Luanda - Reparei com bastante satisfação que a opinião jurídico-constitucional que publiquei sobre o tema suscitou o início de um debate político-ideológico que gostaria de ver estruturado e desenvolvido a todos os níveis. De facto, a opinião que emiti aborda um problema eminentemente político que opõe os defensores da centralização do poder aos defensores da descentralização do poder; os que aceitam de facto o princípio da autonomia local aos que se opõem a ele pelo menos agora enquanto JES ainda é poder; os que lutam pela defesa da supremacia da Constituição (mesmo não concordando com os excessivos poderes que ela concentra no Presidente da República) aos que lutam pela defesa formal da supremacia de JES (mesmo não concordando com ele em sã conciência cívica ou jurídico-profissional).

Fonte: Club-k.net

Não ousamos pretender ‘mudar a cultura política’ dos meus colegas no Parlamento nem dos demais cidadãos que defendem circunstancialmente a centralização do poder. Pretendemos, sim, contribuir para consolidar a consciência cívico-jurídica da grande maioria da cidadania que aspira pela efectiva concretização das autarquias locais e pela consolidação do Estado de direito em Angola. Para ela, resolvemos escrever um novo texto (a ser publicado em breve) enquanto reiteramos aqui os seguintes argumentos adicionais:

1. As medidas de desconcentração orçamental anunciadas para Luanda não constituem um novo modelo de governação. Encerram apenas uma nova fórmula de distribuição da mesma fatia orçamental entre ‘JES’ e ‘JES”. A medida ofende a Constituição de 2010, que manda separar a gestão dos dinheiros públicos entre UM executivo central e CENTO E SESSENTA E UM executivos municipais AUTÓNOMOS.

2. Luanda continua a ter o mesmo modelo arcaico de governação municipal, que é um governo centralizado, não eleito pelos munícipes, inserido na Administração Pública do Estado e dependente do ‘chefe’ do poder central, que é o Titular do poder executivo do Estado. Este modelo já foi revogado pela Constituição de 2010 que instituíu, no seu Título VI, três órgãos autónomos do Poder Local para governar os municípios todos do país: as Assembleias Municipais, dotadas de poderes deliberativos, os órgãos executivos colegiais e os Presidentes das Autarquias.

3. O único modelo de governação municipal que a Constituição estabelece e admite, é o modelo autonómico que se baseia em quatro princípios fundamentais: princípio da autonomia local, princípio da descentralização político-administrativa, princípio da separação de poderes e princípio democrático.

4. Nos termos do artigo 214.º da CRA, “a autonomia local compreende o direito e a capacidade efectiva de as autarquias locais gerirem e regulamentarem, nos termos da Constituição e da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, os assuntos públicos locais”. Este direito, só pode ser exercido pelas autarquias locais, e não pelos governos provinciais nem pelas administrações municipais.

5. Nos termos da Constituição, o Senhor Presidente da República deve largar o poder municipal e devolvê-lo aos cidadãos. Antes, o Senhor Presidente da República, podia eventualmente procurar resolver os problemas dos munícipes de Luanda no quadro dos interesses da Administração central do Estado, mas agora já é tarde, porque a CRA não o permite. Ao fazê-lo agora, e da forma como o faz, vem protelar e prejudicar a criação efectiva das autarquias locais, violando, assim, o disposto no artigo 201º da CRA.


6. Dizer que os Administradores de Luanda, e só os de Luanda, têm um novo modelo de governação porque vão elaborar os instrumentos de gestão orçamental que deveriam ser elaborados por órgãos autónomos do poder local, eleitos pelos cidadãos, constitui, no mínimo, um insulto à nossa inteligência, areia nos olhos dos incautos ou conversa para boi dormir. Constitui também mais uma ‘manobra’ daquelas do tipo do Acórdão de Julho de 2005, do Tribunal Supremo, que afirmou que o actual Presidente da República, há 35 anos no poder, apenas vai no seu primeiro mandato. Manobras que visam apenas tentar perpetuar a ditadura e o poder do ditador.

7. Aos que afirmam que “a Administração Local do Estado e as Autarquias Locais, coexistem na Constituição Angolana”, lembramos o seguinte:

a) Conceptualmente, a Constituição de 2010 consagrou um novo sistema político em Angola, onde a Administração Local do Estado existente antes de Fevereiro de 2010 deixou de existir, sendo substituída por dois órgãos, um autónomo, distinto do Estado – as autarquias locais - e outro o Governador Provincial como ‘representante da administração do Estado na respectiva circumscrição administrativa’. Esta conceptualização está consagrada no Artigo 201.º da CRA, nos termos seguintes:

“ 1. A Administração local do Estado é exercida por órgãos desconcentrados da Administração central e visa assegurar, a nível local, a realização das atribuições e dos interesses específicos da administração do Estado na respectiva circunscrição administrativa, sem prejuízo da autonomia do poder local”.

b) Ou seja, para haver coexistência entre a Administração Pública estadual (central ou local) e a Administração autónoma, as duas têm de existir. Se uma for forçada a não existir, há uma inconstitucionalidade por omissão.


c) A Administração local do Estado persegue fins de Estado e assegura, na província, os interesses específicos da Administração Estado (não os das populações residentes), ao passo que a Administração autónoma persegue interesses específicos resultantes da vizinhança e assegura “sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, os assuntos públicos locais” nos municípios.

d) A Constituição de 2010 não fala mais de ‘Administrações municipais como parte integrante da Administração local do Estado. Manda estabelecer em seu lugar a Administração local autónoma a nível municipal e admite também o seu funcionamento ao nível infra e supra municipal (Art. 218º). Por isso ela fala da “transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais” e da necessidade de adequá-la “ao disposto na presente Constituição” (artigo 242º). Ela refere-se ao Governador Provincial como “o representante da administração central na respectiva Província, a quem incumbe, em geral, conduzir a governação da província e assegurar o normal funcionamento da Administração local do Estado sem prejuízo da autonomia do poder local (nº 2 do Artigo 201).


e) A Constituição de 2010 já não prevê que haja Administradores Municipais chefiados por um Governador Provincial ou por um Presidente da República. As Administrações Municipais acabaram. O governo dos munícipios e os interesses públicos locais devem ser assegurados pelas autarquias locais, e só por elas (Artigo 214º).

f) Os angolanos sabem que há em Angola uma pessoa que tem muita dificuldade em coexistir com outros poderes autónomos, seja a nível horizontal (Parlamento, Administração eleitoral e Tribunais), seja a nível vertical (Presidentes das autarquias). De tal forma que, quando tal questão vem a terreiro, surgem sempre as bocas do costume a pretender defender o indefensável, mesmo que tenham de agredir a supremacia da Constituição. Até um dia! Porque quando a ditadura cair, as mesmas bocas virão a terreiro, com igual desenvoltura, condenar a ditadura e distanciar-se do ditador. Aguardemos para ver.