Lisboa – Exército português participou em Angola numa “acção punitiva” em que “terroristas” foram decapitados. Havia testemunhos pessoais destas práticas, mas este é o primeiro documento escrito. A violência do documento é óbvia e incómoda, por vezes desconcertante. Tão desconcertante na sua brutalidade, que se tivesse sido produzido pelos inimigos dos militares portugueses que participaram na guerra colonial em Angola, dificilmente seria mais verosímil.

Fonte: Público

A “cerimónia” de fuzilamento com mutilação de cadáveres começou às 10h30 na sanzala Mihinjo, a cerca de 20 quilómetros de Luanda. É descrita em 11 pontos, sendo o primeiro uma explicação muito incompleta dada ao povo pelo soba, o chefe tribal, para a presença de um pelotão de execução português.

Segue-se o disparo do que devem ser seis pistolas-metralhadoras. E os suspeitos de terrorismo caíram. Depois, vem a violência extrema. “5 – Avançaram os cortadores de cabeças. Cumpriram a sua missão. 6 – Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas para o chão.
7 – Clarim tocou ombro arma, apresentar arma. 8 – Soba falou ao povo, explicando a razão porque tinham ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei.
9 – Ao soba eu disse: os corpos podem ser enterrados as cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre.”

Quem quer deixar a mensagem dos paus vazios “para sempre” é um capitão do Exército português e autor do relatório militar onde são descritos os acontecimentos que tiveram lugar a 27 de Abril de 1961.

Este capitão de cavalaria do 1.º Esquadrão dos Dragões — cujo nome o PÚBLICO não revela porque a lei dos arquivos o impede ao abrigo da protecção da imagem e da vida privada — comanda uma “acção punitiva de pacificação”, segundo o título do próprio documento, muito provavelmente uma reacção aos massacres da União dos Povos de Angola (UPA), que ocorreram nas fazendas do norte do país, um mês e meio antes, em que morreram milhares de colonos brancos e os seus empregados africanos, muitos deles também mutilados.

Catorze dias antes desta cerimónia, a 13 de Abril, António de Oliveira Salazar, presidente do conselho, profere o célebre discurso de “andar rapidamente e em força” para Angola, onde formalmente é anunciada a intenção de fazer a guerra de África.

Este documento, que é publicado na íntegra pela primeira vez, é revelado no livro O Império Colonial em Questão (sécs. XIX-XX), que acaba de ser lançado pelas Edições 70, num artigo da autoria do historiador António Araújo.

ANEXO:

DRAGÕES – 1º ESQUADRÃO

ASSUNTO: ACÇÃO PUNITIVA DE PACIFICAÇÃO DE 250930 ABR NA SANZALA MIHINJO

Para cumprimento no exarado em alínea c) nº 2 das Normas para a actividade operacional, nº 2 do C. M. A. (Q.G.-3ª Rep.) 21ABR61
Pelas 09H00 o Esquadrão (-) estava na Funda, onde integrou na coluna um “Land-Rover vermelho” com dois civis e o regedor da localidade (um preto). Este informou que pelo menos 5 dos agressores de José Augusto Moreira e Joaquim da Silva Coelho estavam na Sanzala MIHINJO, já tinha estado com eles e que tinham confessado.
Às 09H30 estávamos a 1 Klm. da sanzala.
Avançou a viatura dos civis com mais o guia da coluna – o António Machado da Cruz, armado de 375 com a missão de deixar o regedor na sanzala para ir reunindo o povo para uma “conversa sua”.
Às 09H45 partiu a coluna a toda a velocidade, cercando a sanzala. Operação em U apoiando as extremidades no Rio Bengo.
Pelas 10H00 o regedor e o soba da sanzala separou 5 dos agressores que se sentaram no chão, com guarda.
Interrogados por mim, confessaram que tinham estado na confusão com os brancos.
- Quem é que tirou a espingarda?
- Fui eu, disse um deles.

O Soba já tinha entregado a espingarda ao regedor.
Pelas 10H30 estava montado o dispositivo em anexo.
Às 10H35 deu-se início à cerimónia:
1 – O soba falou ao povo explicando a razão da cerimónia, acrescentando:  Quando tem razão de queixa, faz mesmo queixa no regedor, não pode fazer mesmo justiça pelas suas mãos. Aqueles homens quis matar mesmo. Vai morrer… etc. etc.
2 – Clarim tocou a sentido, ombro arma, apresentar arma.
3 – Furriel Helder disse: Pelotão de execução, preparar, apontar. Fogo.
4 – As 6 P.M. dispararam. Os terroristas caíram.
5 – Avançaram os cortadores de cabeças. Cumpriram a sua missão.
6 – Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas para o chão.
7 – Clarim tocou ombro arma, apresentar arma.
8 – Soba falou ao povo, explicando a razão porque tinham ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei.
9 – Ao soba eu disse: os corpos podem ser enterrados as cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre.

10 – O Esquadrão regressou ao Quartel.

11 – Levei a secção Penaguião ao Hospital para que vissem os dois agredidos
- Um estava em coma, na reanimação.  O outro já se sentava.
Ambos quase irreconhecíveis, pois tinham sido barbaramente agredidos à catanada, pedrada e paulada.
Foram assaltados no Klm. 56 do C.F. – Fundo Cabiri, quando levavam um indígena preso para o regedor da Funda: operação efectuada a pedido do regedor.

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REACÇÕES:

Do povo da sanzala – completamente esmagados pelo aparato da cerimónia. Nem uma palavra, um gesto, um choro de criança sequer.
Os condenados – inicialmente com ar arrogante, a gesticular e falar muito com o regedor e soba. Quando se começaram a [?] os paus, ficaram calados. O mais novo, nessa altura, disse que três já tinham fugido. No final já estavam com a assistência indígena, completamente vencidos e conformados.
Os civis – guia e 2 ocupantes do “Land Rover”, um pouco impressionados:
- Isto é impressionante, mas tem de ser.
O nosso pessoal militar: de uma maneira geral, pálidos. Cerca de 20% com o olhar incerto e assustado. Cerca de 10% prestes a desmaiar. O resto portou-se bem.
As catanas têm de estar bem afiadas (não estavam) saltavam ao bater, como se fosse em borracha. O corte da catana requer a sua técnica não deve ser em pancada directa e seca. A lâmina deve bater em movimento de translação ao longo do fio. Golpe de corte dos alfanges árabes.

CONCLUSÃO
1) – No respeitante ao efeito da cerimónia, no elemento indígena, teremos de esperar uns dias pelos relatórios dos administradores da região.
2) – No pessoal: Foi fortemente sacudido e posto pela primeira vez perante a realidade de uma guerra total de sobrevivência sem quartel. A experiência foi-lhe benéfica, pois:
Quando o pelotão parou, já na estrada de Catete, a ordem dada a uma secção para juntar o pessoal e revistar uma pequena sanzala de um dos lados da estrada foi cumprida com uma eficiência, rapidez e entusiasmo jamais vistos nas operações anteriores desta natureza. No final verificou-se serem Bailundos. Foram-lhes restituídas as catanas, enxadas e demais ferros com “pancadas nas costas”. O Sargento enfermeiro interveio pela primeira vez, para pensar um buraco de uma baioneta mais impaciente no braço de um deles. Afastámo-nos com gestos de adeus, de parte a parte.

Luanda, 27 de Abril de 1961
O Comandante do 1º esquadrão de Dragões
[ass.]
[identificação no original]
Cap. De Cav.ª