante pelo menos duas gerações.

Confirmando a constatação feita, em Angola, em 1805, por Bernardo Maria de Cannecattim, elas notam que era difícil “to distinguish between kongos and angolans”. A presença angolana no Hudson Valley, Long Island e ao norte do New Jersey será, igualmente, atestada pelo Christopher Moore.

Os angolanos serão, segundo ele, “were the largest african group among the first Dutch West India Company-owned slaves”. E, facto sintomático, Peter Stuyvesant, governador da Nova Amesterdao, reconheceu, honestamente,”that trade principally to Angola, is the life of the Company”.
De notar que alguns dos seus trabalhadores escravos ou alforriados chamavam-se Garcia, Big Manuel, Little Manuel, Little Anthony, Paulo ou Jan Francisco.

THE AFRICAN BURIAL GROUND

O historiador, especialista, dos arquivos nova-iorquinos assinala nas expedições organizadas, entre 1525 e 1619, na baixa do Hudson Valley e na actual região canadiana banhada pelo rio Lawrence e o Lago Champlain, o papel determinante jogado por dois marinheiros angolanos, célebres, poliglotas, Esteban Gomez e Mathieu da Costa, do seu nome neerlandês, Matheus de Cost ou da sua identificação inglesa Swart Matheu ou Black Matthew.
De notar que Esteban Gomez foi companheiro da corajosa expedição circum-navegante de Fernão de Magalhães.
Continua

*Simão Souindoula
Fonte: Vida Cultural/JA